I
Na história ocidental, poucos homens galvanizaram a atenção do mundo como fez Napoleão Bonaparte (Napoléon Bonaparte, chamado de Napoléon Ier -- 1769-1821), durante os quinze anos de seu governo absolutista na França. E poucos lograram, como ele, continuar a viver como um mito - não só para o seu próprio povo, mas para toda a Europa.
Parte da persistência do mito napoleônico pode ser atribuído ao fato de Napoleão nunca ter tentado desfazer suas origens pouco fidalgas.
Embora nascido na Córsega, de uma família que detinha um título de nobreza concedido pela República de Gênova, ele cultivava as maneiras rudes do aventureiro, perdendo as estribeiras, trapaceando no jogo, tirando partido das situações como podia, sem atentar para as convenções da sociedade polida.
Com esse comportamento ganhava as simpatias dos cidadãos de uma Europa triunfantemente burguesa. No espírito de seus admiradores ele seria sempre o «pequeno corporal» (le petit corporel), que, sem os privilégios do aristocrata, chegara ao topo por seus próprios meios.
Mas o mito fundava-se num fato importante – a sua indubitável capacidade.
Educado na França, na academia militar de Paris (l'École militaire de Paris), ele possuía um espírito compatível com as ideias do iluminismo - (Age ou Siècle des Lumières ou apenas Les Lumières, The Age of Enlightenment ou the Enlightenment, Aufklärung e el Siglo de las Luces) - criativo, imaginativo e pronto para repensar as coisas.
Seus principais interesses eram a história, o direito e a matemática.
Como líder, suas qualidades especiais repousavam na sua capacidade de conceber planos financeiros, legais ou militares e depois dominar cada um de seus pormenores; em sua habilidade de inspirar outras pessoas, mesmo aquelas que de início se opunham a ele; e em sua convicção de ser, por destino, o salvador da França. Essa última forte confiança tornou-se a obsessão que o conduziu à ruína.
Mas essa suprema autoconfiança era aquilo de que carecera o governo francês, desde os primeiros dias da revolução. Napoleão acreditava tanto em si próprio como na França. Essa última crença era o tônico de que necessitava agora a França, e Napoleão dispôs-se a administrá-lo em doses generosas e vivificantes.
De 1799 a 1804 Napoleão governou com o título de primeiro-cônsul, mas na realidade como ditador.
Mais uma vez a França ganhou uma nova Constituição. Ainda que o documento falasse em sufrágio masculino universal, o poder político estava investido, através do meio já familiar de eleição indireta, nas mãos de empreiteiros e profissionais de classe média.
Percebendo, porém, que seu regime adquiriria maior substância se pudesse dar a impressão de ser o governo do povo da França, Bonaparte instituiu aquilo que se tornou desde então um frequente expediente autoritário: o plebiscito.
Pediu-se aos votantes que aprovassem a nova Lei Fundamental, o que eles fizeram, com resultado que foram sonoramente proclamados: 3.011.107 votos a favor, 1.567 contra.
Embora a Carta Política estipulasse um corpo legislativo, esse órgão não podia iniciar nem discutir projetos de lei. O primeiro-cônsul utilizava um Conselho de Estado para redigir suas leis; na verdade porém o governo dependia da autoridade de um único homem.
Bonaparte não tinha nenhum desejo de desfazer as principais reformas igualitáirias da revolução e reafirmou a abolição dos estados, dos privilégios e das liberdades locais, assim reconfirmando também a ideia de uma meritocracia, de «carreira aberta ao talento» (carrière ouverte aux talents), cara aos corações da classe média.
Através da centralização dos departamentos administrativos, ele alcançou o que nenhum regime francês recente havia até então conseguido: um sistema tributário ordeiro e de modo geral justo.
Proibindo o tipo de isenções antes concedidas à nobreza e ao clero, e continuando a arrecadação, seu plano possibilitou-lhe preparar um orçamento racional, fixando as despesas e, consequentemente, o endividamento. Dessa maneira, reduziu a espiral inflacionária em que se haviam emaranhado tantos governos no passado.
II
A mais importante realização de Bonaparte foi completar as reformas educacionais e jurídicas começadas durante o período revolucionário.
Determinou a criação de lycées (ginásios, liceus) em todas as cidades de maior porte de uma escola em Paris para preparação de professores.
Como complemento a essas mudanças, Napoleão colocou as escolas militares e técnicas sob a direção do Estado e fundou uma universidade nacional para suprervisionar todo o sistema.
Como quase todas suas reformas, essa foi de especial benefício para a classe média.
O mesmo se pode dizer do novo código legal promulgado em 1810. O código napoleônico, como se chamou o novo código de leis (Code Civil des Français) refletia dois princípios que se haviam insinuado em todas as mudanças constitucionais desde 1789: uniformidade e individualismo.
O código tornou o direito francês uniforme, declarando para sempre abolidos os costumes e privilégios do passado.
Ao proteger, de várias maneiras, o direito do indivíduo à propriedade, ao autorizar novos métodos para a redação de contratos, as concessões e a formação de sociedades por ações, e ao novamente proibir os sindicatos, o código era de sumo benefício a empresários e homens de negócios individualistas.
Para realizar essas reformas Napoleão recorreu aos homens mais talentosos de que podia dispor, quaisquer que fossem suas filiações políticas passadas.
Recebeu de volta no país emigrados de todos os matizes políticos. Seus dois colegas de consulado - seriam coexecutivos, mas só nominalmente - eram um regicida dos anos do Terror (La Terreur) e um burocrata do antigo regime (Ancien Régime). Seu Ministro da Polícia tinha sido um republicano radical extremista; seu Ministro de Negócios Estrangeiros era Talleyrand (Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, mais conhecido por Talleyrand -- 1754-1838), um aristocrata oportunista.
A obra de reconciliação política foi ajudada pela concordata de 1801 (La signature du Concordat par le Premier) com o papa, reunificando a Igreja e o Estado.
Embora a concordata desagradasse a antigos jacobinos anticlericais, Napoleão, sempre pragmático, acreditava ser necessária a reconciliação da Igreja e do Estado, por motivos de harmonia nacional e de solidariedade internacional.
Segundo os termos da concordata, o papa ganhava o direito de depor os bispos franceses e disciplinar o clero. Ao mesmo tempo, o Vaticano concordava em arquivar quaisquer queixas contra a expropriação de terras da Igreja.
Daí em diante essas propriedades permaneceriam intocadas nas mãos de seus novos titulares rurais e urbanos de classe média. Em troca garantia-se ao clero uma pensão paga pelo Estado.
A concordata nada fez no sentido de revogar o princípio de liberdade relgiosa estabelecido pela revolução. O dinheiro do Estado era recebido tanto pelo clero católico como pelo protestante.
O acordo de Napoleão granjeou-lhe o apoio daqueles conservadores que haviam temido pelo futuro da França como um estado ateu.
Para provar aos velhos jacobinos, por sua vez, que ele continuava a ser um filho da revolução que haviam feito, Napoleão invadiu em 1804 o Estado independente de Baden para prender e depois executar Louis Antoine Henri de Bourbon-Condé, duque de Enghien (1772-1804), parente dos Bourbons, a quem Napoleão acusou falsamente de uma conspiração contra sua vida.
Três anos antes ele havia deportado mais de 100 jacobinos com base em idêntica acusação, mas sem repercussões polítcas duradouras.
O ato compensatório só serviu para aumentar a popularidade geral de Napoleão. Em 1802, o povo francês dispôs-se a aceitá-lo como cônsul-vitalício. Em 1804, regozijou-se quando, na catedral de Notre Dame, em Paris, ele coroou a si mesmo como o imperador Napoleão I (Napoléon Premier).
III
Além das fronteiras da França, as nações da Europa haviam assistido, algumas com admiração, outras om horror, mas todas atônitas, ao fenômeno que era Napoleão.
Haviam combatido a França desde 1792 na esperança de preservar a estabilidade europeia. Agora se viam a braços com a mais séria ameaça à segurança já surgida.
Em 1797 os austríacos, derrotados por Bonaparte, no norte da Itália, retiraram-se também, assinando o Tratado de Campo Formio (Le traité de Campo-Formio), pelo qual cederam à França territórios na Bélgica, onde reconheceram a República cisalpina (la République cisalpine) que Bonaparte havia fundado na Itália, e concordaram com a ocupação francesa da margem esquerda do Reno.
No ano seguinte, a Grã-Bretanha ficou sozinha na guerra contra a França. Em 1798 formou uma segunda coalizão contra os franceses, agora com a Rússia e a Áustria. Em 1801 a coligação estava em frangalhos, tendo a Rússia se retirado dela dois anos antes.
O tratado de Lunéville (Le traité de Lunéville), firmado pela França e pela Áustria, confirmou as cláusulas de Campo Formio; ademais, foram legitimadas as chamadas repúblicas batava, helvética, cisalpina e da Ligúria, criadas por Napoleão em territórios dos Países Baixos, Suíça, Itália e Piemonte.
Os austríacos aquiesceram igualmente com uma reformulação geral do mapa da Alemanha. Como consequência surgiu um amálgama de estados semiindependentes, sob controle da França, na Confederação do Reno (La Confédération du Rhin ou Rheinbund).
No ano seguinte, a Grã-Bretanha, já incapaz\ de lutar sozinha, entrou do mesmo modo em acordo com os franceses, devolvendo todos os territórios que haviam capturado em batalhas coloniais, com exceção de Trinidad e Ceilão.
Durante o reinado de Napoleão, os territórios da Europa central passaram por uma revolução: uma total reorganização de governo, que impôs as principais reformas igualitárias da Revolução Francesa a terras fora das fronteiras da França, ao mesmo tempo que construía um império francês.
As áreas mais afetadas foram territórios da Itália, a Alemanha, a Dalmácia e a Holanda, pois a Bélgica já se encontrava integrada diretamente ao império.
Em todos esses territórios Napoleão adotou um sistema administrativo meticuloso e cuidadosamente organizado, baseado na ideia de carreiras abertas ao talento, igualdade perante a lei e abolição dos antigos costumes e privilégios.
O programa napoleônico de reforma no império representou uma aplicação dos princípios que já haviam transformado a França pós-revolucionária.
Foram liquidados os tribunais senhoriais e abolidos os eclesiásticos. As províncias foram ligadas numa imensa rede burocrática que chagava até Paris. Codificaram-se as leis, modernizou-se o sistema tributário e em toda a parte os indivíduos ganharam liberdade para trabalhar em qualquer ofício que escolhessem.
A única liberdade negada a longo de toda a nova e grandiosa hegemonia foi a de autonomia; ou seja, todos os atos governamentais emanavam de Paris, e, por consegunte, de Napoleão.
Apesar disso, negociantes e profissionais burgueses, que se haviam exasperado com as restrições que lhes eram impostas por mesquinhas tradições despóticas, receberam com agrado essa oportunidade de exercer seus talentos em maior grau do que jamais haviam gozado.
Não foram de modo algum altruístas os motivos que levaram Napoleão a introduzir essas várias mudanças radicais. Percebia que a defesa de seu enorme domínio dependia de administração eficiente e de racionalidade na arrecadação e dispêndio de fundos para seus exércitos.
No entanto, foi um fracasso sua mais ousada tentativa de consolidação, uma política que proibia a importação de mercadorias britânicas para o continente europeu.
Esse bloqueio continental (le Blocus continental), criado em 1806, foi imaginado como uma medida estratégica na contínua guerra econômica de Napoleão contra a Grã-Bretanha. Seu objetivo era destruir o comércio e o crédito da Grã-Bretanha - obrigá-la à rendição, pela inanição econômica.
O bloqueio fracassou por várias motivos, entre os quais se destacava o fato de a Grã-Bretanha conservar o domínio dos mares (The Empire on which the sun never sets). O bloqueio naval imposto pelos britânicos ao continente em 1807 serviu, por consequinte, como um efetivo obstáculo à estratégia napoleônica.
Enquanto o império se esfalfava para transportar mercadorias e matérias-primas por terra, a fim de evitar o bloqueio naval da Grã-Bretanha, os ingleses agiam com sucesso no sentido de desenvolver um ativo comércio com a América do Sul.
As tarifas internas foram uma segunda razão para o fracasso do bloqueio continental. Napoleão não conseguiu persuadir cada um dos territórios a aderir a uma união alfandegária isenta de direitos. Consquentemente, a Europa permaneceu dividida em campos econômicos, protegidos uns contra os outros por tarifas aduaneiras e em desavenças constantes, enquanto tentavam subsistir com apenas o que o continente podia produzir e manufaturar.
O motivo final para o colapso do bloqueio continental de Napoleão foi o simples fato de o continente ter mais a perder do que a Grã-Bretanha. O comércio estagnou; os portos e os centros manufatureiros viam com irritação aumentar o desemprego.
IV
O bloqueio continental (le blocus continental) foi o primeiro erro grave de Napoleão, bem como uma das causas de sua queda final. Um segundo motivo foi sua ambição ilimitada e o altíssimo conceito que fazia de si mesmo.
Sua meta era uma Europa unida, segundo o modelo dos Império Romano. Os símbolos do seu reinado - que se refletiam na pintura, na arquitetura e no desenho de móveis e roupas – eram de origem deliberadamente romana.
Ma a sua Roma era incontestavelmente a imperial, dinástica. Os arcos e colunas triunfais que fazia erigir para comemorar suas vitórias lembravam os monumentos ostentatórios dos imperadores romanos.
Fez de seus irmãos e irmãs monarcas dos reinos recém-criados, que ele controlava de Paris. Divorciou-se da imperatriz Josefina (Joséphine de Beauharnais (1763-1814), sob o pretexto de ela não lhe dar filhos, e garantiu um sucessor de sangue real, casando-se com uma representante da casa de Habsburgo. Até mesmo seus admiradores começaram a questionar-se se o seu império não seria um despotismo maior, mais eficiente e mais perigoso do que as monarquias do século XVIII.
A guerra rebentou novamente em 1805, com russos, prussianos e austríacos juntando-se aos ingleses, numa tentativa de em vão conter a França. A superioridade militar de Napoleão levou-o a derrotar, sucessivamente, todos os três aliados do continente.
Por fim foi a recusa do próprio imperador em reconhecer que sua disponibilidade de homens e materiais, bem como sua boa sorte, não eram ilimitadas, que lhe trouxe a derrota.
Em 1808, invadiu a Espanha, com a desculpa de proteger suas costas contra os ingleses, mas com intenção de entregar a coroa espanhola a seu irmão José.
Mal havia sido coroado o novo monarca, o povo espanhol levantou-se em revolta. Napoleão nunca conseguiu esmagar a insurreição. Ademais, a coragem dos espanhóis em resistir ao invasor fez surgur um espírito de desafio em outros lugares, o que fez\ desaparecer a docilidade de qualquer uma das suas vítimas.
Uma fase mais fatídica na queda do aventureiro corso foi a ruptura de sua aliança com a Rússia. País extremamente agrícola, a Rússia vira-se a braços com uma grave crise econômica quando não pôde mais, em razão do bloqueio continental, trocar o excesso de sua produção de cereais por manufaturados ingleses. A consequência disso foi que o czar Alexandre I Pavlovitch começou a fechar os olhos ao comércio com a Inglaterra, não dando ouvidos aos protestos de Paris ou respondendo-lhes com evasivas.
Em 1811, Napoleão reuniu um exército de 600.000 homens e, em 1812, pôs-se a marchar para punir o czar. Desastre. Sem oferecer resistência, os russos atraíram os franceses cada vez mais para o interior de seu território. Finalmente, permitiram a Napoleão ocupar a antiga capital, Moscou.
Na mesma noite da entrada dos franceses, irrompeu na cidade um incêndio de origem suspeita. Quando as chamas declinaram, pouco mais restava do que as paredes tisnadas do Kremlim, para abrigar as tropas invasoras.
Na esperança de que o czar acabasse por se render, Napoleão deixou-se ficar durante mais de um mês entre as ruínas e só em 22/10 resolveu iniciar a marcha de regresso. Erro fatal. O terrível inverno russo caiu sobre suas tropas. A retirada foi detida por rios engrossados, montanhas de neve e lamaçais sem fundo.
Além das calamidades de um frio insurportável, das doenças e da fome, cossacos montados surgiam dentre o nevoeiro para fustigar as tropas exaustas. Em 13/12 alguns milhares de soldados alquebrados atravessaram a fronteira da Alemanha – um ínfima porção do grande exército.(la grande armée). Perto de 300.000 vidas tinham sido sacrificadas na aventura de Napoleão na Rússia.
Os aliados tiraram partido do esgotamento das suas forças para arquitetar a vitória. Em março de 1814 seus exércitos estavam em Paris e Napoleão preparava-se para a rendição.
Exilado na ilha de Elba, no Mediterrâneo, ele tramou voltar enquanto seu sucessor, Luís XVIII (Louis Stanislas Xavier de France - 1755-1824), irmão de Luís XVI, o escolhido pelos aliados, tentava preencher um espaço demasiado grande para o seu medíocre talento.
Na primavera de 1815, ele retornou à França, onde foi recebido entusiasticamene. No entanto, as reativadas lealdades não conseguiram sobrevier à sua derrota final na batalha de Waterloo, na Bélgica, em 18/06/1815. Dessa vez os aliados desterraram-no para a minúscula ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, onde ele morreu em 1821.
Grande o impacto dessa era de revolução sobre a civilização ocidental.
A liberdade – o direito de agir no mundo com responsabilidade apenas perante si próprio – era uma ideia cara àqueles que fizeram a Revolução Francesa, e que permanceu incorporada às reformas que ela produziu.
O mesmo aconteceu com a igualdade – a ideia de leis racionais aplicadas uniformemente a todos, independentemente de nascimento ou posição social.
O orgulho nacional – o terceiro legado dessa era – foi incutido no coração do povo francês, enquanto via seus exércitos populares repelir ataques contra as recém-conquistadas liberdades. Foi instilado, outrossim, naqueles cuja oposição aos franceses os tornava mais conscientes de sua própria identidade nacional.
Esses três conceitos – liberdade, igualdade e nacionalidade – haviam deixado de ser meras ideias; como leis e como uma nova maneira de encarar a vida, repousavam no âmago da realidade europeia.
Constituíram, em conjunto, um dos dois elementos sobre os quais uma nova classe dominante – a classe média – agora ascendia ao poder.
N. do A. – Foram utilizadas aqui algumas ideias de Giovanni Reale e Dario Antiseri (Il pensiero ccidentale dalle origini ad oggi. 8. ed. Brescia: La Scuola, 1986).