O legado legal da Copa no Brasil

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Talvez o maior legado que esta Copa do Mundo deixará ao Brasil é o de que se faz necessário refletir - e muito - sobre até que ponto uma entidade privada pode e deve intervir no ordenamento jurídico brasileiro.

Estamos em ano de Copa do Mundo! E a Copa do Mundo 2014 ocorre aqui no Brasil, onde a disputa acontece com a bola rolando nos nossos estádios e também nos Tribunais.

Essa disputa jurídica se dá em razão da Lei nº 12.663/2012 (Lei Geral da Copa), que está em vigor em nosso país e foi editada em decorrência do acordo firmado entre o Brasil e a FIFA, a fim de que o Brasil pudesse sediar o festejado mundial.

O “chute inicial” foi dado pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu que a Lei Geral da Copa é constitucional, na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN nº 4976, proposta pela Procuradoria-Geral da República. Dessa forma, a lei está valendo.

De maneira ampla, a Lei Geral da Copa visa assegurar os direitos comerciais da FIFA, trazendo consequências nos âmbitos civil e criminal para quem buscar se beneficiar do evento Copa do Mundo sem ter a autorização da FIFA.

Tal lei disciplina vários aspectos relacionados ao evento, porém o que causa maior preocupação é o “Capítulo VIII – Disposições Penais”, uma vez que passa a ser considerado crime no Brasil, durante o período da Copa do Mundo e após – mais especificamente até 31 de dezembro de 2014 – certas condutas que não mereceriam previsão criminal.

Essa questão da criminalização de condutas, com o objetivo de proteger os interesses da FIFA, ainda não foi levada aos Tribunais, mas o fato de tornar crime comportamentos de menor importância para a sociedade brasileira, é um verdadeiro “gol contra” dos nossos legisladores.

São quatro os crimes previstos na Lei Geral da Copa, nos seus artigos 30 a 33, a saber: Artigos 30 e 31 – Utilização Indevida de Símbolos Oficiais (da FIFA); Artigo 32 – Marketing de Emboscada por Associação; Artigo 33 – Marketing de Emboscada por Intrusão.

Partindo da ideia de que a verdadeira razão de ser do Direito Penal está na proteção dos bens jurídicos, que são os interesses elementares para a convivência em sociedade, conclui-se que não se justifica a utilização do Direito Penal, que é o recurso extremo que a sociedade dispõe para coibir uma conduta, para defender interesses exclusivamente econômicos de uma instituição privada, que é a FIFA.

Vale sempre lembrar que um dos princípios mais importantes do Direito Penal é o Princípio da Intervenção Mínima. A interferência do Direito Penal na vida dos cidadãos e na sociedade é tão grande, que ele só deve “entrar em cena” quando houver ofensa grave a um bem jurídico verdadeiramente relevante. Dessa forma, qualquer criminalização de conduta que não tenha a função proteger um bem jurídico relevante será inconstitucional.

Assim, a principal intenção do Princípio da Intervenção Mínima é limitar um possível arbítrio do legislador, que se acredita ter ocorrido na Lei Geral da Copa, onde os interesses privados da FIFA se sobrepuseram aos interesses da população brasileira e foram elevados ao status de interesse público justificando uma intervenção penal.

O comportamento de utilizar indevidamente símbolos oficiais da FIFA ou praticar marketing de emboscada não precisaria do Direito Penal para ser combatido, uma vez que todas as demais formas de controle social – dentre elas o Direito Administrativo e o Direito Civil – seriam suficientemente adequadas para preservar os interesses privados da FIFA. Assim, bastaria punir o infrator dessas regras com uma multa, como ocorre, por exemplo, com as infrações de trânsito.

Um alento é o de que, pelo menos no que diz respeito às disposições penais dessa lei, a Copa do Mundo não poderá deixar para sempre seu legado legal, pois as regras da Lei Geral da Copa só vigoram até 31 de dezembro de 2014, felizmente.

Talvez o maior legado que esta Copa do Mundo deixará ao Brasil é o de que se faz necessário refletir - e muito - sobre até que ponto uma entidade privada pode e deve intervir no ordenamento jurídico brasileiro, chegando à situação limite de se criar novos crimes tão somente para viabilizar ao país o “privilégio” de sediar um grande evento internacional.

Por fim, em que pese, a nosso ver, o equívoco do legislador brasileiro, resta a esperança de que, caso seja essa lei penal aplicada, nossos Tribunais tenham a sensibilidade de interpretá-la à luz de nossos princípios, de nossa doutrina e de nossa jurisprudência, para o bem do Brasil.

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Sobre os autores
Flávio Filizzola D'Urso

Advogado Criminalista, Mestrando em Direito Penal pela USP, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal), com Especialização pela Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha), integrou o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2018) e foi Conselheiro Estadual da OAB/SP (gestão 2016-2018).

Adriana Filizzola D'Urso

Advogada criminalista, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), mestre e doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha), membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP, membro da Comissão de Direito Penal da OAB/SP, membro da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa (CJLP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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