5. O papel dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário na efetividade social dos direitos fundamentais sociais nas relações de trabalho
A chamada dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais significa que esses direitos constituem valores que o Estado não deve apenas respeitar, mas buscar a promoção e proteção com a adoção de uma postura ativa. Dessa forma, ainda que não sejam os destinatários precípuos das normas, como no caso da incidência dos direitos sociais nas relações de trabalho privadas, o Estado deve atuar como um verdadeiro guardião dos direitos fundamentais e, por meio dos seus três Poderes, buscar a efetividade social que se espera desses direitos.
Segundo Dirley da Cunha Jr., o direito fundamental à efetivação da Constituição apresenta uma dupla dimensão. De acordo com a dimensão subjetiva investe, o direito fundamental investe o cidadão da posição jurídica subjetiva de exigir, inclusive judicialmente, o desfrute imediato desses direitos, independente de intervenção legislativa e de exigir a emanação de normas ou atos materiais para a concretização constitucional. A dimensão objetiva, por sua vez, irradia uma eficácia dirigente, impondo ao Estado o dever jurídico de concretizar e realizar todas as normas constitucionais, incumbindo a todos os órgãos e entidades estatais o dever-poder de efetivá-las.
5.1. Vinculação dos Poderes Legislativo e Executivo aos direitos fundamentais sociais do trabalhador
Como já dito anteriormente, as chamadas normas programáticas são encaradas de forma bastante ampla e genérica e, ainda que se entenda que possuem o mesmo caráter das demais normas e são dotadas eficácia jurídica, portanto aptas de desencadear efeitos nas relações jurídicas, essas normas traduzem expressamente um dever ao Legislativo de concretizá-las para realizar os fins, programas e ordens estipulados por elas.
Mesmo que passíveis de direta aplicação, independentemente da intervenção legislativa, entendemos que o papel do Poder Legislativo é essencial ao princípio da efetividade da Constituição, por isso, no deslinde da sua atividade, deve observar algumas orientações e limitações.
As normas programáticas de direitos fundamentais sociais contém imposições que vinculam o legislador, não apenas obrigando a concretizar os programas, tarefas, fins e ordens, mas também que o legislador, ao cumprir seu desiderato, não pode afastar-se dos parâmetros pré-estabelecidos nas normas definidoras dos direitos fundamentais (SARLET, 2004, p. 290). Embora a liberdade do legislador possa ser maior, no caso das normas programáticas de maior grau de abstração, a atividade deve sempre se pautar nas finalidades ali estabelecidas, e nunca em sentido contrário.
O princípio da proteção, por sua vez, determina que, no exercício da atividade legislativa que imponha regras, institutos, princípios e presunções próprias do direito do trabalho, o legislador deve buscar a proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia, visando retificar ou atenuar, no plano fático-jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano somente fático do contrato de trabalho. Os fundamentos desse princípio são a debilidade econômica do trabalhador em face do empregador e o desequilíbrio causado pela debilidade jurídica do empregado (MEIRELES, 2009, p. 75). Dessa forma, a primeira orientação/limitação ao legislador no exercício da concretização das normas fundamentais sociais programáticas é a implementação de normas que busquem sempre proteger o empregado, não só como trabalhador, mas também como pessoa humana, intervindo sempre no sentido de harmonização das relações de trabalho.
O princípio do não retrocesso foi expressamente consagrado no caput do art. 7º da CRFB/88, ao estabelecer que são assegurados aos trabalhadores outros direitos que visem à melhoria de sua condição social.
O que o legislador constitucional quis estabelecer no rol do art. 7º foi uma série mínima e fundamental de direitos sociais trabalhistas, dando espaço para a concessão de outros direitos, desde que visem à melhoria de sua condição social. Por isso, não se pode admitir que a norma constitucional derivada ou norma infraconstitucional que tenta a não gerar uma melhoria na condição de trabalho, o que seria inconstitucional.
Segundo Ingo Wolfang Sarlet (2004, p. 265), a garantia de intangibilidade desse núcleo ou conteúdo essencial de matérias asseguram a identidade do Estado brasileiro e a prevalência dos princípios que fundamentam o regime democrático, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana, e resguarda também a Carta Constitucional dos casuísmos da política e do absolutismo das maiorias parlamentares. O reconhecimento da proibição ao retrocesso, então, impede a frustração da efetividade constitucional, já que, ao revogar o ato que deu concretude a uma norma programática ou tornar inviável o exercício de um direito, o legislador estaria acarretando um retorno à situação de omissão inconstitucional anterior.
O Poder Executivo também está vinculado aos direitos fundamentais sociais, de acordo com o princípio da máxima eficácia e efetividade dessas normas, devendo observar no exercício das suas atividades administrativas a interpretação, aplicação e concretização dos direitos dos trabalhadores, já que, mesmo como normas programáticas, possuem eficácia jurídica para vincular os particulares e os poderes estatais.
5.2.2. Concretização direitos fundamentais sociais do trabalhador pelo Poder Judiciário
Como já dissemos, o reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais sociais impõe uma eficácia jurídica imediata a esses direitos, que passam a integrar o sistema de proteção do trabalhador e a incidir diretamente nas relações trabalhistas. No entanto, as normas fundamentais de baixa densidade normativa, não conseguem atingir a eficácia social que esperamos delas e, por isso, deve o Poder Judiciário intervir nas relações de trabalho em prol da efetividade dos direitos fundamentais sociais do trabalhador. Com essa ideia de concretização máxima das normas constitucionais, o dever de efetivação que antes era dirigido apenas ao legislador, à sua oportunidade e conveniência, também se dirige ao Poder Judiciário.
Paulo Bonavides destaca que o Poder Judiciário não tem apenas a função de interpretar os dos direitos fundamentais mas, sobretudo, concretizá-los, tendo o juiz constitucional a incumbência de proteger os direitos fundamentais e sendo a concretização tarefa essencial, sob a égide de uma nova hermenêutica, de caráter material, baseada no valor da dignidade da pessoa humana (BONAVIDES, 1998, p. 518).
Entretanto, a atuação do Poder Judiciário é por muitos questionada, criticando-se uma chamada judicialização da política e até mesmo a quebra do princípio da separação dos poderes. No entanto, esse processo, no contexto brasileiro, é uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado da vontade política.
É importante destacar que a concretização dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário não tem como intenção usurpar as funções que são próprias do Poder Legislativo, ou do Poder Executivo, mas que, em face do princípio da supremacia da Constituição, a garantia prevista deve ser prontamente exequível e imediatamente aplicável, por isso, o Judiciário pode produzir o direito.
Além disso, a atividade de concretização pelos magistrados trata-se de verdadeiro poder-dever, uma vez que lesão ou ameaça a direito não podem ser excluídos da apreciação do Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da CRFB/88. E, sem dúvidas, os direitos fundamentais, ainda que programáticos e de alta abstração, são direitos e, por isso, não pode o Poder Judiciário negar-lhe tutela, quando requerida, sob o fundamento de ser um direito não exigível ou invocar a não-imperatividade ou ausência de caráter jurídico da norma que o confere.
Andreas J. Krell considera, inclusive, os juízes como corresponsáveis pelas políticas dos outros poderes estatais, tendo que orientar a sua atuação para possibilitar a realização de projetos de mudança social. Segundo o autor, exige-se um Judiciário intervencionista que realmente ousa controlar a falta de qualidade das prestações dos serviços básicos e exigir implementação de políticas sociais eficientes (KRELL, 2002, p. 72). Dessa forma, onde os Poderes Legislativo e Executivo falham ou são omissos, cabe ao Poder Judiciário uma postura ativa na realização desses fins sociais e regras orçamentárias, reserva do possível ou ausência de recursos não podem justificar a falta de concretização dos direitos fundamentais sociais.
O próprio art. 8º da CLT privilegia a atividade criativa do magistrado:
Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
Em relação ao processo de concretização dos direitos fundamentais sociais em si, precisamos ter em mente que, nas relações privadas, os particulares destinatários das garantias também possuem o direito fundamental da autonomia privada constitucionalmente protegido. Sendo assim, diante de um caso concreto conflituoso envolvendo os direitos fundamentais sociais e o princípio da autonomia privada, a análise tópico-sistemática se dará de forma semelhante às hipóteses de colisão entre princípios, com a busca de uma solução calcada na ponderação dos valores.
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa das regras. Se dois princípios colidem, um deles terá que ceder, o que não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. O que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a precedência pode ser resolvida de forma oposta. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios ocorrem na dimensão do peso: os princípios tem pesos diferentes e os princípios com maior peso tem precedência (ALEXY, 1998, p. 72).
Um importante fator que deve-se considerar na ponderação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é o grau de desigualdade fática entre os envolvidos. E a relação de trabalho é, por excelência, uma relação privada com um alto nível de desigualdade e, por isso, o direito fundamental social do trabalhador demandará uma maior proteção que o direito fundamental à autonomia privada, mas somente prima facie, dada a natureza desses direitos.
Considerações finais
O art. 5º, §1º, da CRFB de 1988 impôs a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais e em momento algum restringiu sua aplicação apenas em face do Estado. A vontade constitucional em se conceder ampla proteção aos direitos fundamentais sociais não pode condicionar a sua efetividade à atividade legislativa, sobretudo numa relação de eminente desequilíbrio, como o é a relação trabalhista.
Embora a regulamentação pela atividade legislativa infraconstitucional seja a opção mais segura juridicamente, não podemos deixar os direitos fundamentais do trabalhador, que constituem o mínimo exigível à sua dignidade, à mercê da discricionariedade do legislador, razão pela qual entendemos que esses direitos devem incidir diretamente nas relações de trabalho particulares, cabendo ao Poder Judiciário a determinar os termos que essa incidência se dará, mas sempre privilegiando a efetividade das normas constitucionais e a concretização social das normas fundamentais sociais.
Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2ª Ed. Coimbra: Almedina, 1998.
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 6. ed. São Paulo: Renovar, 2002.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª Ed. Coimbra: Almedina, 2003.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. Juspodivm: Salvador, 2011.
ERMIDA URIARTE, Oscar. A flexibilização no Direito do Trabalho. A experiência Latino-Americana. In: Tribunal Superior do Trabalho (Org). Flexibilização no Direito do Trabalho. 2ª ed. São Paulo: IOB Thompson.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 6ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
KRELL, Andreas. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha – Os (Des)Caminhos de um Direito Constitucional “Comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
MEIRELES, Ana Cristina Costa; MEIRELES, Edilton. A intangibilidade dos direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2009.
QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais: Funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.