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A organização jurídica formal e o pluralismo jurídico e judiciário em Cabo Verde

Leia nesta página:

O sistema jurídico formal de Cabo Verde não esgota todas as fontes normativas efetivamente vigentes de solução de controvérsias. Há meios que ficam a cargo de instâncias parajudiciais, os quais gozam de maior aceitação popular.

Sumário: 1. INTRODUÇÃO .2. A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA FORMAL EM CABO VERDE .2.1. A Justiça Comum Cabo-Verdiana .2.2. Justiça Militar Cabo-Verdiana .3. O “PLURALISMO JURÍDICO” EM CABO VERDE .4. CONCLUSÕES 


1. INTRODUÇÃO

O enfoque do presente estudo consiste em uma breve abordagem descritiva do sistema judiciário formal cabo-verdiano, de forma a possibilitar uma noção inicial de sua organização e das suas características gerais. O termo formal em epígrafe no título deste ensaio decorre – conforme se pretende demonstrar – da falta de homogeneidade da jurisdição institucional de Cabo Verde e da consequente pluralidade de meios consuetudinários alternativos de resolução de conflitos.

Com efeito, busca-se aqui relatar a existência de um verdadeiro “pluralismo jurídico” em Cabo Verde, caracterizado por formas híbridas de resolução de determinadas classes conflitais, que por sua vez são ocasionadas  principalmente pelo alcance limitado e heterogêneo deste sistema, tanto em termos territoriais quanto em termos sociais.

Por fim, a título exemplificativo, serão descritos alguns dos métodos alternativos usuais em Cabo Verde, tais como tribunais consuetudinários desenvolvidos sob os ditames da Igreja Católica e  o comportamento peculiar de agrupamentos comunitários característicos denominados Rebelados, presentes notadamente na Ilha de Santiago,  que constituem fortes argumentos em favor da mencionada existência de um “pluralismo jurídico” no Estado cabo-verdiano.

A fim de concretizar os objetivos descritos, será utilizada como referência básica o Relatório[1] elaborado a partir de um projeto de investigação referente aos “Mecanismos de resolução de litígios nos Palop”, concebido no âmbito da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, de autoria do ilustre Professor Armando Marques Guedes, em conjunto com discentes desta mesma Universidade, como resultado de uma visita de estudo ao Estado de Cabo Verde realizada entre Agosto e Setembro de 2000. Complementarmente, também servirá como fonte bibliográfica o capítulo de um estudo[2], realizado pelo mesmo Professor supramencionado, referente à organização judiciaria cabo-verdiana e ao pluralismo jurídico já apontado como objeto de elucidações do presente estudo, sem prejuízo da utilização de demais referências que se façam relevantes para a pretensão idealizada por esta investigação.


2. A ORGANIZAÇAO JUDICIÁRIA FORMAL EM CABO VERDE

O sistema judiciário de Cabo Verde é caracterizado basicamente por duas instâncias jurisdicionais, estas representadas pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), como instância superior, e pelos Tribunais de Comarca, como órgãos de 1ª.  Instância.

Paralelamente àquela organização, também existe no Estado cabo-verdiano uma Justiça Militar, representada por um tribunal que funciona de forma autônoma e independente dos órgãos da justiça comum, em que pese  as suas decisões serem passíveis de recurso e o consequente controle por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Ainda, podem ser citados também como integrantes da malha judiciária comum de Cabo Verde tribunais aduaneiros e fiscais localizados em alguns concelhos, em que pese a sua característica de especialidade possa ser contestada, conforme se tentará demonstrar.

Passemos primeiramente, portanto, à análise da Justiça Comum cabo-verdiana, para que posteriormente seja pormenorizada a autônoma Justiça Militar.

2.1. A Justiça Comum Cabo Verdiana

A justiça comum de Cabo Verde é composta basicamente pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e por diversos Tribunais de Comarca que se encontram espalhados pelas ilhas que integram o arquipélago cabo-verdiano. Em que pese possam ser encontrados em algumas comarcas  maiores juízos dotados de uma certa especialidade funcional, a regra no Estado de Cabo Verde é de que não existam – à exceção do Tribunal Militar – tribunais especializados. Mesmo os tribunais aduaneiros e fiscais de que se tratou anteriormente não podem ser considerados como verdadeiramente especiais tendo em vista que, na prática, operam como os demais tribunais da justiça comum, não sendo o simples fato de se situarem em prédios apartados dos demais tribunais um fundamento suficiente para os definir como juízos especializados.

Ainda sobre a ausência de especialização por parte dos tribunais cabo-verdianos, há que se ressaltar que não existe – na prática – uma separação entre as fases processuais de declaração e execução, sendo que ambas as fases estão concentradas no mesmo juízo.

Conforme mencionado acima, são os Tribunais de Comarca que exercem a primeira instância jurisdicional de acordo com a organização judiciária cabo-verdiana formal vigente. Tais tribunais são órgãos singulares e  encontram-se subdivididos em classes em função da matéria e do valor da causa – quer se tratem de ações de natureza cível –  ou da medida da pena – em se tratando de ações de natureza penal.

A competência dos Tribunais de Comarca abrange em tese todas as causas que não estejam abrangidas pelas competências do Tribunal Militar e do Supremo Tribunal de Justiça. Ainda, é importante ressaltar que os Tribunais de 1ª instância podem decidir cautelarmente, muito embora tais decisões sevam ser submetidas ao controle do órgão competente, o que lhe retira substancialmente o caráter da celeridade.

No que tange ao papel desempenhado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, cumpre primeiramente ressaltar a sua grande amplitude. Com efeito, a competência deste tribunal superior abrange matérias das mais diversas naturezas, tais como as relacionadas às causas eleitorais, fiscais, administrativas, comerciais, penais, entre outras.

A abrangência de sua competência faz com que o Supremo Tribunal de Justiça cabo-verdiano exerça, na prática, um papel de verdadeiro tribunal constitucional. De fato, ele representa o ponto hierarquicamente mais alto do sistema judiciário formal de Cabo Verde, sendo responsável por matérias tais como a resolução dos conflitos de competência suscitados entre os Tribunais de Comarca, bem como o conflito de jurisdição desencadeado entre os tribunais e as demais autoridades do Estado. Ainda no que tange aos seus poderes constitucionais, cabe ainda ao Supremo Tribunal de Justiça executar o controle de constitucionalidade das normas jurídicas do ordenamento em questão, tanto na forma de controle concreto, quanto abstrato.

Ademais, a Lei de Organização Judiciária de Cabo Verde prevê uma competência para o Supremo Tribunal de Justiça de uniformização da jurisprudência. Tal disposição – pode-se inferir – está relacionada com um recente esforço que tem emergido em Cabo Verde no sentido de que as decisões emanadas deste órgão gozem de uma certa coerência unitária, posto que a carência latente desta coerência por parte das decisões proferidas resta por prejudicar a segurança jurídica do ordenamento jurídico em questão. Tanto é verdade que não há coerência unitária em matéria de julgados, que são raras nos julgados do Supremo Tribunal de Justiça as menções a outras decisões como forma de fundamentação. Neste ponto, há que se ressaltar portanto que é a Lei a principal fonte normativa dos processos decisórios.

Por fim, no que tange às atribuições do Supremo Tribunal de Justiça, há que se ressaltar a sua competência enquanto tribunal recursal. Com efeito, é deste tribunal a competência para julgar recursos impetrados em virtude de atos praticados pela Administração Pública, bem como para revisar as sentenças proferidas pelos Tribunais de 1ª Instância.

Percebe-se assim um certo “afogamento” das competências do Supremo Tribunal de Justiça, vez que nele se concentram grande parte das competências usualmente repartidas entre órgãos especializados nos Estados Democráticos de Direito mais evoluídos.

Uma vez tecidos estes comentários a respeito das generalidades a respeito da Justiça Comum, passa-se a descrever as características gerais da Justiça Militar que se afigura no estado cabo-verdiano.

2.2. A Justiça Militar Cabo-Verdiana

Conforme já relatado na introdução deste capítulo, a Justiça Militar em Cabo Verde funciona de maneira autônoma. Ela é composta apenas por um único Tribunal Militar localizado na cidade da Praia e sua competência abrange as causas que envolvam crime de natureza essencialmente militar, sendo estes definidos pelo Código de Justiça Militar cabo-verdiano.

Os juízes que compõem este tribunal devem impreterivelmente ser integrantes do quadro permanente de oficiais das Forças Armadas cabo-verdianas, sendo nomeados por despacho do Ministro da Defesa Nacional, chefe administrativo do Ministério a que o Tribunal Militar está subordinado. Em que pese a sua completa autonomia funcional, é importante referir que, em regra, as decisões proferidas pelo Tribunal Militar estão sujeitas à revisão posterior por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Uma questão importante prende-se à crítica que é feita com relação à existência deste Tribunal Militar e de seu funcionamento autônomo ao sistema judiciário comum, tendo em vista que esta favorece uma tendência corporativista que não coaduna com os ditames de um perfil democrático de Estado.

Não obstante a pertinência da crítica formulada, há de se recordar o quanto mencionado acerca do excesso de funções do Supremo Tribunal de Justiça e do consequente aumento deste acúmulo de competências caso o Tribunal Militar deixasse de existir em Cabo Verde, posto que a transferência de suas funções para aquele tribunal seria uma consequência natural de sua extinção.


3. O “PLURALISMO JURÍDICO” EM CABO VERDE

Após a breve descrição, ainda que extremamente sucinta daquilo que se denominou de Organização Judiciária Formal, convém atentar para a questão da falta de implementação e homogeneidade por parte do sistema judiciário institucionalizado e das consequências que isto acarreta na coexistência de meios alternativos não relacionados diretamente com o sistema judiciário.

Com efeito, um dos problemas mais relevantes quanto ao déficit de implementação do sistema judiciário cabo-verdiano dizem respeito a aspectos socioculturais que fogem ao controle efetivo da Administração estatal. Em verdade, muitos nacionais cabo-verdianos preferem se valer de formas híbridas de resolução de conflitos, alimentados sobretudo por uma descrença na legitimidade da jurisdição estatal, que efetivamente não consegue alcançar o território cabo-verdiano em sua totalidade. Ainda, o sistema jurídico formal cabo-verdiano não consegue abarcar todas questões tidas como essenciais por boa parte da população.

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A ausência de instâncias extrajudiciais institucionais de certo colabora com a notável recusa de uma parcela significativa da população de se utilizar do aparato estatal para solucionar os seus litígios. Corroborando com esta idéia, não obstante o seu aspecto curioso, urge referir que no entendimento popular, o acionamento do Poder Judiciário por uma das partes pode ser considerado uma grave ofensa à outra, o que fatalmente resultará no aumento de tensões entre as mesmas.

Como consequência desta ausência ou déficit de atuação do sistema judiciário formal, foram se desenvolvendo formas alternativas de condução de litígios que detêm fundamental importância na cobertura de questões não abrangidas pelo aparato jurisdicional. A atuação destas instâncias para-judiciais, vale ressaltar, contribui ainda de forma significativa para o descongestionamento dos tribunais estaduais.

Uma destas instâncias para-judiciais de que ora se referencia é a Direção-Geral do Trabalho, órgão pertencente ao Ministério do Emprego, Formação e Integração Social e que tem por função coordenar a execução de medidas relacionadas às relações e condições de trabalho. Este órgão possibilita a instauração de um processo administrativo para uma tentativa de conciliação das partes envolvidas sem que seja necessário invocar um tribunal de 1ª instância. Contra o despacho proferido pela Direção-Geral do Trabalho contudo, cabe recurso para um Tribunal de Comarca.

Outra manifestação do pluralismo jurídico em Cabo Verde associa-se com o papel desempenhado por algumas entidades da Igreja Católica que se pautam em critérios adotados pelos ensinamentos canônicos para promover uma tentativa de conciliar e dirimir conflitos basicamente de natureza familiar, tais como as disputas familiares e questões ligadas aos lações matrimoniais ou tutela de menores. Estas instituições, denominadas de “Tribunais de Família”, atuam sobretudo em zonas rurais.

Ainda, há que se ter em vista que muitas pessoas, para não dizer a maioria delas, procuram formas um tanto excêntricas de resolução de conflitos, ligadas à rituais sobrenaturais e práticas de magia, que são detentoras de grande fé e crença por aqueles que as procuram. Tais práticas, em que pese a ausência de parâmetros jurídicos e de critérios de justiça, devem ser levados em consideração para a constatação do pluralismo jurídico cabo-verdiano dado a sua relevância e ampla aceitação popular.

Exemplo manifesto de negação do poder institucional do Estado do Cabo Verde, comunidades autônomas marginalizadas situadas basicamente na Ilha de Santiago não aceitam quaisquer ingerências da atuação estatal no seu dia a dia. Tais agrupamentos, denominados de Rebelados, não coadunam com qualquer tipo de aproximação com tudo aquilo que remeta a um desenvolvimento das políticas advindas do Estado institucionalizado, o que eles mesmos relacionam com quaisquer sinais de modernização. Curioso, contudo, é o fato de que as autoridades governamentais de Cabo Verde não se esforçam no sentido de romper com a manutenção destas comunidades, ao contrário, toleram-nas, posto que estas gozam de um certo status de heróis de resistência anticolonial. Tais comunidades, como se vê, integram a malha de pluralidade jurisdicional cabo-verdiana já referida de uma forma ainda mais chocante.


5. CONCLUSÕES

Após uma breve análise da Organização Judiciária Formal do Estado de Cabo Verde e de suas características mais genéricas, passando por uma descrição sucinta dos órgãos que compõem o seu sistema judiciário e do papel desempenhado pelos mesmos, restou mencionado o déficit de implementação deste mesmo sistema frente à falta de homogeneidade de seu alcance e da descrença popular em sua legitimidade para solucionar as questões que surgem entre particulares.

Em continuação à linha de raciocínio seguida, procurou-se relacionar este déficit com o surgimento de formas híbridas de solucionar os litígios que não poderiam ser suscitados nos tribunais do sistema judiciário formal.

Conforme os objetivos deste estudo descritos anteriormente, o que se pretende demonstrar com os comentários acerca dos métodos alternativos presentes no Estado cabo-verdiano é que, na prática, o sistema jurídico formal deste Estado não esgota todas as fontes normativas efetivamente vigentes, que restam por ficarem a cargo de instâncias para-judiciais que gozam de uma maior aceitação popular em termos gerais.

Ainda que se  perceba certa tendência – notadamente elitista – em minimizar a publicidade em torno da utilização dos meios híbridos de resolução de conflitos, a existência de um pluralismo jurídico em Cabo Verde, neste aspecto, não pode ser negada.


Notas

[1]Armando Marques Guedes et al. (2001), “Litígios e pluralismo em Cabo Verde. A organização judiciária e os meios alternativos”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da UNL 3: 1-69, Lisboa.

[2]Armando Marques Guedes (2004), “O Estudo dos Sistemas Jurídicos Africanos”, Almedina, Coimbra, pág. 127-136.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSÊCA, Victor Albuquerque Feijó. A organização jurídica formal e o pluralismo jurídico e judiciário em Cabo Verde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29640. Acesso em: 27 dez. 2024.

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