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A Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da OIT na perspectiva da descolonização da saúde indígena no Brasil

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24/08/2014 às 15:15
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Os indígenas possuem seus próprios saberes e práticas em saúde, geralmente desprezados pela medicina ocidental. Este artigo trata da natureza colonial desse preconceito e dos avanços da CF/88 e da Convenção 169 da OIT na descolonização destes saberes.

1. Introdução

Observa a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a partir de dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que “los sistemas curativos tradicionales y la atención biomédica coexisten en todas las regiones del mundo”, sendo que nos chamados países em desenvolvimento a grande maioria da população (cerca de 80%) “utiliza los sistemas curativos tradicionales como principal fuente de atención sanitaria[1]. Isso significa que os saberes e práticas ancestrais ou tradicionais em saúde continuam sendo aplicados por grande parte da população mundial, ao lado da medicina de corte ocidental moderno.

Mas que grau de reconhecimento tais sistemas tradicionais estariam recebendo dos aparelhos normativos dos Estados e dos sistemas modernos de saúde? Essa coexistência significaria um respeito ou mera tolerância àqueles sistemas diante da ausência da medicina moderna nas regiões mais carentes e distantes? A própria OIT tem apontado, no caso específico dos povos indígenas no mundo, que além da falta de acesso aos serviços “comuns” ou moderno-ocidentais de saúde, e do oferecimento de serviços precários e inadequados por parte dos Estados, ocorreria muitas vezes de que “el personal de salud pública puede tener actitudes discriminatorias hacia las culturas y prácticas indígenas[2].

Tal situação nos leva a indagar, no tocante à questão da saúde indígena, quanto ao papel da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre os “Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”. Trata-se de um dos instrumentos jurídicos do Direito Internacional mais avançados no tratamento das relações entre os Estados e os povos indígenas em todo o mundo, internalizado há quinze anos pelo Estado Brasileiro, após quatorze de discussão congressual[3].

Desde o seu advento os alcances e limites da Convenção em matéria de direitos indígenas vem sendo discutidos pelos atores jurídicos brasileiros no tocante a aspectos diversos, sobretudo quanto a suas implicações nos direitos territoriais e controle de recursos naturais, com especial destaque para a questão do direito de consulta prévia. Porém um aspecto bem menos analisado tem sido o de sua repercussão na área específica do direito à saúde. O que traria de novo a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais a respeito desta temática? E o que traria de novo a Convenção no que diz respeito à concepção ou às concepções de saúde que juridicamente se deve amparar aos indígenas?

Partimos aqui da premissa de que nas sociedades ocidentais modernas o conceito de saúde foi reduzido à percepção de processos biológicos relacionados à ausência de doenças, e desvinculado de sua natureza enquanto Direito, em especial no que diz respeito à pretensão de participação política, e do respeito à pluralidade de visões de mundo, próprias das sociedades étnica e culturalmente diversas. O nosso propósito é chamar a atenção para as contribuições tanto da Constituição Federal de 1988 quanto da Convenção 169 da OIT para os direitos indígenas no campo da saúde, na perspectiva do respeito à sua pluralidade de concepções de saúde/doença e de práticas curativas. Uma questão que se insere no reconhecimento da natureza colonial das concepções e práticas em saúde historicamente impostas àquelas populações, e que aqui são percebidas nas categorias da “colonialidade do poder” e “colonialidade do saber”, trazidas pelos chamados “estudos descoloniais” latino-americanos.

2. Antecedentes históricos

No século XVI, as conquistas e o início do empreendimento colonial europeu que marcaram o início do processo de invasão e ocupação dos territórios dos povos originários do Continente Ameríndio não significaram apenas a sua invasão por homens e armas. De modo associado, entrou em curso também outro tipo de invasão: a de agentes patogênicos. Com os conquistadores e colonizadores, doenças nunca vistas no mundo ameríndio foram introduzidas, devastando as defesas biológicas e culturais daquelas populações.

A conquista e a colonização do Continente foram também a conquista e a colonização dos corpos indígenas por doenças até então desconhecidas, trazendo não só a tragédia do extermínio pelas epidemias, mas também a desestruturação sociocultural das populações sobreviventes. No morticínio que passou a se seguir aos primeiros contatos, a perda de anciões, xamãs e pajés significou também a perda irreparável de saberes e práticas milenares, tornando ainda mais difícil para os sobreviventes o tremendo desafio de lidar com uma situação completamente nova e desconhecida, que incluía situações de fuga para novos ambientes ou simplesmente o contato forçado com o colonizador.

Como afirma o historiador búlgaro Tzvetan Todorov, no ano de 1500 a população mundial girava em torno de 400 milhões de indivíduos, sendo 80 milhões só no Continente americano – o chamado “Novo Mundo”. Então, “em meados do século XVI”, afirma o autor, “desses 80 milhões, restam 10”. Por isso conclui que “se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse”. Setenta milhões de mortos em apenas cinco décadas. Mas para o autor, o “choque microbiano” ou seja, as doenças trazidas pelos conquistadores e colonizadores europeus, muito mais que as armas de fogo, foi a causa do grande morticínio[4]. Por sua vez Darcy Ribeiro também chamou a atenção para o fato de que no Brasil, desde o início da colonização europeia “as doenças representaram o primeiro fator da diminuição das populações indígenas”, fazendo da história do contato com os colonizadores uma história repleta “de chacinas e, sobretudo, de epidemias”[5].

Além da contaminação por agentes virais e bacteriológicos antes desconhecidos, as populações indígenas tiveram sua saúde comprometida também pelas consequências das condições de vida a que foram submetidas pelo avanço do empreendimento colonial sobre seus territórios. Tanto os longos esforços de resistência e de fuga de comunidades inteiras, inviabilizando o ancestral processo de busca ou de produção de alimentos, quanto a própria perda de seus territórios para os colonizadores, levaram à perda das suas principais fontes alimentares, com importantes impactos na saúde dessas populações. Como não bastasse, a introdução do sedentarismo e a imposição de novos hábitos alimentares em substituição aos antigos, atuaram e atuam também como importantes contribuições para a quebra da sua qualidade de vida, levando ao seu adoecimento. À longa lista de causas do enfraquecimento da saúde indígena, fruto da chegada do aparato colonial europeu, pode-se acrescentar ainda a introdução de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), a contaminação por poluentes, a dependência alcoólica e, mais recentemente, a dependência química. 

O contato com o colonizador europeu e seus herdeiros, além da própria herança colonial, introduziu e deixou como herança para as populações indígenas um vasto conjunto de efeitos deletérios à saúde.  Da fome à DST, da morte por gripe à intoxicação por agrotóxicos, da dependência alcoólica e química ao suicídio, o avanço do projeto colonial sobre os territórios, recursos naturais, corpos e mentes indígenas produziu nessas populações um quadro extremo de situação de vulnerabilidade em saúde. Um quadro interpretado, ao longo do século XIX e primeira metade do século XX, como comprovação de uma suposta inferioridade racial e cultural.

Considerados sob a perspectiva ideológica do racismo, os problemas de saúde identificados nas populações indígenas foram vistos inicialmente como reflexo de uma fragilidade natural do “gentio”, depois como consequência de uma compleição fraca gerada pela mestiçagem, e, ao longo do século XIX, no esteio do darwinismo social, como decorrência de sua incapacidade natural para a competição com o aparato civilizatório da modernidade europeia.

No Brasil, no rastro dessa perspectiva evolucionista, a questão da saúde indígena foi profundamente atrelada ao paradigma da integração à sociedade nacional envolvente, sobretudo durante a fase do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), mas também ao longo de boa parte da existência da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Assim, por exemplo, conforme o Decreto n.º 736, de 06 de abril de 1936[6], as atribuições do SPI em termos de saúde se resumiam a prestar “proteção e assistência”, fornecendo “recursos necessários ao tratamento das doenças”, a serem prestados gratuitamente nos Postos de Assistência, Nacionalização e Educação (arts. 1.º, “a”; 2.º, “j” e 21). Também o Decreto n.º 10.652, de 16 de outubro de 1942[7] resumia-se a afirmar competir aos Postos Indígenas, “prestar ao índio assistência sanitária, fazendo-o observar práticas higiênicas” (art. 12, “o”). Mais tarde, o Decreto n.º 52.665, de 11 de outubro de 1963[8] atribuiu ao Conselho Nacional de Proteção aos Índios, órgão do Ministério da Agricultura, o planejamento da prestação de “assistência médico-sanitária aos índios qualquer que seja o seu tipo de cultura e o seu grau de integração na sociedade nacional” (art.1.º, IV), cabendo ao SPI, nos termos do Decreto n.º 52.668, de 11 de outubro de 1963[9], executar tais ações de “assistência médico-sanitária para índios” (art. 1.º, I, 4).

Na conformidade com o paradigma integracionista, a saúde era percebida não como um direito, mas como uma simples prestação assistencial, clínica e medicamentosa, a cargo das instituições responsáveis pela proteção aos indígenas, e definida e imposta segundo uma perspectiva verticalizada, sem qualquer participação das próprias comunidades e sem consideração com os seus saberes e práticas tradicionais.

É só com a Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973[10] – o denominado “Estatuto do Índio” –, que pela primeira vez a saúde é mencionada enquanto direito. A Lei estabelece que “os índios têm direito aos meios de proteção à saúde facultados à comunhão nacional” (art. 54, caput), e atribui aos “poderes públicos” o dever de prestar “especial assistência” de saúde aos indígenas, em estabelecimentos específicos (art. 54, parágrafo único). Contudo, trata-se ainda de um direito que se subsume à aceitação passiva de conhecimentos, métodos e técnicas formulados e fixados pela modernidade ocidental, sob a perspectiva do evolucionismo integracionista baseado na premissa ideológica da incapacidade indígena, tal como definida já no século XVI[11].

3. A Saúde indígena como território colonizado

No Brasil como no restante da América Latina, a concepção que se (re)produziu a respeito da saúde foi profundamente marcada pela utilização de modelos importados de concepções e práticas altamente hierarquizadas e autoritárias. Neste modelo, saberes e práticas locais, sobretudo indígenas, foram desqualificados e colocados em situação de subalternidade frente a conhecimentos acadêmicos e científicos vinculados à matriz europeia de legitimação do saber.  Aí a saúde nunca foi espaço para o Direito nem para a cidadania, e as concepções indígenas de saúde e de processos de adoecimento e cura nunca passaram de simples “superstições”, próprias de culturas tidas como desprovidas das capacidades lógicas e racionais da iluminada modernidade ocidental.

Este quadro revela que de maneira geral e, mais particularmente ainda – no caso dos povos indígenas –, as questões da saúde e do direito à saúde foram historicamente marcadas por aquilo que o sociólogo peruano Aníbal Quijano denomina de “paradigma da colonialidade”[12]. O conceito de colonialidade remete ao fenômeno da subordinação colonial, porém para muito além das formas de imposição e de dominação política e econômica exercidas pelos Estados independentes sobre as populações étnica e culturalmente minoritárias existentes em seus territórios. Para Quijano a expressão “colonialidade” encerra o próprio paradigma das relações de dominação constitutivas da modernidade a partir da expansão europeia no século XVI, e até hoje em vigor.

Segundo o autor, bem mais do que significar a exploração política e econômica das minorias, a colonialidade opera no seu imaginário. É uma “colonización del imaginario de los dominados”, obtida através da repressão aos mais diversos campos da vida imaterial: “represión no sólo de específicas creencias, ideas, imágenes, símbolos o conocimientos que no sirvieran para la dominación colonial global”, mas, também, “sobre los modos de conocer, de producir conocimiento, de producir perspectivas, imágenes y sistemas de imágenes, símbolos, modos de significación[13].

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Mas não só dessas repressões sobre o imaginário dos dominados se alimenta o paradigma da colonialidade. Para Quijano ele subsiste também na imposição de “una imagen mistificada de sus propios patrones de producción de conocimientos y significaciones[14], ou seja, da concepção de sua superioridade epistêmica. A ideia da “colonialidade” é assim mais abrangente, operando não só sobre os planos político e econômico mas também sobre as mentes, os corações e as próprias vidas dos indivíduos e das coletividades.

Por tais razões, cremos que o paradigma da colonialidade delimita fortemente os históricos problemas vivenciados pelas populações indígenas no que diz respeito ao seu direito à saúde, em especial em duas das modalidades do paradigma, quais sejam a “colonialidade do poder”, como aquela que a partir da expansão colonial europeia se expressa na racialização e hierarquização eurocêntrica das relações sociais e intersubjetivas; e a “colonialidade do saber”, que situa os saberes eurocêntricos como padrão de validade no campo do conhecimento.

A questão da saúde indígena, enquanto espaço de representação de conceitos de saúde e doença e de processos de cura, surge portanto como um território colonizado por um conjunto de saberes e de práticas, médicas e medicamentosas, que pretensamente deteriam em caráter exclusivo a legitimidade de sua aplicação em razão de sua matriz epistêmica moderno-ocidental. Ao mesmo tempo excluiria, a título de um “não saber” ou de conhecimentos não cientificamente válidos, aqueles conhecimentos e práticas ancestrais através dos quais os povos indígenas estabelecem suas próprias concepções de saúde e doença e de processos de cura.

Trata-se, enfim, daquilo que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos denomina de “pensamento abissal”, ou seja, um padrão de conhecimento que estabelece linhas divisórias entre o pensamento “relevante ou compreensível” e o pensamento supostamente “irrelevante ou incompreensível”[15]. A episteme moderna ocidental seria uma forma paradigmática de pensamento abissal, a estabelecer que “o outro lado da linha”, ou seja, o campo dos “conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas” seria caracterizado pela ausência de conhecimento real e pela presença de simples “crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos”, enquanto que “deste lado da linha” divisória abissal, ou seja, no mundo ocidental, se encontraria o único conhecimento válido e relevante: o moderno conhecimento científico[16]. Este pensamento abissal demarca então a tensão entre os saberes e práticas indígenas relativas à saúde, aos quais podemos denominar de “medicina indígena tradicional”, rotuladas depreciativamente como “curandeirismo” mágico-irracional, e os saberes e práticas ocidentais modernos da medicina convencional, esta sim vista como séria, científica e de efeitos comprovados.

4. A CF/1988: primeiros passos para a descolonização da saúde indígena  

No Brasil, de maneira geral, a questão do direito à saúde sofreu importantes alterações com a Constituição Federal de 1988 (CF/88). Ali, pela primeira vez o constitucionalismo brasileiro abriu-se ao reconhecimento da saúde não só como um direito, mas principalmente como um direito fundamental e como um espaço para a prática da cidadania. Na Constituição de 1988 a saúde foi reconhecida como um “direito de todos e dever do Estado” a ser garantido mediante “acesso universal e igualitário” (art. 196), através de um sistema único organizado com a participação da comunidade (art.198, III). Fruto de intensas lutas do movimento pela Reforma Sanitária e refletindo também as recomendações da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) realizada em 1986, tais avanços constitucionais estiveram ligados também a importantes conquistas no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

No caso específico dos povos indígenas estes mesmos avanços no direito internacional, obtidos sobretudo mediante a elaboração da Convenção 169 da OIT, assim como as lutas emancipatórias do movimento indígena e setores aliados desde a década de 1970, levaram também a Carta de 1988 a romper com o antigo modelo integracionista, possibilitando a discussão e a implementação dos direitos indígenas à saúde em novos parâmetros e perspectivas. Com a CF/88, a histórica perspectiva integracionista e homogeneizante cedeu lugar ao reconhecimento das formas indígenas de “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, e os “direitos originários” e “inalienáveis” de “posse permanente” sobre as “terras que tradicionalmente ocupam” (art. 231, caput e § 6.º).

Diferentemente da tradição monocultural anterior, esta nova formulação abriu novas perspectivas constitucionais para os povos indígenas por expressar, a um só tempo, dois importantes paradigmas principiológicos: o respeito à diversidade étnica e cultural das coletividades indígenas e o respeito à sua autonomia no tocante às decisões relativas a seus interesses, na órbita interna de seus territórios.

Esta nova formulação implicou no surgimento do direito daqueles povos à chamada “atenção específica e diferenciada” em saúde, ou seja, uma atenção planejada e praticada em consideração e respeito não só às suas especificidades identitárias dos povos e universo sociocultural, mas também às suas aspirações, desejos e decisões no plano político. No primeiro caso, trata-se da consideração, com base constitucional, à identidade própria e única de cada povo e comunidade indígena, considerado em sua particularidade, e não de maneira genérica conforme ocorria na tradição homogeneizante do antigo paradigma integracionista. E se trata, no segundo caso, do respeito e consideração para com as deliberações próprias das comunidades acerca dos assuntos de seu interesse. 

A possibilidade constitucionalmente aberta aos indígenas, de uma atenção à saúde específica e diferenciada, em hipótese alguma legitima o exercício de interpretações que pretendam excluí-los dos direitos à saúde conferidos à população em geral. Já em sua parte preambular, ao mesmo tempo em que traz para o país o ideal de uma sociedade “pluralista e sem preconceito”, a CF/88 inclui a igualdade entre os seus maiores valores. Mais adiante, inscreve entre os objetivos da República o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3.º, inc. IV) e, no mesmo caminho, expressa o princípio da igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5.º, caput).

 Ou seja, no que tange aos povos indígenas, a Constituição Federal de 1988 tanto ampara (em nome do pluralismo enquanto respeito à diversidade), a atenção específica e diferenciada em saúde, quanto reconhece (em nome do princípio da igualdade), o seu direito de acesso aos serviços de saúde oferecidos à população não-indígena. Trata-se aqui tanto do direito à igualdade quanto do direito à diferença como princípios fundamentais de convivência no interior das bases territoriais do Estado brasileiro.

Tais direitos são vistos como mais expressivos ainda quando se considera a grande vulnerabilidade em saúde que atinge os indígenas. Como vimos antes, conquistadores e colonizadores europeus não trouxeram apenas armas de ferro e fogo, trouxeram também eficientes “armas biológicas”, responsáveis por grande parte do genocídio de milhões de indígenas já no século XVI. Ainda hoje a falta de imunidade natural para infecções antes desconhecidas põe em risco a sobrevivência de centenas de comunidades de pouco ou nenhum contato anterior com a sociedade envolvente. Além das doenças adquiridas com o próprio contato, multiplicam-se ainda as mazelas decorrentes dos históricos e atuais processos de perdas territoriais e de danos ambientais causados por invasões extrativistas sobre as terras indígenas e seu entorno, além do consequente processo de pauperização e falta de perspectiva de vida, levando à fome e toda uma cadeia de agravos à saúde, de terríveis consequências para o futuro de inúmeras comunidades.

Neste contexto, os princípios da igualdade, universalidade e equidade, bem como o direito de participação na formulação das políticas públicas em saúde, são importantes para que os povos indígenas, tenham garantidos os mesmos direitos que os demais segmentos, e o respeito às suas necessidades específicas.

5. A Convenção 169 da OIT: novos elementos para se descolonizar a saúde indígena

As duas vertentes anteriormente apontadas do direito à “atenção específica e diferenciada” que passaram a ser reconhecidas constitucionalmente aos povos indígenas no Brasil em matéria de saúde (respeito e consideração à especificidade identitária e à autonomia política das comunidades), corresponderam também aos avanços processados no plano do Direito Internacional através da Convenção 169 da OIT.

Adotada em 27 de junho de 1989 em Genebra, Suíça, pela 76ª Seção da Conferência Geral da OIT, a Convenção 169 (também denominada “Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989”)[17] entrou em vigor em 05 de setembro de 1991, em revisão à sua antecessora, a Convenção 107 da OIT, que versava sobre a “Proteção e Integração das Populações Indígenas e Outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes”.

Guiando-se pelo paradigma integracionista, a Convenção 107, promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 58.824, de 14 de julho de 1966[18], pensava a saúde indígena apenas em termos de “serviços adequados” a serem postos “à disposição das populações interessadas”, de acordo com o “estudo sistemático” de suas “condições sociais, econômicas e culturais”, e acompanhando “a aplicação de medidas gerais de progresso social, econômico e cultural” (art. 20)[19]. Ou seja, uma concepção de saúde imposta verticalmente e em completa desconsideração aos saberes, práticas e aspirações políticas das próprias populações “interessadas”, e que portanto reproduzia o modelo de dominação colonial e de colonialidade do saber no âmbito da saúde.

Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro e adquirindo o caráter de norma supralegal nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)[20] relativamente aos efeitos da Emenda Constitucional (EC) n.º 45 de 2004, a Convenção trouxe importantes alterações à perspectiva da colonialidade no modelo de atenção à saúde indígena.

É que o principal paradigma adotado pela Convenção 169 está no reconhecimento, pelos Estados partes, das instituições culturais e formas de vida próprias dos povos indígenas. Desvencilhando-se do problemático e falido modelo integracionista que até então prevalecia no plano do Direito Internacional sob orientação da Convenção 107, a Convenção 169 advoga o direito dos indígenas à manutenção de suas identidades próprias através do fortalecimento de seus sistemas culturais, linguísticos e religiosos.

Além disso, ela dota como princípio a ser observado pelos Estados o do respeito às aspirações indígenas a assumirem “o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico” (Preâmbulo, § 5, grifei). Ou seja, reconhece o princípio da autonomia dos povos indígenas.

No tocante ao relacionamento dos governos dos Estados partes com os povos indígenas, a Convenção estabelece dois importantes direitos que pela sua importância e inafastabilidade configuram-se como verdadeiros princípios: os do direito de consulta e de livre participação. O primeiro refere-se ao direito a serem sempre consultados “através de suas instituições representativas” em caso de “medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (art. 6.º, § 1, “a”). O segundo, que seja garantida a sua livre participação em todas as instâncias decisórias nas matérias relativas às políticas e programas que lhes digam respeito (art. 6.º, § 1, “b”).

Além disso a Convenção cobra dos governos – como suporte para a participação plena dos povos indígenas – o estabelecimento de meios capazes de auxiliar no desenvolvimento de suas instituições e iniciativas próprias (art. 6.º, § 1, “c”.), e que as consultas aos mesmos sejam efetuadas “com boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas” (art. 6.º, § 2).

Ao tratar especificamente do tema “Seguridade social e saúde”, afirma que os povos indígenas devem gozar de um “nível máximo possível de saúde física e mental”, seja através de serviços em saúde “adequados” a serem prestados diretamente pelos Estados, seja através da garantia, por estes, dos meios que permitam aos povos indígenas “organizar e prestar tais serviços sob a sua própria responsabilidade e controle” (art. 25, § 1).  A Convenção determina também que se deve priorizar a organização dos serviços em saúde no “nível comunitário”, garantir a participação dos povos indígenas no seu “planejamento e administração”, e que em tais serviços sejam consideradas as “condições econômicas, geográficas, sociais e culturais” indígenas, bem como “seus métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais” (art. 25, § 2, grifei).

Ao mesmo tempo, orienta também para que o sistema de assistência sanitária dê prioridade ao “atendimento primário à saúde”, e à formação e emprego de agentes pertencentes às próprias comunidades, garantindo-se, porém, a existência de “estreitos vínculos com os demais níveis de assistência sanitária” (art. 25, § 3). Por fim, a Convenção 169 estabelece a necessidade de coordenação das ações em saúde com “as demais medidas econômicas e culturais que sejam adotadas no país” (art. 25, § 4).

O tratamento especificamente conferido pela Convenção 169 da OIT à questão da saúde indígena aponta para o explícito reconhecimento de que aqueles povos são possuidores de seu próprio acervo epistêmico no tocante a métodos preventivos e curativos. Essa nova postura trazida pela Convenção contraria frontalmente a marca deixada pelo “conhecimento abissal” de que fala Boaventura de Sousa Santos, que reserva à medicina ocidental a pretensão de ser titular exclusiva do conhecimento válido em saúde.  A Convenção ultrapassa a marca desse conhecimento abissal para afirmar que também os conhecimentos e práticas “não ocidentais” e “não modernos” dos povos originários devem ser considerados como válidos. Trata-se de um reconhecimento que corrobora a compreensão de especialistas em saúde indígena, a exemplo de Barros que afirma que os povos indígenas possuem sua própria “imputação etiológica” e métodos de cura, motivo pelo qual vê como “indispensável a compreensão das categorias tradicionais indígenas acerca do processo saúde-doença”[21].

No momento em que afirma que na atenção à saúde indígena os Estados partes devem considerar as formas próprias da medicina indígena, a Convenção afirma o que muitos daqueles especialistas têm denominado de “princípio da relação de complementaridade” entre a medicina ocidental e a medicina indígena. Athias e Machado[22], por exemplo, afirmam que o cumprimento de tal princípio exigiria, entre outras demandas, a formação interdisciplinar dos profissionais de Saúde em Ciências Sociais e Antropologia da Saúde.

Essa concepção que reconhece a existência de uma “medicina indígena” inserida numa relação complementar com a medicina ocidental, vem no bojo do reconhecimento daquela pluralidade de saberes e práticas ancestrais, historicamente desqualificadas pelos saberes ocidentais modernos. Uma perspectiva que sob inspiração e antes mesmo da aprovação da vigência da Convenção 169 pelo Congresso Nacional Brasileiro, se fez presente na redação do Decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999[23]: ao dispor sobre as condições para a prestação de assistência à saúde indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Decreto referiu-se à necessidade de “reconhecimento do valor e da complementariedade das práticas da medicina indígena” (art. 2.º).

No âmbito das jurisdições constitucionais latino-americanas, ainda em 1992 esse entendimento foi objeto de reconhecimento por parte da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica[24], que ao declarar a compatibilidade do texto da Convenção 169 da OIT com a Constituição daquele país, afirmou que:

(...) el Convenio, al dar vigencia a los “métodos de prevención, prácticas curativas y medicamentos tradicionales” de los indígenas, lo hacen en un contexto paralelo o complementario de los procedimientos o medios curativos impuestos por normas de orden público en materia de salud[25] (Grifei).

Portanto o direito reconhecido aos povos indígenas de aplicação de seus próprios saberes e práticas em saúde não exclui o seu direito de acesso aos demais métodos ofertados pela sociedade não-indígena. Uma interpretação em sentido inverso seria altamente discriminatória e atentatória ao princípio da igualdade.

Conclusão

No Brasil o processo de construção dos direitos indígenas passou nas últimas décadas por consideráveis avanços no plano normativo. Do antigo paradigma constitucional do Estado integracionista e culturalmente homogeneizante, concebido a partir de uma identidade supostamente monocultural e calcada em saberes e práticas eurocêntricas, o constitucionalismo brasileiro avançou no sentido de uma concepção plural, inclusiva e participativa, que reconhece a diversidade étnica e cultural dos povos indígenas e das diversas identidades presentes na sociedade brasileira. O mesmo ocorreu especificamente em torno dos seus direitos à saúde. Concebida antes numa perspectiva meramente assistencial e de caráter individual, a saúde – e em específico a saúde indígena –, passou a ser concebida enquanto um direito fundamental, também de caráter coletivo, cujo acesso é regido sob os princípios da universalidade e equanimidade, e cujo planejamento e gestão não pode mais ser dissociado do princípio da participação e controle sociais.

A tais avanços constitucionais em matéria de direitos indígenas (que à época dos debates constituintes foram bastante influenciados pelas discussões em torno da elaboração da Convenção 169 da OIT), somaram-se a partir de 2004 aqueles obtidos pelos movimentos indígenas em todos os continentes através do texto convencional da organização internacional laboral. Ao reconhecer aos povos indígenas os direitos de controle de suas próprias instituições e formas de vida, de consulta prévia diante de medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente, e de livre participação nas instâncias decisórias relativas a políticas e programas que lhes digam respeito, a Convenção 169 da OIT traz para o plano dos compromissos normativos formais adotados pelos Estados partes, contribuições significativas naquela perspectiva denominada por Quijano como “opção descolonial”, a ser adotada na relação dos Estados e da sociedade com aqueles povos.

Contudo, em que pesem as conquistas no plano formal, a crônica diária das violências sofridas pelos povos indígenas em todo o país, como de resto em toda a América Latina, e que inclui elevados índices de morbidade e baixa densidade democrática nas estruturas vigentes responsáveis pela atenção à saúde dessas populações específicas, revela que há muito ainda por fazer. Enquanto grande parte das doenças que acometem as comunidades indígenas decorrem diretamente das crescentes pressões de mercado sobre suas terras e recursos naturais, num evidente processo de manutenção das relações coloniais pelos interesses do capital transnacional, são cada vez mais restritos os espaços concretos de saberes e práticas em saúde, próprias de tais comunidades. Apesar disso, as possibilidades jurídicas trazidas pela Convenção 169 no sentido do respeito aos conhecimentos e métodos das formas indígenas de medicina constituem uma relevante conquista de direitos. Mais uma conquista de direitos que aguarda ser efetivamente levada a sério.

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LACERDA, Rosane Freire. A Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da OIT na perspectiva da descolonização da saúde indígena no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4071, 24 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29310. Acesso em: 22 dez. 2024.

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