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Do regime de tributação do ISS sobre a atividade cartorária

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Com a ADI nº. 3.089-2/DF ficou pacificada a questão relativa à incidência de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) sobre a atividade cartorária. Entretanto, surgiram questionamentos a respeito dos moldes em que se daria tal tributação.

1. Introdução

O presente trabalho objetiva examinar a questão do regime de tributação do ISS sobre a atividade de registro e notarial.

Por ocasião da ADI nº. 3.089-2/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) pacificou a questão relativa à incidência de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) no tocante a atividade cartorária.

A partir daí surgiram questionamentos a respeito dos moldes em que se daria tal tributação. Aplicar-se-ia o regime de alíquota fixa? Em caso positivo, haveria dispensa do recolhimento com base no faturamento? Ainda nessa hipótese, pode o tabelião deduzir da base de cálculo o valor repassado ao poder delegante?

Para responder aos questionamentos apresentados proceder-se-á, utilizando-se da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, à delimitação conceitual da Atividade Cartorária, salientando-se as características principais do regime jurídico que lhe rege, bem como o cotejo de tais informações com o tratamento jurídico do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza.


2. Da atividade cartorária e da incidência do ISS:

A atividade de registro e de notas, devido ao seu relevante papel social alcançou tratamento constitucional, conforme a dicção do art. 236, CF/88:

“Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro”.

§ 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Conforme o artigo 1º da Lei 8.935/94 (Lei dos Cartórios): “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.

Em seu artigo 5o, o mencionado diploma legislativo apresenta quais são os tipos de serviços notariais e de registros existentes no ordenamento jurídico brasileiro: tabelionatos de notas; tabelionatos/registros de contratos marítimos; tabelionatos de protestos de títulos; registros de imóveis; registros de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; registros civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas e registros de distribuição.

Comentando o tema Juliana de Oliveira Xavier Ribeiro (2008, p.04) salienta que:

“o constituinte de 1988 optou pelo exercício em caráter privado, por delegação do poder público, das atividades extrajudiciais notariais e de registro. Apesar de o serviço ser público, deveria ser exercido em caráter privado pode meio de delegação. Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do Direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Por isso o serviço notarial e registral será regido por normas do Direito Administrativo”.

Perceba-se que atividade em comento enquadra-se perfeitamente no conceito de Serviço Público, conforme a definição de Marçal Justen Filho (2011, P. 688):

“Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, insuscetíveis de satisfação adequada mediante os mecanismos da livre iniciativa privada, destinadas a pessoas indeterminadas, qualificadas legislativamente e executada sob o regime de direito público”.

É de bom alvitre destacar que o Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2602/2002 sobre a aposentadoria compulsória por idade considerou que os serviços notariais e de registros têm natureza pública:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO N. 055/2001 DO CORREGEDOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. NOTÁRIOS E REGISTRADORES. REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS. INAPLICABILIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL N.20/98. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE EM CARÁTER PRIVADO POR DELEGAÇÃO DO PODER PÚBLICO. INAPLICABILIDADE DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA AOS SETENTA ANOS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. O artigo 40, § 1º, inciso II, da Constituição do Brasil, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/98, está restrito aos cargos efetivos da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios - incluídas as autarquias e fundações. 2. Os serviços de registros públicos, cartorários e notariais são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público - serviço público não-privativo. 3. Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Não são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade imposta pelo mencionado artigo 40 daCB/88 - aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.”

(grifamos)

Como sintetiza sustenta o autor Walter Ceneviva (2008, p.06-07) “a atividade registrária, embora exercida em caráter privado, tem características típicas de serviço público”Tal entendimento que conta com o aval do Supremo Tribunal Federal, conforme se observou no julgamento da ação direta declaratória de constitucionalidade nº 05/ DF, cuja ementa colaciona-se abaixo:

CONSTITUCIONAL. ATIVIDADE NOTARIAL. NATUREZA. LEI 9.534/97. REGISTROS PÚBLICOS. ATOS RELACIONADOS AO EXERCÍCIO DA CIDADANIA. GRATUIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. VIOLAÇÃO NÃO OBSERVADA. PRECEDENTES. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

I - A atividade desenvolvida pelos titulares das serventias de notas e registros, embora seja análoga à atividade empresarial, sujeita-se a um regime de direito público.

II - Não ofende o princípio da proporcionalidade lei que isenta os "reconhecidamente pobres" do pagamento dos emolumentos devidos pela expedição de registro civil de nascimento e de óbito, bem como a primeira certidão respectiva.

III - Precedentes.

IV - Ação julgada improcedente

(grifamos)

Feitos os esclarecimentos acima, abordemos a questão relativa à natureza jurídica dos emolumentos cobrados pelos serviços prestados ao público em geral pelos cartórios, e, após, analisemos a possibilidade de incidência do ISS sobre tal atividade.

Tem a jurisprudência pátria se inclinado para o entendimento consistente em considerar os emolumentos cobrados pelos cartórios de notas e registro como tributo instituído pelo Estado e cobrado pelo delegatário do serviço.

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 316, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. LEI Nº 8.137/90. NOVA REDAÇÃO DO DISPOSITIVO EM ANÁLISE. EXTIRPADOS DE SEU TEXTO OS TERMOS TAXAS E EMOLUMENTOS. INCLUÍDOS OS ELEMENTOS NORMATIVOS DO TIPO TRIBUTO E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. DISCUSSÃO A RESPEITO DA NATUREZA JURÍDICA DAS CUSTAS E EMOLUMENTOS CONCERNENTES AOS SERVIÇOS NOTARIAIS E REGISTRAIS. NATUREZA JURÍDICA DE TRIBUTO. CONDENAÇÃO MANTIDA.

I - O crime previsto no art. 316, § 1º, do Código Penal (excesso de exação) se dá com a cobrança, exigência por parte do agente (funcionário público) de tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido.

II - A Lei nº 8.137/90 ao dar nova redação ao dispositivo em análise extirpou de sua redação os termos taxas e emolumentos, substituindo-os por tributo e contribuição social. III - De acordo com a jurisprudência desta Corte e do Pretório Excelso as custas e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos. (Precedentes do STJ e do STF e Informativo nº 461/STF).

IV - Desta forma, comete o crime de excesso de exação aquele que exige custas ou emolumentos que sabe ou deveria saber indevido. Recurso desprovido." (REsp 899.486/RJ, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 22.5.2007, DJ 3.9.2007 p. 216.)

(Grifei)

Na ementa abaixo transcrita o STF aborda matéria que será de alta relevância para o deslinde da questão relativa à possibilidade de dedução da base de cálculo do ISS do valor repassado ao Poder Judiciário.

"EMENTA: CONSTITUCIONAL. LEI ESTADUAL QUE DESTINA 3% DOS EMOLUMENTOS PERCEBIDOS PELOS SERVIÇOS NOTARIAIS E REGISTRAIS AO FUNDO PARA INSTALAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E APERFEIÇOAMENTO DAS ATIVIDADES DOS JUIZADOS CÍVEIS E CRIMINAIS.

Os emolumentos têm natureza tributária e caracterizam-se como taxas remuneratórias de serviços públicos (não incidência do art. 167, inc. IV, da CF). A cobrança de parcela do valor total desses emolumentos para a formação de fundo de desenvolvimento da Justiça local é cabível, uma vez que o Poder Judiciário tem competência constitucional de fiscalizar os atos praticados pelos notários, oficiais de registro e prepostos. Pedido de liminar indeferido." (ADI 2.129/MS, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 10.5.2000.)

(Grifei)

Os notários exercem atividade pública por delegação, de modo que se sujeitam a um regime de direito público, sendo as custas e os emolumentos devidos em razão da contraprestação do serviço público que, por sua vez, se afigura como fato gerador da taxa em testilha. Nesse particular é salutar a observação lavrada pelo STF, por ocasião do julgamento do RE 178.236:

"não é de clientela - a relação entre o serventuário e o particular... Mas informada pelo caráter de autoridade, revestida pelo Estado de fé pública. Nem é de livre escolha a suposta freguesia, mas sempre cativa nos cartórios de registro e, frequentemente, no de notas... "

Nesse ponto vale destacar que um dos fatores de diferenciação entre taxa e preço público é justamente o caráter compulsório da primeira em contraposição à natureza voluntária da segunda, conforme insculpido no art. 79, I, a e b do Código Tributário Nacional.

A título de exemplo imagine-se que um particular deseje se dirigir a determinado ponto do território municipal, para tanto não é, a priori, obrigado a fazer uso do serviço público de transporte municipal, de modo que só pagará a tarifa pela utilização efetiva.

Ao contrário, se este mesmo particular objetivar registrar o compromisso de compra e venda de seu imóvel ou lavrar a escritura definitiva do mesmo, ou ainda, realizar o registro desta ultima, a fim de adquirir a propriedade (art. 1.245, Código Civil), só poderá fazê-lo no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que o bem se localiza, inexistindo qualquer margem de voluntariedade. Por tal razão as custas e emolumentos possuem indubitavelmente natureza tributária.

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Assentada tal premissa, cumpre analisar se tal natureza impediria a incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Estar-se-ia diante da tentativa de cobrar imposto sobre taxa? E superada essa questão, restaria violada a imunidade recíproca prevista no art. 150, IV, a da Constituição Federal?

Acerca do primeiro impasse, sustentado pelo ilustre ex-ministro do STF, Carlos Ayres Brito, colacione-se os argumentos do também ministro do Pretório Excelso, Gilmar Mendes de Carvalho, proferidos por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 3089-2/DF:

“Também não me parece que seja de aceitar a tese, muito bem posta pelo Ministro Carlos Britto, de que, aqui, estaríamos tendo a cobrança de um imposto sobre taxa, na verdade é sobre o próprio serviço, usa-se eventualmente, a taxa ou os emolumentos como índice, ou como referência apenas para fins de cobrança.”

Quanto à imunidade recíproca acompanhe-se a literalidade do dispositivo:

“Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

VI - instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

Rememore-se que, embora seja atividade pública delegada, o serviço de registro e notas é exercido com intuito de lucro pelos delegatários, os quais se remuneram com a receita total ou parcial (conforme o tratamento conferido pela legislação estadual) decorrente dos emolumentos, não subsistindo, in casu, a razão de ser da imunidade recíproca que é a vedação da tributação das receitas dos entes políticos bem como da oneração de seus bens e serviços.

Na situação em tela incide o art. 150, § 3º da Constituição Federal, confira-se:

§ 3º - As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.

(grifamos)

Foi justamente essa conclusão que levou o STF a julgar improcedente a ADIN nº. 3089-2/DF, atente-se para a ementa e o trecho do voto do ministro Joaquim Barbosa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ITENS 21 E 21.1. DA LISTA ANEXA À LEI COMPLEMENTAR 116/2003. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA - ISSQN SOBRE SERVIÇOS DE REGISTROS PÚBLICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS. CONSTITUCIONALIDADE.

Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra os itens 21 e 21.1 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003, que permitem a tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN. Alegada violação dos arts. 145, II, 156, III, e 236, caput, daConstituição, porquanto a matriz constitucional do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza permitiria a incidência do tributo tão-somente sobre a prestação de serviços de índole privada. Ademais, a tributação da prestação dos serviços notariais também ofenderia o art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º da Constituição, na medida em que tais serviços públicos são imunes à tributação recíproca pelos entes federados. As pessoas que exercem atividade notarial não são imunes à tributação, porquanto a circunstância de desenvolverem os respectivos serviços com intuito lucrativo invoca a exceção prevista no art. 150, § 3º da Constituição. O recebimento de remuneração pela prestação dos serviços confirma, ainda, capacidade contributiva. A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executem, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não-tributação das atividades delegadas. Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente.

(grifamos)

Devido ao seu elevado teor pedagógico, vale trazer a lume o ensinamento lavrado pelo Eminente Ministro Joaquim Barbosa:

“Considero que a tributação a título de imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, recebidos por particulares como contraprestação pelo exercício delegado de serviços notariais e de registro (art. 236, caput, da Constituição), não viola a imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, a, da Constituição.

Assim entendo, pois a tributação nessas bases é coerente com as garantias federativas que a Constituição busca assegurar com o implemento da imunidade recíproca.

Inicialmente, anoto que a atividade notarial é sempre exercida por entes privados, mediante contraprestação com viés lucrativo, posto que de índoles estatal, submetida ao poder de polícia do Judiciário (art. 236, caput e §§ 1º e 2º da Constituição). A circunstância de a atividade ser remunerada, isto é explorada com intuito lucrativo por seus delegados já atrairia, por si somente, a incidência do art. 150§ 3º daConstituição, que textualmente dispõe: (omissis).

Ademais, não há como conciliar a função a que se destina a imunidade recíproca com o efeito jurídico e pragmático pretendido pela requerente.

Observo que a imunidade tributária recíproca opera como mecanismo de ponderação e calibração do pacto federativo, destinado a assegurar que entes desprovidos de capacidade contributiva vejam diminuída a eficiência na consecução de seus objetivos definidos pelo sistema jurídico.

Por outro lado a imunidade recíproca é uma clara salvaguarda contra o risco de utilização de tributos como instrumento de pressão econômica entre os membros do pacto federativo. Mcculloch v. Maryland, conhecido leading-case de 1819, é referência máxima na matéria.

Nesse sentido, tanto os objetivos como os efeitos do reconhecimento da aplicação da imunidade recíproca são passíveis de submissão ao crivo jurisdicional, em um exame de ponderação e proporcionalidade, não bastando a constatação objetiva de natureza pública do serviço que se pretende tributar".

Desse modo, pode-se concluir pela possibilidade de incidência do ISS sobre a atividade cartorária, sem receio de configurar cobrança de imposto sobre taxa ou de violar a imunidade recíproca, visto que se aplicada in casu a mesma estaria sendo desvirtuada e serviria apenas como instrumento de desigualdade social, porquanto tornaria desonerada a atividade de toda e qualquer tributação favorecendo ilegitimamente os delegatários do serviço notarial.

Cabe-nos, ainda, responder os questionamentos outrora formulados neste trabalho: Aplicar-se-ia o regime de alíquota fixa? Em caso positivo estará dispensado de recolher o ISS com base no faturamento? Ainda nessa hipótese pode o tabelião deduzir da base de cálculo o valor repassado ao poder concedente?


3. Do regime de tributação da atividade notarial

O artigo 1º da Lei Complementar nº 116/2003 dispõe que “o imposto sobre serviços de qualquer natureza, de competência dos municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador”

Conforme ressaltado por Harada (2008, p.33) não se deve confundir a expressão “serviços de qualquer natureza”, costumeiramente invocada pelos que defendem a tese da exemplificatividade da lista, com a expressão “qualquer serviço”, pois só é relevante para o ISS o “facere” definido em lei complementar e somente esta poderá incluir na sua definição serviços de qualquer natureza, ou seja, qualquer tipo de serviço.

A respeito do aspecto objetivo do imposto Bernardo Ribeiro de Moraes (1975, p. 81) assevera:

“Já dissemos que no ISS, o que se grava é a efetiva prestação de serviços, a venda efetiva de um bem imaterial. Embora as legislações dos municípios, via de regra, não tenham se utilizado da expressão efetiva prestação de serviço, mas apenas prestação de serviço, para o conceito de incidência do ISS, o elemento efetiva prestação pode ser dispensado. Quem ler prestação de serviço na legislação municipal, deve entender atividade efetiva de prestação de serviço.”

No atinente à base de cálculo, o art. 7º da LC nº 116/03, configura-a como o preço do serviço, enquanto a alíquota pode ser fixa ou variável.

Em relação à atividade cartorária e notarial o fato da delegação recair sobre pessoa física pode suscitar polêmica, pois será delegada obrigatoriamente a bacharel em direito conforme o art. 14, inciso V da Lei 8.935/94, o que atrairia, em tese, a incidência do parágrafo 3º do artigo 9º do Decreto-Lei nº 406/68, não revogado pela LC nº 116/03, cujo teor se transcreve a seguir:

Art 9º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.

§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.

Sobre o tema, em ensaio lapidar, Emerson Vieira Reis (2011, p. 20-21) dirime quaisquer dúvidas:

“Ser bacharel em Direito não é o mesmo que ser advogado. Só é advogado quem está habilitado a exercer a atividade de advocacia, por meio da inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É isso o que estipula o artigo 3º da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia).

[Em] Segundo, a advocacia é incompatível com a atividade dos que prestam serviços notariais e de registros públicos, consoante o art. 28, inciso IV, do Próprio Estatuto da Advocacia. Portanto para exercer a advocacia o tabelião precisaria se exonerar das funções ocupadas perante o órgão delegante”.

E rechaçando qualquer controvérsia prossegue o autor:

“... Mesmo que a lei local repetisse o disposto no parágrafo 1º do artigo 9º do Decreto-lei nº 406/1968, que trata da prestação de serviço sob a forma de trabalho pessoal, ainda assim, o tabelião não seria beneficiado. Muito embora a delegação seja feita ao bacharel em Direito, como pessoa física, não se pode negar o caráter empresarial na hipótese. O tabelião exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a circulação de serviços, com o fito de lucro, razão porque se encaixa no conceito de empresário do artigo 966 da Lei 10.406/2002 (Código Civil).”

Com efeito, a Suprema Corte, no julgamento da ADIN 3.089/DF, confirmou a competência municipal e afastou a alegada imunidade pretendida pelos tabeliães a cartorários, ao analisar a natureza do serviço prestado e reconhecer a possibilidade de o ISS incidir sobre o produto dos emolumentos cobrados (base de cálculo).

Outrossim, o acórdão do Supremo Tribunal Federal, focado na possibilidade de os emolumentos (que são taxas) servirem de base de cálculo para o ISS, afastou, por imperativo lógico, a possibilidade da tributação fixa, em que não há cálculo e, portanto, base de cálculo. Nesse sentido, os seguintes precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

"TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO PÚBLICO. REGIME DE TRIBUTAÇÃO FIXA. ARTIGO 9º, § 1º, DO DECRETO-LEI N. 406/68. AUSÊNCIA DE PESSOALIDADE NA ATIVIDADE. INAPLICABILIDADE.

1. A controvérsia do recurso especial cinge-se ao enquadramento dos cartórios no regime de tributação fixa, conforme disposição do artigo 9º, § 1º, do Decreto-Lei406/68, cuja vigência é reconhecida pela jurisprudência deste Tribunal Superior. Precedentes: REsp 1.016.688/RS, Primeira Turma, Rel. Min. José

Delgado, DJe de 5.6.2008; REsp 897.471/ES, Segunda Turma, Rel.

Min. Humberto Martins, DJ de 30.3.2007.

2. Os serviços notariais e de registro público, de acordo com o artigo 236 daConstituição Federal, são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público.

3. Ainda que essa delegação seja feita em caráter pessoal, intransferível e haja responsabilidade pessoal dos titulares de serviços notariais e de registro, tais fatores, por si só, não permitem concluir as atividades cartoriais sejam prestadas pessoalmente pelo titular do cartório.

4. O artigo 20 da Lei n. 8.935/94 autoriza os notários e os oficiais de registro a contratarem, para o desempenho de suas funções, escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares como empregados. Essa faculdade legal revela que a consecução dos serviços cartoriais não importa em necessária intervenção pessoal do tabelião, visto que possibilita empreender capital e pessoas para a realização da atividade, não se enquadrando, por conseguinte, em prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, nos moldes do § 1º do artigo 9º do Decreto-Lei n. 406/68.

5. Recurso especial não provido. "(REsp 1.185.119/RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 20.8.2010.)

Quanto à análise da possibilidade de dedução da base de cálculo do ISS dos valores transferidos ao Estado necessário se faz melhor contextualizar a matéria.

A Lei 10.169/2000 regulou o § 2º do art. 236 da Constituição Federal, conferindo aos Estados e ao Distrito Federal competência para fixar o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos respectivos serviços notariais e de registro, mas em momento algum foi autorizada a incidência de qualquer tributo estadual sobre o exercício da atividade em si, visto que a mesma só pode ser tributada pelo Município, conforme exposto acima.

Atente-se que o dispositivo acima mencionado se coaduna com o entendimento pelo qual os emolumentos têm natureza de taxa e, portanto, devem ser discriminados por lei, devendo-se os Estados e o Distrito Federal se limitarem a traçar os parâmetros e os limites da cobrança dos emolumentos.

Entretanto os mencionados entes políticos têm estipulado em suas leis que parte dos emolumentos arrecadados devem ser repassados ao Erário, gerando o entendimento em alguns de que tal parcela deve ser subtraída da base de cálculo do ISS.

O ente estadual não pode objetivar tal cobrança na ilusão de tratar-se de taxa cobrada em razão da prestação de serviço público por ele diretamente prestado, sob pena de violar a literalidade do art. 236 da Constituição Federal. Nesse ponto, novamente trazemos as valiosas observações de Emerson Vieira Reis (2011, p. 23):

“Se qualquer Estado-Membro atua nessa área, essa atuação não é na forma de serviço prestado ao usuário, ao munícipe, que se dirige a um cartório para, por exemplo, reconhecer firma em documento por ele subscrito. O que existe, no caso, é o exercício do poder de polícia, representado pela corregedoria de Justiça, que fiscaliza o desempenho da atividade cartorária pelos tabeliães. Pelo exercício dessa atividade, o Estado-Membro pode sim cobrar uma taxa, mas o sujeito passivo, na condição de contribuinte é o próprio tabelião, nunca o usuário dos serviços notariais e de registro público.

E conclui o autor:

“Por essas razões, carece de qualquer amparo jurídico a pretensão de se subtrair da base de cálculo do ISS qualquer fração do preço pago pelo munícipe usuário do serviço. Isso vale mesmo que essa fração seja destinada ao Estado-membro, pois na espécie estaria havendo invasão da competência tributária municipal. Se o Estado membro deseja mesmo tributar a atividade notarial, que o faça corretamente, instituindo uma taxa cujo contribuinte seja o próprio tabelião e cuja destinação é o custeio das tarefas desempenhadas pela corregedoria”.

Não se deve esquecer que o exercício da tributação depende da existência de competência e esta é instituída e distribuída pela Carta Magna aos entes políticos que possuem capacidade legislativa e foi justamente a Constituição Federal quem reservou aos Municípios a competência para instituir o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, não podendo outro Ente salvo expressa previsão na Lei Maior fazê-lo.

Perceba-se que, ao se pretender subtrair da base de cálculo do ISS o valor relativo à taxa de poder de polícia porventura instituída pelo Estado-membro, confere-se a tal taxa a mesma base de cálculo do ISS. O que é expressamente vedado pelaConstituição Federal, em seu art. 145, § 2º que dispõe não ser possível às taxas terem base de cálculo própria de impostos, e, na situação em tela, ao fazer incidir a taxa sobre o preço do serviço o ente estadual configurou seu tributo com a mesma base de cálculo do ISS.

Diante dessa situação o tabelião deve buscar as vias judiciais correspondentes para corrigir a exação e não apenas “computá-la” indevidamente na base de cálculo do ISS, transferindo à municipalidade o prejuízo daí decorrente.

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Sobre o autor
Thiago Carneiro de Santana Santos

Advogado, Procurador do Município de Aracaju/SE, Especialista em Direito Público e Direito Tributário pela Universidade Anhanguera (Rede Luiz Flávio Gomes - LFG)<br>Bacharel em Direito Pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Thiago Carneiro Santana. Do regime de tributação do ISS sobre a atividade cartorária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4121, 13 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29902. Acesso em: 23 dez. 2024.

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