Artigo Destaque dos editores

Stare decisis e teoria do precedente judicial no sistema anglo-saxônico

Exibindo página 2 de 4
Leia nesta página:

5. Elementos do precedente

Não obstante a clareza dos conceitos acima esposados, uma melhor compreensão do precedente enquanto instituto jurídico passa pelo exame de seus elementos constitutivos. Com efeito, a técnica de utilização de precedentes, de importância crescente na experiência jurídica brasileira, requer uma compreensão acurada de suas partes integrantes, cujas relações internas são objetos de teorias divergentes, a depender da perspectiva jurídico-filosófica adotada.

Conforme José Rogério Cruz e Tucci, citado por Didier Júnior (2009, p. 381), “todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório.” O núcleo essencial da fundamentação, contudo, diferencia-se dos argumentos apenas incidentemente articulados pelo julgador (obiter dictum), os quais não são determinantes para a fixação da proposição jurídica acolhida. Tal distinção é relevante porquanto a eficácia vinculante do precedente obrigatório se circunscreve tão somente à ratio decidendi, sendo de fundamental importância o domínio da técnica de identificação das razões centrais da decisão judicial.

Assim, propõe-se uma definição de precedente que comporta dois elementos: a) a ratio decidendi, ou tese jurídica eleita na decisão, que, por sua vez, é formada pela descrição dos fatos que ensejaram o julgado, o raciocínio judicial e o dispositivo do julgamento propriamente dito; b) o obiter dictum, ou o que de mais foi dito pelo julgador, a par da fundamentação essencial do decisum. 

5.1 Ratio decidendi

A ratio decidendi, denominada de holding no contexto norte-americano, é o elemento de eficácia persuasiva ou vinculante do precedente. Ainda segundo José Rogério Cruz e Tucci, citado por Didier Júnior (2009, p. 381), “a ratio decidendi constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)” e é composta  a) da indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts), b) do raciocínio lógico-jurídico da decisão (legal reasoning) e c) do juízo decisório (judgement).

Quando o magistrado decide uma demanda judicial, cria necessariamente duas normas jurídicas: a primeira, de caráter geral, é o resultado da interpretação dos fatos que deram origem à demanda e de sua conformação com o direito objetivo; a segunda, de natureza individual, é o provimento específico emanado para solucionar o conflito em particular (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 382). A tese de direito acolhida pelo julgador à luz do caso concreto, diferentemente do dispositivo judicial, ostenta caráter geral dado o potencial de aplicação reiterada em casos vindouros. É a essa norma jurídica que se dá o nome de ratio decidendi ou holding.

Note-se, contudo, que a norma geral criada pelo magistrado encontra-se intimamente vinculada aos fatos que lhe deram origem (SOARES apud RAMIRES, 2010, p. 70). Por essa razão, é elemento fundamental da ratio decidendi a descrição do fato que ensejou a controvérsia de direito (statement of material facts), porquanto indissociável da tese jurídica acolhida pelo julgador. Cuida-se de fato jurídico, na medida em que, sobre ele, quando ainda mero fato social, incidiu a norma jurídica, no denominado processo de jurisdicização. [9]

A componente fática do ratio decidendi se subdivide entre o fato principal e as circunstâncias. Do latim circum + stare, “que está ao redor”, circunstância é o elemento factual que circunda o fato essencial ou primordial. Quando a circunstância possui relevância jurídica, integra o conceito de fato jurídico para todos os efeitos, atraindo a incidência da norma.

A descrição do fato e das circunstâncias é parte essencial do precedente judicial. O precedente não é norma genérica, de aplicação ampla, mas regra estrita, inteiramente ligada aos fatos da demanda originária, razão pela qual é imprescindível, em um sistema que valorize a jurisprudência como fonte do direito, a explicitação formal e permanente do acontecimento concreto como fundamento implícito da tese jurídica adotada.

A doutrina da common law jamais perdeu de vista essa realidade. Como bem pontuado por Maurício Ramires,

A “exigência hermenêutica”, segundo Gadamer, “é justamente a de compreender o que diz o texto a partir da situação concreta na qual foi produzido.” Assim, ainda que tenha sido permeável à subjetividade dos métodos, a tradição da common law nunca cedeu à tentação de esquecer os fatos ou de escondê-los sob as conceituações jurídicas contidas nas decisões judiciais ou nas opinions of the court. Ao contrário, para o juiz daquele sistema decidir invocando um precedente é imprescindível que antes tome conhecimento dos fatos do caso presente e do caso que deu origem ao julgado pretérito, e, só após compará-los, identificá-los e distingui-los, ele poderá aplicar a regra. (RAMIRES, 2010, p. 70-71)

Nada mais razoável. Por mais que o efeito vinculante resida somente sobre a proposição de direito encerrada no precedente – já que a coisa julgada, no que pertine à controvérsia de fato, interessa exclusivamente aos destinatários iniciais do comando sentencial, que foram partes no processo –, a correta aplicação do prejulgado exige que fato presente e fato pretérito guardem relação de similitude, pois, não havendo identidade ou semelhança, estar-se-á diante de “precedente inespecífico”, inservível para governar o julgamento. Essa, aliás, é a essência do método das distinções, que se encontra na base da formação do jurista da common law. Fato e direito são realidades indissociáveis, pois toda questão de fato é também de direito e toda questão de direito emana de uma situação de fato. É o que revela Lênio Streck, citado por Ramires (2010, p. 71), ao afirmar que, não obstante seja de fácil visualização que “direito é concretude”, e que sua finalidade expressa é “resolver casos particulares”, não é igualmente evidente que “o processo interpretativo é applicatio, e que o direito é parte integrante do próprio caso, e uma questão de direito é sempre uma questão de fato e vice-versa.”

Nesse sentido, há muito já asseverou Miguel Reale, ao referir-se à sua famosa teoria tridimensional do Direito:

a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já que vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram. (REALE, 2002, p. 65)

Se fato e norma se mostram inseparáveis no plano abstrato, do Direito enquanto “realidade histórico-social”, quanto mais hão de sê-lo no nível concreto, da demanda formalmente judicializada, em que se instalou um conflito real e efetivo. Inquestionável, assim, em um sistema de precedentes, a necessidade de o jurista proceder a uma análise minuciosa dos fatos que ensejaram determinada conclusão em matéria de direito e, mais que isso, a relevância da descrição cuidadosa e indivisível dos fatos no acórdão que documenta o precedente.

O raciocínio judicial (legal reasoning) é um segundo elemento do precedente, que integra a ratio decidendi. Cuida-se do iter ou caminho perseguido pelo magistrado no processo de subsunção da norma ao fato. Compõe-se dos critérios de interpretação dos fatos e da indicação dos princípios e regras de direito aptos a contribuir para a interpretação do texto jurídico tido por aplicável ao caso. É a lógica jurídica adotada pelo julgador para fundamentar a opção por determinada tese de direito, escolhida como razão de decidir.

Por último, o juízo decisório (judgement) é o elemento central do ratio decidendi, a norma geral produzida, a tese jurídica adotada como fundamento do provimento emanado no feito em julgamento. É a norma de eficácia geral que resulta da aplicação do direito objetivo, integralmente considerado, aos fatos demonstrados no bojo da demanda, norma essa que dá sustentação ao dispositivo do julgado, cuja aplicabilidade, em regra, é restrita às partes do processo.

Não há que se confundir, pois, o judgement, qual elemento da ratio decidendi, com o dispositivo do julgado-precedente. O dispositivo é norma de eficácia estrita, provimento específico emanado pelo magistrado que tem por finalidade resolver determinada demanda judicial; o juízo decisório ou judgement, diversamente, é a norma anterior, fruto da interpretação acerca da legislação e dos princípios gerais do direito, que subsidia o julgamento da causa particular em apreço. A norma contida na ratio decidendi possui aplicabilidade geral, podendo ser sucessivamente invocada para a solução de casos posteriores, sendo essa a essência do conceito de precedente; a norma específica presente no dispositivo, de seu turno, depende da ratio decidendi e destina-se, no mais das vezes, aos litigantes, que figuraram como partes na relação jurídica processual.

Dessa observação resta clara, também, a distinção entre ratio decidendi e coisa julgada erga omnes. A eficácia geral eventualmente outorgada à coisa julgada não se confunde com a aplicabilidade genérica do juízo decisório encerrado na ratio decidendi. Enquanto a primeira é uma regra técnica voltada a conferir definitividade às decisões judiciais, em atenção ao princípio da segurança jurídica, a segunda é um instituto associado à uniformidade, previsibilidade e coerência da jurisprudência de um tribunal, ante a replicação da tese jurídica aos casos vindouros. Como bem pontua Tiago Asfor Rocha Lima,

A coisa julgada é uma qualidade da decisão que garante a não modificação do julgado, fincando um ponto final na controvérsia levada a juízo. Por sua vez, a transcendência da ratio decidendi, ainda que também se apresente como protetora da segurança jurídica, vincula-se mais propriamente à replicação da tese jurídica em futuros casos similares. Decorre, pois, do dever de respeito ao entendimento de um tribunal, tentando, pois, evitar novos litígios. (LIMA, 2013, p. 181)

Apesar disso, é inegável que a eficácia geral e o efeito vinculante eventualmente verificáveis na coisa julgada aproximam a decisão judicial da noção de precedente. Mais que isso, transmudam o julgado no que se poderia considerar como o “precedente por excelência”, porquanto a ratio decidendi, aqui qualificada qual fundamentação de um juízo definitivo e obrigatório de caráter geral, passa a não poder ser afastada, dada sua conexão com o dispositivo vinculante.

5.2 Obiter dictum

A par da ratio decidendi (fatos, raciocínio judicial e juízo decisório da tese jurídica que embasa o dispositivo), a doutrina costuma elencar o obiter dictum ou simplesmente dictum (plural: obter dicta) como elemento do precedente. Trata-se dos argumentos expostos apenas de passagem na motivação do julgado, que consubstanciam “juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão”, pelo que se revelam como algo “prescindível para o deslinde da controvérsia” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 383).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Com efeito, podem existir questões que, não obstante tenham sido mencionadas no corpo de uma decisão judicial, não foram consideradas pelo juiz quando de sua atividade cognitiva, não ostentando relevância para a formação do dispositivo. Constituem, pois, meras reflexões que ali constaram em virtude do raciocínio lógico-jurídico do magistrado, mas que não podem ser consideradas tecnicamente como justificativa para a conclusão judicial. Tais argumentos adicionais, incidentais, de mero reforço argumentativo, são o que se denomina de obiter dictum (LIMA, 2013, p. 171).

O obiter dictum é normalmente identificado negativamente, sendo compreendido como tudo aquilo que não integra a ratio decidendi (SOUZA, 2013, p. 139). É composto pelos elementos do precedente que não se identificam com o núcleo da fundamentação do julgado, configurando “qualquer conclusão a que chega o Tribunal, mas que não é essencial para o julgamento do caso concreto.” Em outras palavras, é a parte do decisum cuja exclusão em nada alteraria as razões de decidir (NOGUEIRA, 2013, p. 184) e tampouco infirmaria de nulidade a sentença ou acórdão por ausência de motivação. A distinção entre ratio decidendi e obiter dictum constitui tarefa essencial em um sistema de precedentes obrigatórios, na medida em que o efeito vinculante reside somente no elemento essencial da fundamentação, isto é, no juízo decisório que compõe a ratio decidendi.

Marcelo Alves Dias de Souza sustenta que, a rigor, há diferença entre as expressões obiter dictum e dictum. Aduz, também, haver nomenclatura adicional para os elementos do precedente que estão de fora da ratio decidendi, os quais seriam denominados de gratis dictum e judicial dictum:

Quanto à precisão terminológica, diz-se que dictum é uma proposição de Direito, constante do julgamento do precedente, que, apesar de não ser ratio decidendi, tem considerável relação com a matéria do caso julgado e maior poder de persuasão. Em comparação, obiter dictum é uma proposição de Direito, constante do julgamento, com ligação muito tênue com a matéria do caso e pouquíssimo persuasiva. Outra terminologia que é empregada, tomando por referência o grau de persuasão, fala em gratis dictum e judicial dictum. [...] Gratis dicta são meros desperdícios (afirmações que são jogadas fora, como se fossem de graça), e, assim, de pouquíssimo, se houver, valor ou força persuasiva. É provável, portanto, que as gratis dicta serão tidas, sobretudo, como mero produto do pensamento do juiz. As judicial dicta, por outro lado, terão sido precedidas não apenas por um longo e cuidadoso pensamento, mas também de uma extensiva argumentação sobre o ponto em questão. De fato, portanto, as judicial dicta podem ser tão fortemente persuasivas como também praticamente indistinguíveis da ratio. (SOUZA, 2013, p. 140)

Como se vê, a classificação constitui um crescendo, tendo sido estruturada a partir de um critério gradativo da força vinculante, que parte dos elementos de eficácia persuasiva mínima ou inexistente do precedente (obiter dictum ou gratis dicta), passa pelos de significativo ou elevado teor suasório (dictum ou judicial dicta), e, por fim, alcança a ratio decidendi, cuja eficácia é vinculante no sistema anglo-saxônico. Certo é, contudo, que, obiter dictum e dictum, diferentemente da ratio decidendi, jamais ostentam eficácia obrigatória (NOGUEIRA, 2013, p. 184).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Stare decisis e teoria do precedente judicial no sistema anglo-saxônico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4101, 23 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30051. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos