1.- INTRODUÇÃO
Antes mesmo de adentrarmos, especificamente, no tema das provas ilícitas, impõem-se algumas considerações pertinentes ao monopólio da jurisdição, aos princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como ao sistema probatório.
A partir do momento em que o Estado avocou para si, a responsabilidade de aplicar o direito, restou assegurada a todos, indistintamente, a possibilidade de acesso, amplo e irrestrito, à jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV da C.F.).
Assegurou-se, ainda, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, de forma que as partes podem se valer de todos os meios de prova à reconstrução dos fatos constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito alegado (artigo 5º, inciso LV da C.F.).
Surge, portanto, a primeira questão:
Ainda que entendido como componente inafastável do princípio do contraditório e da ampla defesa, "o direito à prova pode ser considerado como um valor absoluto?”
Convém, antes mesmo de responder a esta indagação, considerar que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVI, estabelece que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
Em decorrência dessa regra de exclusão, surge uma outra indagação: O princípio da inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meio ilícito, seria, igualmente, absoluto?
Mesmo que se admitisse, a título de argumentação, como verdadeira essa proposição, "seriam admissíveis, no processo, as provas ilicitamente obtidas desde que favoráveis ao réu?
Por outro lado, por vezes, as informações obtidas através de provas ilícitas propiciam a produção de outras provas, cuja colheita se faz licitamente.
Nesse sentido, indaga-se, mais uma vez: "seriam igualmente ilícitas, por contaminação, as provas produzidas com base em informações extraídas de provas obtidas ilicitamente?
No presente estudo buscaremos, com base na doutrina e jurisprudência, fornecer subsídios que nos permitam responder as indagações suscitadas.
2.- MONOPÓLIO DA JURISDIÇÃO
A Constituição Federal, ao dispor, em seu art. 5º, inciso XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", conferiu ao Estado, de forma plena e absoluta, o monopólio da jurisdição.
Infere-se, do citado dispositivo constitucional, que, "ao proibir os cidadãos de resolverem por si suas contendas, o Estado avacou o poder de resolver os conflitos de interesses inerentes à vida social e, correlatamente, adquiriu o dever de prestar certo serviço público, que é a jurisdição. Aos interessados nessa atividade, o Estado reconhece o direito de provocá-la, preventiva ou repressivamente." [1]
Assim, conforme salienta Nelson Nery Júnior, "podemos verificar que o direito de ação é um direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo à sentença tout court, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas as condições da ação". [2]
Nesse sentido, "o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerida pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição (RT 99/790), uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue" [3]
Dentre os antecedentes da previsão legislativa do direito à tutela jurisdicional podemos citar: a Declaração Universal dos Direitos Humanos - ONU, em 10/12/1948; a Convenção Européia para salvaguarda dos Direitos dos Homens e das Liberdades Públicas - Roma, em 04/11/1950; o Pacto Internacional de Direitos Civis em 16/12/1966 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em São José da Costa Rica, em 22/11/1969.
Em suma, diante da impossibilidade de se negar o acesso ao Judiciário, confere-se a todos os jurisdicionados, indistintamente, a possibilidade de acesso, amplo e irrestrito, à jurisdição.
Em suma, assegurar o direito de ação no plano constitucional é garantir o acesso ao devido processo legal (C.F., art. 5º, inciso LIV), "princípio fundamental do processo civil que entendemos como a base sobre a qual todos os outros se sustentam...Assim é que a doutrina, diz, por exemplo, serem manifestações do 'devido processo legal' o princípio da publicidade dos atos processuais, a impossibilidade de utilizar-se em juízo de prova obtida por meio ilícito, assim como o postulado do juiz natural, contraditório e do procedimento regular." [4]
3.- DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, inciso LV, que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."
O princípio do contraditório, "tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação... É inerente às partes litigantes - autor, réu, litisdenunciado, opoente, chamado ao processo, assim como também ao assistente litiscorsocial e simples e ao Ministério Público, ainda quando atue na função de fiscal da lei. Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, realizarem as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos." [5]
Por ampla defesa, entende-se o "asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade... A ampla defesa só estará plenamente assegurada quando uma verdade tiver iguais possibilidades de convencimento do magistrado, quer seja ela alegada pelo autor, quer pelo réu... Às alegações, argumentos e provas trazidos pelo autor é necessário que corresponda uma igual possibilidade de geração de tais elementos por parte do réu." [6]
Na verdade, contraditório e ampla defesa (art. 5º, inciso LV, C.F.), são expressões diferentes utilizadas para assegurar, às partes, a possibilidade da mais ampla participação na formação do convencimento do juiz.
Defesa e contraditório "estão indissoluvelmente ligados porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa - como poder correlato ao de ação - que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e integração da defesa e do contraditório." [7]
4.- SISTEMA PROBATÓRIO
O vocábulo - prova - deriva do latim, do verbo probare, significando: provar, ensaiar, verificar, examinar, reconhecer por experiência, persuadir alguém, demonstrar etc.
Na linguagem comum, a prova é utilizada para comprovação da verdade de uma proposição; somente se fala de prova a propósito de alguma coisa que foi afirmada e cuja exatidão se pretende comprovar.
No sentido jurídico, que é o que nos interessa realmente, significa a produção dos atos ou dos meios com os quais as partes ou o juiz pretendem afirmar a verdade dos fatos alegados (atus probandi); significa ação de provar, de fazer a prova. Nessa acepção se diz: a quem alega cabe fazer a prova do alegado, isto é, cabe fornecer os meios afirmativos de sua alegação. [8]
O seu conceito não é unívoco, podendo significar, não só a atividade desenvolvida pelos sujeitos do processo visando demonstrar a verdade dos fatos alegados, no intuito, único e exclusivo, de formar o convencimento do juiz, como, também, os próprios meios ou instrumentos considerados em si mesmos.
Contudo, se o que se pretende, através da prova, é a verdade dos fatos alegados, impõe-se, desde já, precisar o conceito de verdade.
A verdade é a conformidade da noção ideológica com a realidade. Conceito da verdade relativa, não da verdade absoluta, sempre procurada, nunca alcançada. Se a verdade somente pode ser procurada e se apresentar através dos sentidos e da inteligência, compreende-se logo, precários como são aqueles, insuficiente como é esta, a relatividade que deve presidir a conformidade da noção ideológica com a realidade. [9]
De fato, não se busca a verdade, enquanto certeza absoluta, pretensão essa inatingível por variar no tempo e no espaço, mas sim a verdade calcada na certeza relativa suficiente para que o magistrado forme a sua convicção.
Todas as ações têm, por fundamento, um ponto de direito e um ponto de fato. Inúteis seriam as leis se não tivessem relação com algum fato, e desnecessárias seriam, também, as ações que constituem uma das teorias mais graves do direito, e mais indispensáveis para que ele se torne efetivo, se não houvesse os meios de investigar e determinar esses fatos que constituem o fim para o qual se dirigem as ações e o elemento objetivo do direito. Esses meios de investigar os fatos são o que chamamos de prova. [10]
Na ação há, assim, a afirmação da violação ou ameaça de lesão a direitos em decorrência dos fatos alegados. Daí porque se diz que a ação tem por fundamento um ponto de fato, que deve ser provado, porque é na verdade resultante dessa prova que a sentença, a ser proferida no processo, vai se assentar para restaurar, em sua inteireza e plenitude, o direito ameaçado ou violado.
A questão de fato se decide pelas provas, através das quais se chega à certeza relativa da verdade, reitere-se, de forma a incutir no espírito do julgador a convicção da existência do fato perturbador do direito a ser restaurado. "A finalidade da prova não é outra senão convencer o juiz, nesta qualidade, da verdade dos fatos sobre os quais ela versa." [11]
Em tese, portanto, as partes podem se valer de todos os meios de prova, possível e adequada, à reconstrução dos fatos constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito alegado.
Contudo, ainda que entendido como componente inafastável do princípio do contraditório e da ampla defesa, indaga-se:
O direito à prova pode ser considerado como um valor absoluto?
5.- DA PROVA ILÍCITA
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVI, estabelece que 'são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos."
Segundo Ada Pellegrini Grinover, "a prova é ilegal toda vez que sua obtenção caracterize violação de normas legais ou princípios gerais do ordenamento, de natureza processual ou material. Quando a proibição for colocada em lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando ao contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida." [12]
Impõe-se, por oportuno e desde já, esclarecer que, neste estudo, consideraremos a prova ilícita, assim como a prova ilegítima, espécies do gênero de provas vedadas.
Nesse sentido, quando a nossa Constituição, em seu artigo 5º, inciso LVI, estabelece que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícitos", significa dizer que são vedadas não só as denominadas provas ilegítimas como, igualmente, as ilícitas.
Prova ilegítima é aquela cuja colheita estaria ferindo normas de direito processual.
Assim, a própria lei processual (penal e civil) contém inúmeros dispositivos excludentes de determinadas provas, bastando, para tanto, trazer à colação os seguintes exemplos:
- artigo 206 - CPP - A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro meio, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias.
- artigo 207 - CPP - São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho;
- artigo 405 - CPC - Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas....
Verifica-se, pois, que a própria lei processual determina as formas e modalidades de produção da prova, indicando, inclusive, a sanção correspondente em caso de transgressão.
A prova ilícita, por seu turno, é aquela obtida com infração a normas ou princípios de direito material, por envolver questões relativas às liberdades públicas, mais especificamente, aos direitos e garantias pertinentes à intimidade, à liberdade e à dignidade humana.
Além da natureza da norma violada - processual ou material - pode-se, ainda, distinguir a prova ilegítima da prova ilícita, em relação ao momento da sua produção.
Na prova ilegítima, a ilegalidade ocorre no momento da sua produção no processo, ao passo que a prova ilícita pressupõe a violação no momento da produção da prova, sempre externamente ao processo.
É solar, portanto, a distinção da prova ilícita com a prova ilegítima, vez que a primeira além de violar regra de direito material, antecedendo, portanto, à fase processual, não podendo ser juntada aos autos e não podendo ser renovada. Já a segunda, é um fenômeno endoprocessual e é nula (assim é declarada pelo juiz e deve ser refeita, renovada, consoante o disposto no art. [573] do CPP).
Nesse sentido, Ana Pellegrini Grinover afirma que "a distinção é feita em dois planos: quanto à natureza da norma violada (sendo de caráter processual, a prova será ilegítima; sendo de caráter material, será ilícita); e quanto ao momento da transgressão, pois a prova ilícita indica violação no momento da colheita da prova, enquanto na ilegítima ocorre no momento de sua produção no processo." [13]
Feitas tais considerações que se faziam pertinentes, podemos conceituar provas ilícitas "como instrumentos inaptos à formação do convencimento do juiz por estarem inquinadas de vícios comprometedores da norma material, assim como dos princípios constitucionais". [14]
As provas ilegítimas ou ilícitas hão de ser tidas, assim, como imprestáveis a sua função em virtude dos vícios que as contaminam.
Contudo, indaga-se, assim como o fizemos anteriormente:
O princípio da inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meio ilícitos, seria absoluto?
6.- DEVIDO PROCESSO LEGAL
A Carta Magna assegura, como direito e garantia fundamental, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ex vi do inciso LIV, artigo 5º, ressurgindo, portanto, de forma cristalina, que em todos os momentos processuais deverão ser obedecidas regras e princípios que tragam a necessária efetividade.
Com efeito, dentre os princípios, encontra-se solar a vedação constitucional inserta no inciso LVI do mesmo artigo, que diz serem “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Posto isto, “é de rigor reconhecer que qualquer violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à invalidade da prova[15].
Ensina-nos o mestre que
A integral exigência de nossa Corte Suprema aos “padrões normativos” e “parâmetros ético-jurídicos” na colheita de “elementos probatórios” é igualmente observado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao se referir ao devido processo legal como fundamental para “evitar abusos estatais” e construir “a confiança do povo numa administração imparcial da Justiça” (Decisão – Beschluss – do Primeiro Senado de 8 de janeiro de 1959 – 1 BvR 396/53).
Não são por outros motivos que, como corolário ao devido processo legal, nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil, são inadmissíveis no processo as provas ilícitas, definidas como aquelas obtidas com infringência ao direito material, entendendo-as como sendo aquelas colhidas em desrespeito aos direitos fundamentais e inviolabilidades públicas (por exemplo, por meio de tortura psíquica, desrespeito a intimidade e vida privada, desrespeito à inviolabilidade domiciliar, quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico sem ordem judicial devidamente fundamentada), configurando-se importante garantia em relação à ação persecutória do Estado.
A inadmissibilidade da utilização das provas ilícitas não tem o condão de gerar a nulidade de todo o processo, pois, a previsão constitucional não afirma serem nulos os processos em que haja prova obtida por meios ilícitos (HC 69.912/RS, HC 74.152/SP, RHC 74.807-4/MT, HC 75.8926/RJ, HC 76.231/RJ); Entretanto, a consequência da ilicitude da prova é sua imediata nulidade e imprestabilidade como meio de prova, além da contaminação de todas as provas que dela derivarem [16].
A mais alta corte do país vem adotando de forma pacífica, a doutrina do fruits of the poisonous tree (fruto da árvore envenenada).[17]
Outro ponto curioso e que deve ser considerado, para a consagração do devido processo legal, é posição do eminente jurista Luiz Flávio Gomes, ao apregoar que “É ingenuidade tratar cartesianamente essa questão, como se a contaminação só atingisse a prova: o maior afetado por ela é o julgador, ainda que inconscientemente.[18] E continua a argumentar que “Por tudo isso, mais do que desentranhar a prova ilicitamente obtida, há que se pensar na exclusão do ilustre julgador que teve contato com essa prova e, portanto, está contaminado”
Dentro dessa esteira, o ilustre professor defende a tese de que “Com isso estamos negando validade para a clássica jurisprudência construída pelos tribunais brasileiros, no sentido de que a proclamação de nulidade do processo por prova ilícita se vincula à inexistência de outras provas capazes de confirmar a autoria e a materialidade; em caso contrário, deve ser mantido o decreto de mérito, uma vez que fundado em outras provas (cf. o já citado HC 40.637-SP , do STJ, rel. Min. Hélio Quaglia, j. 06.09.05). Quem garante que a prova ilícita não teve nenhuma influência na convicção do juiz sentenciante? É por essa razão que aqui tem total aplicação o disposto no art. [573] do CPP: Os atos, cuja nulidade não tiver sido sanada (...) serão renovados ou retificados”.
7.- DAS VÁRIAS TEORIAS A RESPEITO DA ADMISSIBILIDADE DAS PROVAS
O aspecto tormentoso e preocupante, contudo, consiste em saber, por exemplo, se deveríamos admitir uma prova contundente da materialidade e autoria do crime, ainda que violasse direitos individuais, ou, ao reverso, deveríamos desentranhá-la e desvincular seu conteúdo dos autos, ainda que se livrasse solto uma pessoa, comprovadamente, culpada.
Qual seria esse limite? Em que situações poderia ser admitida a prova obtida por meios ilícitos?
A questão das provas ilícitas, desde a tortura até a sofisticação tecnológica das interceptações telefônicas e das comunicações de dados, via internet, gera, ainda, nos dias atuais, dissenso doutrinário e jurisprudencial.
Há três vertentes, bem diferenciadas, no que tange à admissibilidade ou não das provas ilícitas.
7.1.- ADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS
Numa fase preambular e por séculos dominante, prevaleceu a corrente doutrinária que professava a admissibilidade da prova ilícita, em razão de um apego exacerbado ao princípio do livre convencimento do juiz e da busca da verdade real.
Em decorrência, caberia, ao juiz, tão somente, decidir pela existência, ou não, do crime, abstraindo-se, por completo, da forma como lhe chegaram - lícita ou ilicitamente - as provas do fato.
Sustentava-se que, no caso, o ato anterior de captação da prova, embora ilícito, não teria o condão de nulificar ou contaminar os atos posteriores, principalmente de produção da prova que seria lícito em si mesmo.
Nestas condições, deveria prevalecer, em qualquer hipótese, o interesse da Justiça, objetivando descobrir a verdade, reputando-se eficaz a prova ilicitamente obtida, sem prejuízo da aplicação de sanções civis, penais ou disciplinares aos responsáveis.
Portanto, a regra consistia na admissibilidade de toda e qualquer prova no processo, como meio hábil de se convencer o juízo do direito material alegado, tendo em vista que vigorava no ordenamento jurídico o sistema do livre convencimento fundamentado e da busca da verdade real, aplicando-se aos responsáveis, pela ilicitude praticada, as sanções civis, administrativas ou penais cabíveis. Inutilizáveis seriam, tão somente, as provas produzidas em afronta à lei processual.
7.2.- INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS
Outra corrente, contudo, entendia que há outros valores igualmente relevantes e que devem ser levados em consideração, prevendo-se exceções, tendo por fundamento as liberdades individuais.
Para essa corrente doutrinária, que tem por base a preservação dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente, o direito não pode prestigiar comportamento antijurídico, e muito menos consentir que dele se aproveite quem haja desrespeitado preceito legal, com prejuízo alheio, de forma que o órgão judicial não poderá conceder eficácia à prova ilegalmente obtida.
Em decorrência, essas provas, obtidas ilegalmente, devem ser desentranhadas dos autos, não podendo influir sequer no critério subjetivo do órgão julgador, ou seja, o juiz não deverá nem tomar conhecimento da existência destas provas para evitar a influência no julgamento final.
No Brasil, com o advento da Constituição de 1988, o direito positivo adotou a linha que consagra a inadmissibilidade das provas ilícitas (artigo 5º, inciso LVI), apenas excepcionando-a no que tange às comunicações telefônicas, previstas no art. 5º, inciso XII in fine, e regulamentada pela Lei nº 9296/96.
7.3.- PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Uma terceira corrente, contudo, busca atenuar a rigidez da exclusão da prova ilícita em casos de excepcional gravidade, através do princípio da proporcionalidade, quando nos depararmos diante da presença de valores fundamentais contrastantes.
Alexandre de Moraes, ensina que "os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no artigo 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito
Em decorrência, complementa que "quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua." [19]
Como se pode observar, os dispositivos constitucionais trazidos à colação ( inciso LV - ampla defesa e contraditório e o inciso LVI - provas ilícitas), estão inseridos no mesmo artigo 5º, desfrutando da mesma hierarquia, não se podendo falar em supremacia de um em relação ao outro.
Nesse sentido, caberia ao Poder Judiciário, diante do caso concreto, consignar a predominância de determinado valor sobre o outro, uma vez que ao legislador constituinte seria impossível prever todas as hipóteses.
Ada Pellegrini Grinover, em relação ao princípio da proporcionalidade, sustenta que "o que releva dizer é que, embora reconhecendo que o subjetivismo ínsito no princípio da proporcionalidade pode acarretar sérios riscos, alguns autores têm admitido que sua utilização poderia transformar-se no instrumento necessário para a salvaguarda e manutenção de valores conflitantes, desde que aplicado única e exclusivamente em situações tão extraordinárias que levariam a resultados desproporcionais, inusitados e repugnantes se inadmitida a prova ilicitamente acolhida." [20]
8.- DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA NACIONAL
Anteriormente à promulgação da Constituição Federal, "o que de mais significativo havia na matéria, eram, inquestionavelmente, três decisões do Supremo Tribunal Federal, banindo as interceptações telefônicas clandestinas, quer em matéria civil, quer em matéria penal, a caracterizar posição sólida já tomada pelo tribunal de cúpula do pais.
A primeira decisão é de 11.11.1977, ocasião em foi determinado o desentranhamento de fitas gravadas, correspondentes à interceptação de conversa telefônica da mulher, feita pelo marido, para instruir processo de separação judicial (RTJ 84/609). Segue-se a essa, em outro processo cível, a decisão de 28.06.1984, também em caso de captação clandestina de conversa telefônica, igualmente determinando o desentranhamento dos autos da gravação respectiva. (RTJ 110/798)
Finalmente, para o processo penal, o Supremo Tribunal Federal, em decisão de 18.12.1986, determinou o trancamento de inquérito policial baseado em interceptações telefônicas feitas por particulares, confessadamente ilícitas. (RTJ 122/47) [21]
Prevalece, nos dias atuais, de forma majoritária, a tese da inadmissibilidade das provas ilícitas, consagrando a idéia de que o direito à prova não é absoluto, considerando-as como inconstitucionais e violadoras das garantias básicas, como se pode observar dos V. Acórdãos a seguir transcritos:
"HABEAS - CORPUS. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EM PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO. NULIDADE. Interceptação telefônica. Prova ilícita. Autorização judicial deferida anteriormente à Lei nº 9296/96, que regulamentou o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal. Nulidade da ação penal, por fundar-se exclusivamente em conversas obtidas mediante quebra dos sigilos telefônicos dos pacientes. Ordem deferida. [22]
HABEAS CORPUS - 1.- Noticia criminis originária de representação formulada por Deputado Federal com base em degravação de conversa telefônica. 2.- Obtenção de provas por meio ilícito. Art. 5º, LVI, da Constituição Federal. Inadmissibilidade. 3.- O só fato de a única prova ou referência aos indícios apontados na representação do MPF resultarem de gravação clandestina de conversa telefônica que teria sido concretizada por terceira pessoa, sem qualquer autorização judicial, na linha da jurisprudência do STF, não é elemento invocável a servir de base à propulsão de procedimento criminal legítimo contra um cidadão, que passe a ter a situação de investigado. 4.- À vista dos fatos noticiados na representação, o Ministério Público Federal poderá proceder à apuração criminal, respeitados o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. 5.- Habeas corpus deferido para determinar o trancamento da investigação penal contra o paciente, baseada em elemento de prova ilícita." [23]
HABEAS CORPUS - FORMAÇÃO DE QUADRILHA - CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EM PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO - NULIDADE - Interceptação telefônica. Prova ilícita. Autorização judicial deferida anteriormente à lei nº 9296/96, que regulamentou o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal. Nulidade da Ação Penal, por fundar-se exclusivamente em conversas obtidas mediante quebra dos sigilos telefônicos dos pacientes. Ordem deferida." [24]
Anote-se, ainda, que na Ação Penal 307/DF, proposta pelo Ministério Público Federal em face de Fernando Affonso Collor de Mello e outros, o Supremo Tribunal Federal, através V. Acórdão em que foi relator o Ministro Ilmar Galvão, publicado no Diário da Justiça em data de 13/12/1994, acolheu
a inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica e de registros contidos na memória de micro computador, obtidos por meio ilícitos (art. 5º LVI, da Constituição Federal); no primeiro caso, por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, havendo a degravação sido feita com inobservância do princípio do contraditório, e utilizada com violação à privacidade alheia (art. 5º, inc. X, da C.F.); e, no segundo caso, por estar-se diante de micro computador que, além de ter sido apreendido com violação de domicílio, teve a memória nele contida sido degravada ao arrepio da inviolabilidade da intimidade das pessoas (art. 5º, X e XI da C.F.)
Contudo, em que pese esse entendimento seja francamente dominante, começa a surgir outra corrente fundada no princípio da proporcionalidade, admitindo tais provas, em circunstancias especialíssimas, cabendo ao Poder Judiciário, com sabedoria e prudência, indicar qual dos princípios deva prevalecer, esclarecendo-se, ainda mais, que a garantia do cidadão estaria resguardada diante da necessária motivação da decisão judicial.
9.- DAS PROVAS ILÍCITAS PRO REO
A doutrina e a jurisprudência, de forma mansa e pacífica, têm albergado a tese da prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seu ou de terceiros.
Trata-se, segundo Ada Pellegini Grinover, "da aplicação do princípio da proporcionalidade sob a ótica do direito de defesa, também garantido constitucionalmente, e de forma prioritária no processo penal, tudo informado pelo princípio do favor rei. Além disso, quando a prova, aparentemente ilícita, for colhida pelo próprio acusado, tem-se entendido que a ilicitude é eliminada por causas legais, como a legitima defesa, que exclui a antijuridicidade".
Nesse sentido, tem se manifestado o E. Supremo Tribunal Federal, como se pode observar do V. Acórdão trazido à colação:
Habeas Corpus - Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da antijuridicidade. Afastada a ilicitude de tal conduta - a de, por legitima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando o crime - é ela, por via de conseqüência, lícita e, também conseqüentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o art. 5º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da intimidade (art. 5º, X, da Carta Magna). Habeas Corpus indeferido. [25]
9.- PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO
Por vezes, as informações obtidas através de provas ilícitas propiciam a produção de outras provas, cuja colheita se faz licitamente, muito embora sua produção não tivesse sido possível sem aquelas informações obtidas, hipóteses que ocorrem, freqüentemente, em casos de busca domiciliar ilegal, prisão ilegal, confissão extorquida mediante tortura etc.
É tradicional a doutrina cunhada pela Suprema Corte Americana dos "frutos da árvore envenenada", segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos.
A despeito da prova derivada ser essencialmente lícita e admissível no ordenamento jurídico, com a aplicação dessa doutrina, a ilicitude daquela que lhe deu origem contaminaria o seu conteúdo, carreando, como conseqüência, a extensão da sua inadmissibilidade processual.
O E. Supremo Tribunal Federal, de forma mansa e pacífica, vem acolhendo esse entendimento, senão vejamos:
HABEAS CORPUS - CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES - PROVA ILÍCITA - ESCUTA TELEFÔNICA. 1.- É ilícita a prova produzida mediante escuta telefônica autorizada por magistrado, antes do advento da lei nº 9296, de 24/07/1996, que regulamentou o art. 5º, XII, da Constituição Federal; são igualmente ilícitas, por contaminação, as dela decorrentes: aplicação da doutrina norte-americana dos 'frutos da árvore venenosa'. 2.- Inexistência de prova autônoma. 3. - Precedente do Plenário: HC nº 72.588-1PB - 4.- Hábeas Corpus conhecido e deferido por empate na votação (RI-STF, art. 150, § 3º), para anular o processo ab initio, inclusive a denúncia, e determinar a expedição de alvará de soltura em favor do paciente." [26]
A teoria dos frutos da árvore envenenada só se aplica às provas decorrentes, direta ou indiretamente, da prova ilegal, não se aplicando a provas que não tenham relação alguma com aquela.
Com efeito,
é preciso atentar para as limitações impostas à teoria da inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, ou dos frutos da árvore envenenada, pelo próprio Supremo norte-americano e pela doutrina internacional: excepcionam-se da vedação probatória as provas derivadas da ilícita, quando a conexão entre umas e outra é tênue, de modo a não se colocarem a primária e as secundárias como causa e efeito: ou, ainda, quando as provas derivadas da ilícita poderiam de qualquer modo ser descobertas por outra maneira. Fala-se, no primeiro caso, em 'independente source' e, no segundo, na 'inevitable discovery'. Isso significa que se a prova ilícita não foi absolutamente determinante para o descobrimento das derivadas, ou se estas derivaram de fonte própria, não ficam contaminadas e podem ser produzidas em juízo. [27]
Nesse sentido tem se manifestado nossos E. Tribunais como se pode depreender dos V. Acórdãos a seguir transcritos:
"HABEAS CORPUS - PROVA ILÍCITA - ESCUTA TELEFÔNICA - FRUITS OF THE POISONOUS TREE. - NÃO ACOLHIMENTO - Não cabe anular-se a decisão condenatória com base na alegação de haver a prisão em flagrante resultado de informação obtida por meio de censura telefônica deferida judicialmente. É que a interceptação telefônica - prova tida por ilícita até a edição da Lei nº 9296, de 24/07/1996, e que contaminava as demais prova que dela se originavam - não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial. Hábeas Corpus indeferido." [28]
RECURSO DE HABEAS CORPUS - CRIMES SOCIETÁRIOS - SONEGAÇÃO FISCAL - PROVA ILÍCITA: VIOLAÇÃO DE SIGILO BANCÁRIO, COEXISTÊNCIA DE PROVA ILÍCITA E AUTÔNOMA. INÉPCIA DA DENÚNCIA: AUSÊNCIA DE CARACTERIZAÇÃO. 1.- A prova ilícita, caracterizada pela violação de sigilo bancário sem autorização judicial, não sendo a única mencionada na denúncia, não compromete a validade das demais provas que, por ela não contaminadas e delas não decorrentes, integram o conjunto probatório. 2.- Cuidando-se de diligência acerca de emissão de notas frias, não se pode vedar à Receita Federal o exercício da fiscalização através do exame dos livros contábeis e fiscais da empresa que as emitiu, cabendo ao juiz natural do processo formar a sua convicção sobre se a hipótese comporta ou não conluio entre os titulares das empresas contratantes e contratada, em detrimento do erário. 3.- Não estando a denúncia respaldada exclusivamente em provas obtidas por meios ilícitos, que devem ser desentranhadas dos autos, não há porque declarar-se a sua inépcia porquanto remanesce prova lícita e autônoma, não contaminada pelo vício de inconstitucionalidade." [29]
10.- CONCLUSÃO
Em razão do exposto, permitimo-nos apresentar nossas conclusões, sujeitando-as, evidentemente, ao crivo do contraditório:
Neste estudo, consideramos, como provas vedadas, não só as provas ilegítimas, cuja colheita infringe normas processuais, como, igualmente, as provas ilícitas, cuja produção afronta normas ou princípios de direito material;
Os princípios do contraditório e da ampla defesa, insculpidos na Constituição Federal (artigo 5º, inciso LV), não podem ser tidos como absoluto, na medida em que o próprio diploma contempla regra de exclusão, ao considerar como inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, conforme, mansa e pacificamente, tem se manifestado o E. Supremo Tribunal Federal;
Contudo, os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no artigo 5º, da Constituição Federal, não podem ser utilizados como verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco, como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.
Em decorrência, da relatividade dos direitos assegurados no artigo 5º, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da proporcionalidade, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua;
Dentro desse contexto, começa a surgir, ainda que de forma tênue, uma corrente doutrinária que, nada obstante o subjetivismo ínsito no princípio da proporcionalidade, admite a sua utilização, única e exclusivamente, em situações de extraordinária relevância, desde que a inadmissibilidade da prova ilicitamente obtida acarretasse resultados desproporcionais, inusitados e repugnantes;
Adotando-se, ainda, o princípio da proporcionalidade, admite-se, de forma prioritária, no processo penal, a prova ilícita colhida pelo próprio réu, por entender-se que a ilicitude é eliminada por causas legais, como a legítima defesa, que exclui a antijuridicidade;
Com base na doutrina dos frutos da árvore envenenada cunhada pela Suprema Corte Norte Americana, são reputadas como ilícitas, ainda que obtidas sem infração a normas processuais ou materiais, por contaminação, as provas obtidas através de informações coletadas em decorrência de provas ilícitas.
Assinale-se, contudo, que a teoria dos frutos da árvore envenenada só se aplica às provas decorrentes, direta ou indiretamente, da prova ilegal, não se aplicando às provas que não tenham relação alguma com aquela.