1. Introdução
O presente trabalho objetiva demonstrar a segunda face do delinquente. A partir de estudos acerca da Vitimologia, donde identificamos a vítima provocadora e a vítima da sociedade – tipos que serão brevemente abordados no segundo capítulo do presente trabalho – revelou-se interessante estudar o processo de vitimização do delinquente.
No terceiro capítulo, abordaremos a falência do sistema prisional, oportunidade na qual demonstraremos como se alimenta aquele procedimento vitimizador.
Traremos ainda, já no quarto capítulo, a Teoria da Rotulação, entendida como o etiquetamento do delinquente.
Por derradeiro, concluiremos o trabalho demonstrando a face vítima do delinquente, bem como alertando para as vitimizações primária, secundária e terciária, que desta única vítima derivam.
2. Breve relato: Surgimento da Vitimologia e Conceitos Correlativos
Do ponto de vista da psicologia, a vitimologia proporciona um estudo técnico de determinação da participação da vítima e do agressor num feito criminoso – aqui entendido não apenas como um delito tipificado, mas qualquer feito considerado antissocial. Nesse contexto, a vitimologia é o estudo das causas determinantes para que certas pessoas sejam vítimas de certos delitos e como o estilo de vida dessas pessoas implica em uma maior ou menor probabilidade de que elas sejam vítimas de um crime1.
A disciplina vitimologia deriva do inglês Victimology, e tem sua origem situada na metade do Século XX, quando Hans Von Hentig, em 1973, no I Simpósio Internacional celebrado em Jerusalém, intitulado O Estudo Científico das Vítimas, realça esta figura do delito, dantes esquecida pela criminologia tradicional2.
Somou-se àquele Simpósio o fato da psiquiatria mostrar um progressivo interesse por aqueles que sofrem acontecimentos catastróficos, isto por conta do clima humanitário e solidário da segunda pós-guerra mundial. Além disso, os movimentos feministas igualmente apoiaram o ressurgimento da vítima como figura importante do delito3.
Surge então a vitimologia, uma ciência nova, por alguns entendida como derivação da criminologia, para outros, um substituto desta.
A partir disso, muitos se ocuparam de conceituar a referida disciplina.
Abdel Ezzat Fattah apud Nuñez de Arco definiu a vitimologia como o ramo da Criminologia que se ocupa da vítima direta do crime e que designa um conjunto de conhecimentos biológicos, sociológicos, psicológicos e criminológicos concernentes à vítima. Vimos, pois, que o referido autor entende a vitimologia como um ramo da Criminologia, não a considerando, portanto, ciência autônoma.
É oportuno também trazer a conceituação de Guglielmo Gulotta apud Giner Alegría4, que define a vitimologia como o estudo da vítima de um delito, sua personalidade, características biológicas, psicológicas, morais, sociais e culturais, sua relação com o delinquente e o seu papel na origem do delito.
Já para Tamarit, a vitimologia é uma ciência multidisciplinar que se ocupa do conhecimento dos processos de vitimização e desvitimização, do estudo das circunstâncias que transformam determinada pessoa em vítima, das diversas dimensões de vitimização (primária, secundária e terciária, as quais serão estudadas a seguir), das estratégias de prevenção, bem como do conjunto de respostas jurídicas e assistenciais que tendem à reparação e reintegração social da vítima5.
Quanto à conceituação de vítima, muitos são os autores que ambicionam defini-la.
Estanciu6, por exemplo, define a vítima como alguém que sofre de maneira injusta, seja o mal ilegal ou não.
Já Hans Von Hentig traz um interessante conceito de vítima. Para ele, a vítima é um alvo fixo ao qual o autor dirige seus disparos, autor este que dá vida ao vitimário. Ela sofre, pode se defender, porém, a sua resistência não é suficiente e será vencida, em casos mais graves, mediante o emprego da violência. Para ele, o ofendido é quase sempre uma argila mole moldada pelo oleiro, sem vida própria e sua resistência é apenas uma reação7.
É igualmente interessante trazer o conceito de vítima segundo a Resolução da ONU 40/34, de 29 de novembro de 1985. De acordo com o artigo primeiro, vítimas são pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou prejuízo substancial dos direitos fundamentais, como consequência de ações ou omissões que violem legislação penal vigente nos Estados Membros, inclusive abuso de poder. A crítica a esse conceito é no sentido de que ficou limitado ao âmbito penal, o que contraria o que já foi afirmado em outro momento no presente trabalho, a ideia de que o mal sofrido pela vítima pode ser derivado de um delito ou, tão somente, de uma conduta antissocial.
Isso posto, temos que à vitimologia, aqui entendida como ciência autônoma cuja raiz é encontrada na Criminologia – muito embora haja divergência acerca de tal conclusão – cabe o estudo da relação entre a vítima e o vitimário. E, além disso, agora trazendo o que compreendemos como o mais importante papel de tal ciência, a vitimologia tem a função de dar assistência jurídica, moral e terapêutica à vítima, de detectar os temores da vitimização mais enraizados em determinados grupos sociais, de ressaltar a importância da vítima no processo penal e, sobretudo, de criar mecanismos externos para prevenir a delinquência. Ou seja, mais que identificar a corresponsabilidade da vítima, busca-se artifícios de prevenção de delitos8.
3. Vítimas: Classificação
Demonstra-se interessante ao presente trabalho trazermos algumas classificações/tipos de vítimas, a fim de que, a posteriori, foquemos naquele que será abordado com mais profundidade.
O primeiro a criar um sistema de classificação das vítimas foi Benjamin Mendelshon apud Elías Neuman9, quando elaborou a seguinte tipologia vitimológica:
Vítima totalmente inocente, aqui compreendida como a ideal;
Vítima por ignorância, aquela que por desconhecimento produz um dano a si;
Vítima por imprudência;
Vítima voluntária, tão culpável como o delinquente, convertendo-se em vítima pela própria vontade;
Vítima provocadora, compreendida como mais culpada que o próprio agressor;
Vítima como única culpada, aquela que simulou uma agressão;
Vítima imaginária.
Vale também trazer a classificação de Abdel Ezzat Fattah apud Jorge Núñez de Arco10, vejamos:
Vítima não participante, aquela que rejeita o ofensor e a ofensa, não contribuindo de nenhuma maneira com o a agressão;
Vítima latente o predisposta, a que pode encontrar certa inclinação a ser vítima, por defeitos de caráter ou outros fatores;
Vítima provocativa, aquela que incita o infrator a cometer o delito;
Vítima participante, a que intervém no crime adotando uma atitude passiva ou facilitando a ação;
Vítima falsa, aquela que alega ser vítima de um crime cometido por outra pessoa, ou que tenha sido vítima de suas próprias ações.
Já Marta González11, realiza a conceituação das tipologias citadas anteriormente da seguinte maneira:
Vitima Participante: aquela que participa ativamente na dinâmica criminal;
Vítima por imprudência, a pessoa cuja negligência e irreflexão da conduta constituem condições facilitadoras da execução delitiva;
Vítima provocadora oferece o fator causal anterior imediato ao ato delitivo;
Vítima voluntária aparece quando a própria pessoa convertida em vítima condiciona o processo de sua vitimização;
Falsa vítima, aquela que inventa ter sido vítima de uma conduta criminosa;
Vítima simuladora, que surge quando a pessoa de diz vítima para prejudicar seu alegado agressor;
Vítima imaginária, quando a pessoa atua de boa-fé, mas crê, equivocadamente, ter sido vítima de um delito;
Vítima oculta, aquelas acerca das quais não e sabe, haja vista que nem todos os delitos são noticiados.
Por fim, muito embora sem pretender esgotar o tema, haja vista a existência de inúmeras outras classificações, traremos, em uma perspectiva diversa, a conceituação de Neuman12:
Vítimas individuais, aquelas que carecem de atitude de vítima;
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Vítimas familiares, dentre as quais estão as crianças e as mulheres maltratadas no seio da família;
Vítimas coletivas, vista como uma comunidade, relacionadas a determinados delitos como a rebelião;
Vítimas da sociedade, que são aquelas coletividades as quais o próprio sistema social as converte em vítimas ou delinquentes;
Vitimização supranacional, aquelas relacionadas a uma comunidade social, vítimas de delitos como o genocídio e o terrorismo.
Das classificações trazidas, iremos destacar a Vítima Provocadora e a Vítima da Sociedade, pois as que se adequam às características da vítima que será tratada no presente trabalho: o delinquente como vítima.
A partir disso, vale trazer o entendimento de Zaffaroni13, segundo o qual existem duas faixas de vulnerabilidade social correlacionadas: a vulnerabilidade à criminalização e a vulnerabilidade à vitimização, isso sob um enfoque socioeconômico marcador de desigualdade e discriminação.
3.1. Vitimização primária, secundária e terciária
Para Zaffaroni apud Paz M14, a vitimização primária é o processo sobre o qual a pessoa sofre diretamente ou indiretamente, danos físicos, psíquicos, econômicos ou sociais de um feito criminoso ou acontecimento traumático.
Já a vítima secundária nasce, fundamentalmente, da necessária interseção entre o sujeito e o complexo aparato jurídico-penal do Estado. Assim, a vitimização secundária se considera mais negativa que a primária, posto que o próprio sistema é que vitimiza a quem ele se dirige, afetando, desta forma, o prestígio do próprio sistema.
No referido contexto, alguns personagens são destacados e classificados. Por exemplo: os membros da polícia são vistos como seres insensíveis e apenas preocupados com o aspecto burocrático do fato delituoso; assim como o juizado, que costuma proporcionar as piores experiências, construindo, assim, uma lamentável imagem da Administração da Justiça15.
Por derradeiro, falar de vitimização terciária é discorrer acerca de processos de destacamento e etiquetamento como consequência do valor adicionado às vítimas primária e secundária.
Aqui também podem ser inseridos os efeitos que sofrem os familiares e amigos das vítimas16.
4. Falência do Sistema Prisional e o Delinquente como Vítima
Questiona-se a validade da pena de prisão no campo da teoria, dos princípios, dos fins ideais ou abstratos da privação da liberdade e se tem deixado de lado, em um plano inferior, o aspecto principal da referida pena, que é o da sua execução. Devemos, definitivamente, abandonar o terreno dos dogmas e as teorias e mergulhar na realidade prisional que nos cerca, para conseguirmos conclusões mais efetivas em torno do tema17.
Quando a prisão converteu-se, na Idade Moderna, principalmente a partir do século XIX, na resposta penológica principal, acreditou-se que poderia ser um meio adequado para conseguir a reforma do delinquente. O otimismo inicial da reforma desapareceu e atualmente o que predomina é um pessimismo, que denota falta de esperança no que tange à conquista de bons resultados na prisão tradicional18.
A fundamentação conceitual sobre a qual se baseiam os argumentos que indicam a ineficácia da pena privativa de liberdade pode ser resumida em duas premissas19:
a) Considera-se o ambiente carcerário, em razão de sua antítese com a comunidade livre, converte-se em meio artificial, antinatural, que não permite realizar nenhum trabalho reabilitador do recluso.
b) As más condições materiais e humanas tornam inalcançáveis o objetivo reabilitador.
Garcia-Pablos apud Bittencourt, afirma que
[...] a pena não ressocializa, mas estigmatiza, que não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos expiacionistas; que é mais difícil ressocializar uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta porque uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão somente se lá esteve ou não.
A prisão é vista como um fator criminógeno, considera-se que em vez de frear a delinquência, parece estimulá-la, convertendo-se em um instrumento que oportuniza todas as espécies de desumanidades. Não traz nenhum benefício ao apenado, ao contrário, possibilita a sorte de vícios e degradações.
Hibber apud Bittencourt20, a guisa de exemplo, cita um depoimento muito ilustrativo:
[...] Fui enviado a uma instituição para jovens com idade de 15 anos e saí dali com 16, convertido em um bom ladrão de bolsos – confessou um criminosos comum. Aos 16, fui enviado a um reformatório como batedor de carteiras e saí como ladrão [...] Como ladrão, fui enviado a uma instituição total onde adquiri todas as características de um delinquente profissional, praticando desde então todo tipo de delitos que praticam criminosos e fico esperando que a minha vida acabe como a de um criminoso.
A melhor doutrina ensina que fatores materiais, psicológicos e sociais contribuem para a impressão do caráter criminógeno da prisão. Vejamos, em síntese, cada um deles:
a) Fatores materiais: nas prisões clássicas existem condições que podem exercer efeitos nefastos sobre a saúde dos internados. As más condições de higiene dos locais, originadas na falta de ar, umidade e odores nauseantes, imprimem efeitos degeneradores no apenado.
b) Fatores Psicológicos: a prisão é um lugar onde se dissimula e se mente. A prisão cria uma delinquência capaz de aprofundar no recluso suas tendências criminosas. A aprendizagem do crime e a formação de associações delitivas são tristes consequências do ambiente penitenciário.
c) Fatores sociais: a segregação de uma pessoa de seu meio social ocasiona uma desadaptação tão profunda que se torna difícil conseguir a reinserção social do delinquente. Na sociedade moderna, por exemplo, a imposição de uma pena de cinco anos a uma pessoa pode ter efeitos tão negativos em termos ressocializadores quanto os que existiam quando se impunha uma pena de vinte anos, na primeira metade do século21.
É pacífica a ideia de que é possível sim evitar a produção de danos físicos e de certos danos psíquicos tão profundos, uma vez que seja empregada uma prisão que contenha uma adequada planta física, com melhores condições de higiene e com um tratamento mais condizente com a dignidade do recluso.
Segundo o Aurélio, o significado da palavra socializar é tornar social ou sociável um indivíduo. Ainda de acordo com o referido dicionário, sociável é aquele indivíduo que pode associar-se, que tende por natureza ou instinto, a se associar, que convive bem com os outros; amável; educado; cortês22.
A ideia de ressocializar, portanto, pressupõe que o criminoso, ao cometer um ilícito, perde sua identidade social, marginalizando-se, tendo a pena a função de resgatar a sua “amabilidade” e “cortesia”, tornando-o social novamente.
Isso implica concluir que o criminoso, em algum momento, esteve inserido na sociedade, o que nega, por conseguinte, uma das consequências da pena, a criação de estereótipo para àquele indivíduo criminoso, o estigmatizando – consequência que será posteriormente abordada.
Por mais que a nomenclatura ressocialização seja, por muitos, entendida como abstrata, aqui, o seu significado é direto e objetivo: reinserir na sociedade alguém que, como consequência de um crime cometido, foi privado da convivência no seio social a fim de ser punido.
Em seu trabalho intitulado “Execução Penal”, o professor Júlio Fabrine Mirabete23 comenta que a criminologia crítica defende a provável reinserção do preso na sociedade:
A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converte-se num microcosmo no qual se produzem e se agravam as contradições que existem no sistema social exterior (...). A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporarão ao meio social. A prisão não cumpre uma função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção de estrutura social de dominação.
Em verdade, diante da atual realidade prisional, a pena privativa de liberdade não só não cumpre o seu papel ressocializador, como cumpre um papel extremamente contrário, o de dessocialização do apenado24.
De fato, a criminologia tem revelado que a prisão, a pena em torno da qual gira o sistema punitivo, não só produz efeitos de “dessocialização” como também cria problemas e dificuldades ulteriores, quando se perspectiva o regresso do recluso à comunidade.
Estamos diante de um paradoxo aparentemente irredutível: por um lado, a prisão produz um efeito de intimidação sobre o recluso, criando um estímulo de adaptação às regras de vida em sociedade; por outro lado, segrega o indivíduo do seu estatuto jurídico normal, atinge sua personalidade, favorece a aprendizagem de novas técnicas criminosas e propõe valores e normas contrários aos oficiais.
É verdade que o cotidiano da vida prisional se rege por regulamentos asperamente limitativos que dificultam e proíbem as mais diversas atividades, subordinados ao objetivo principal de “evitar problemas” e, sobretudo, dominar o recluso. A ênfase na segurança, no prevenir a fuga e no controle regular e contínuo da vida do preso convertem a prisão, em si mesma dessocializadora como instituição, num ambiente que expõe o recluso a uma grande violência, fator a considerar na dessocialização progressiva do seu comportamento e, portanto, na reconfiguração das atitudes com que procurar lidar com a situação25.
Na prisão, pois, diante da realidade penitenciária com que nos deparamos, o interno mais desenvolverá a tendência criminosa que trouxe de fora do que a anulará ou a suavizará.
Um recurso que intenta aliviar o sentimento de fracasso consiste na redefinição do objetivo “readaptação”, que é transmudado de readaptação do interno à vida carcerária. Ou seja, se o preso demonstra um comportamento adequado aos padrões da prisão, automaticamente merece ser considerado como readaptado à vida livre. Lógica extraída da determinação de um “bom comportamento carcerário” como uma das condições para a concessão de livramento condicional.
Ora, certamente a referida “lógica” não possui qualquer noção aritmética. Festejando os ideários de Augusto Thompson, são aqueles dois mundos deveras diferentes, principalmente porque ajustar alguém a controles institucionais, não fornece a mínima segurança de que tal ajustamento permanecerá existindo, depois que os controles forem removidos. É incongruente a ideia de sucesso em “treinar” alguém para a vida livre submetendo-o a condições de cativeiro26.
A verdade defendida por Simone Biffard, psicóloga da Penitenciária de Leão, citada por Thompson em obra já mencionada, é que não é muito difícil ser um bom preso para aquele que chega a dominar os nervos. O que é difícil é saber para que pode servir um bom preso, uma vez sua pena tenha terminado.
O insucesso do confinamento, para efeitos regenerativos, é atribuído à deficiência dos recursos empregados no sistema penitenciário.
A maioria das pessoas se recusa a reconhecer que reformar criminosos pela prisão é uma falácia e o aumento de recursos destinados ao sistema penitenciário, seja razoável, médio, grande ou imenso, não vai modificar a verdade de um sistema prisional falido, sobretudo enquanto aqueles que fazem a máquina penitenciária funcionar continuarem com um pensamento medíocre, mesquinho e ultrapassado de “olho por olho e dente por dente”.