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Formação histórica e caracteres essenciais do sistema jurídico anglo-saxônico

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4. conclusão

A common law é um regime de direito que teve origem na Inglaterra, no momento posterior à conquista normanda, em resultado, sobretudo, da ação normativa dos Tribunais Reais de Justiça. A expressão faz referência ao direito “comum” ao inteiro povo inglês, em oposição aos diferentes costumes locais, válidos para cada uma das tribos da ilha britânica.

O fato de a common law não representar, de início, um conjunto de normas de direito material, mas de rigorosas regras de processo, foi determinante para a imposição histórica da jurisprudência como a principal fonte do direito inglês. Era no seio dos Tribunais Reais que o direito era sucessivamente construído, ora pela aplicação de antigas fórmulas consuetudinárias, ora por um julgamento de equidade,  o qual, posteriormente, com a atuação do Chanceler, tornou-se gradativamente objetivo ante forte influência de princípios dos direitos romano e canônico. A inexistência de um corpo normativo estático, codificado, conduziu ao inevitável recurso aos precedentes por parte dos juízes e advogados. Na ausência de uma norma escrita, o precedente era, por vezes, o único documento jurídico que assentava uma possível solução oficial para o conflito, sendo certo, ainda, que o tratamento uniforme de casos semelhantes atendia à noção de justiça, pela satisfação do valor da igualdade.

São caracteres essenciais do direito inglês, exemplificativo do sistema da common law [46]:

a) não se tratar de direito consuetudinário, mas jurisprudencial, em que o Poder Judiciário francamente cria o direito, com base na “razão”;

b) a regra de direito, tanto a de origem jurisprudencial quanto a de base legislativa, é formatada sob um prisma nitidamente casuístico, o que a torna muito mais específica que a norma de civil law, resultando em ser vasto o catálogo de direitos daquele ordenamento;

c) modernamente, a lei não mais representa uma fonte simplesmente secundária do direito. O papel da jurisprudência, contudo, permanece ainda mais relevante que o da legislação escrita, constituindo a decisão judicial a legítima forma de integração da regra jurídica legislada ao sistema da common law;

d) a regra do precedente (rule of precedent) ou stare decisis, estabelecida formalmente apenas no século XIX, longe de constituir um entrave ao desenvolvimento da common law, representou uma decorrência lógica da formação histórica do direito inglês, de origem jurisprudencial, e construído sob os quadros normativos do processo. A despeito dela, há um desenvolvimento contínuo do direito anglo-saxônico, sendo que, nos temas tradicionais da common law, raramente o legislador é solicitado a intervir, bastando o trabalho dos tribunais para tal desiderato;

e) a técnica das distinções é o método fundamental de trabalho no âmbito da common law. Tal como a interpretação para o jurista de civil law, a distinção é a base da formação do jurista inglês, cujo treinamento essencial consiste no domínio da técnica distintiva e na percepção dos limites de sua aplicação;

f) diferentemente do que ocorreu no continente europeu, a doutrina, na Inglaterra, exerceu papel eminentemente sistematizador, na medida em que não havia um direito de professores, mas de práticos, já que não se promovia a formação jurídica nas universidades inglesas. Não obstante tal fato, a importância de certas obras doutrinárias (rectius, repositórios sistematizados de jurisprudência, de autoria dos próprios magistrados), a exemplo dos trabalhos de  Glanvill, Bracton, Littleton e Coke, alcançaram o reconhecimento pelos tribunais de “books of authority”, com um prestígio comparável ao da própria lei nos países de civil law. No atual estágio do direito inglês, em que se vivencia a simplificação do processo e o avanço da legislação escrita, os juristas recebem cada vez mais formação universitária, em que lhes são ensinados princípios de direito material, circunstância que tende a alterar significativamente o papel da doutrina nesse sistema jurídico;

g) a base da common law é a “razão”, a partir da qual os magistrados, com o fito consciente de produzirem um sistema de direito coerente, procuravam estabelecer soluções justas em face das circunstâncias dos casos concretos que lhes eram postos a julgamento. Tal realidade não significa que o direito inglês seja mais empírico e menos lógico que o dos países de civil law, vez que no termo de sua atividade judiciária encontra-se um esforço racional, tal como ocorre com a atividade interpretativa na tradição romanista. O direito inglês é, pois, uma obra da razão, distinta da lei, pelo que a common law, “a herança comum das nações de língua inglesa”, em sua essência, assume, na perspectiva saxônica, uma natureza que transcende as fronteiras do Reino Unido, e cuja descrição teórica é a de um direito ideal, que se desvela pela prática forense.


NOTAS

[1] DAVID, 1972, p. 327.

[2] DAVID, 1972, p. 331.

[3] County ,“condado”, é cada uma das regiões administrativas em que se dividem determinados estados unitários europeus. A expressão deriva do francês antigo conté ou cunté (francês moderno: comté, “município”), e difere da forma inglesa country, “país”, de pronúncia assemelhada, cuja etimologia reside no latim arcaico contra, antigamente utilizado para designar os estados soberanos em oposição. A Inglaterra é dividida em condados urbanos e rurais (metropolitan and non-metropolitan counties). Cada county, por sua vez, pode ser subdivido em duas ou mais regiões administrativas denominadas hundreds. Na Europa insular, a divisão em condados e municípios remonta ao período medieval. Cf. MARQUES; DRAPER, 2001, p. 71.

[4] RAMIRES, 2010, p. 63.

[5] LIMA, 2013, p. 95-96.

[6] DAVID, 1972, p. 345.

[7] A common law, de início, era formada, basicamente, por um conjunto de regras de processo, com múltiplas e rigorosas normas formais que identificavam ações específicas para cada tipo de demanda. O direito material era tido como de inferior importância, sendo natural aos juristas ingleses que sua construção fosse efetuada pela jurisprudência, o que dá sentido à consagrada fórmula “remedies precede rights”. A cada writ, ou remédio processual instituído, correspondia um rito, cada um determinando os atos a realizar, a maneira de solucionar certos incidentes, as possibilidades de representação das partes, as condições de admissão de provas, as modalidades de administração dos elementos probatórios e os meios para execução da decisão. O rigorismo formal do processo nos Tribunais Reais, por vezes, conduzia a soluções nitidamente injustas. Cf. DAVID, 1972, p. 338-339. Vide, também, nesse sentido: RAMIRES, 2010, p.  63.

[8] O chanceler era o confessor do rei, encarregado, por consequência, de guiar a sua consciência.  O funcionário conhecia do recurso e, se o julgasse oportuno, transmitia o seu conteúdo ao monarca, o qual decidia no seu Conselho a solução a ser dada ao caso. Cf. DAVID, 1972, p. 346.

[9] LIMA, 2013, p. 96.

[10] DAVID, 1972, p. 345.

[11] DAVID, 1972, p. 346.

[12] DAVID, 1972, p. 346.

[13] DAVID, 1972, p. 347.

[14] DAVID, 1972, p. 348-349.

[15] DAVID, 1972, p. 349.

[16] DAVID, 1972, p. 349.

[17] DAVID, 1972, p. 350.

[18] DAVID, 1972, p. 351.

[19] DAVID, 1972, p. 351-352.

[20] DAVID, 1972, p. 352.

[21] SCHUMPETER, 1908, p. 1.

[22] DAVID, 1972, p. 352.

[23] DAVID, 1972, p. 352.

[24] DAVID, 1972, p. 353-354.

[25] Todo o direito inglês é público, na medida em que o direito, originalmente, confundia-se com a capacidade de conduzir uma demanda até o final perante os Tribunais Reais, os quais, com base nas especificidades do caso concreto, e à luz de antigas normas consuetudinárias, formulariam as regras aplicáveis à espécie. Na perspectiva material e mais moderna, fruto da prerrogativa real e dos writs da equity, público é qualquer direito no ordenamento inglês porque este somente é produzido no curso de uma demanda, por um pronunciamento judicial, que ordena a uma das partes à assunção de determinada conduta, sob pena de contempt of court.

[26] DAVID, 1972, p. 365.

[27] DAVID, 1972, p. 354-384.

[28] Discorrer acerca da natureza dos institutos relacionados fugiria ao objeto do presente estudo. Para uma consideração acerca da equity, do trust e da joint tenancy vide DAVID, 1972, p. 360-373.

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[29] DAVID, 1972, p. 357.

[30] DAVID, 1972, p. 373-375.

[31] A regra do precedente, que estabeleceu aos magistrados a sujeição obrigatória às decisões pretéritas (stare decisis) somente foi instituída, contudo, na segunda metade do século XIX. Verifica-se, daí, que common law e stare decisis, a rigor, não constituem institutos indissociáveis.

[32] DAVID, 1972, p. 383.

[33] DAVID, 1972, p. 385-386.

[34] Note-se que no sistema de civil law ocorre precisamente o contrário: a norma somente é reconhecida como verdadeiramente jurídica quando consagrada por lei em sentido estrito, entendida como o texto jurídico emanado do Poder Legislativo. No Brasil, por mais que uma norma seja reiteradamente esposada pelos tribunais, seu conteúdo somente obriga aos particulares que não participaram do litígio, à Administração Pública e aos demais julgadores, em regra, quando reproduzida em lei ou em súmula vinculante. Ainda quando ostente caráter vinculante, a regra constante do enunciado da jurisprudência soa ao espírito do jurista brasileiro como algo discordante, contrário à ordem natural das coisas: a normalidade somente parece vir quando o enunciado sumular é chancelado pelo Poder Legislativo, a quem se atribui, por razões de ordem histórica e cultural,  inconsciente e equivocadamente, o papel de verdadeiro “titular” do poder normativo.

[35] DAVID, 1972, p. 409-410.

[36] DAVID, 1972, p. 381.

[37] TUCCI, 2010, p. 218-219.

[38] FEDERAL JUDICIAL CENTER, 2013, p. 1-7.

[39] DAVID, 1972, p. 405.

[40] DAVID, 1972, p. 405.

[41] Os costumes comerciais (mercantile customs) não estão sujeitos à regra do “costume imemorial do reino”, mas, igualmente, são raros os que ainda não foram absorvidos pela lei ou jurisprudência.

[42] DAVID, 1972, p. 406.

[43] DAVID, 1972, p. 407-408.

[44] DAVID, 1972, p. 408-409.

[45] TUCCI, 2010, p. 224-226.

[46] DAVID, 1972, p. 409-414.


referências

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad. Hermínio A. Carvalho. 2. ed. Lisboa: Meridiano, 1972.

FEDERAL JUDICIAL CENTER. Sistema jurídico dos Estados Unidos: uma breve descrição. Disponível em: <http://www.fjc.gov/public/pdf.nsf/lookup/Portuguese01.pdf/$file/Portuguese01.pdf> Acesso em 12 abr. 2013.

LIMA, Tiago Asfor Rocha. Precedentes judiciais civis no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.

MARQUES, Amadeu; DRAPER, David. Dicionário inglês-português e português-inglês. 22. ed. 4 reimpr. São Paulo: Ática, 2001.

RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

SCHUMPETER, Joseph E. On the concept of social value. Disponível em: <http://socserv.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/schumpeter/socialval.html> Acesso em: 12. jul. 2013.

TUCCI, José Rogério Cruz e (coord.). Direito processual civil europeu contemporâneo. São Paulo: Lex, 2010. 

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Formação histórica e caracteres essenciais do sistema jurídico anglo-saxônico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4080, 2 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29419. Acesso em: 24 nov. 2024.

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