6. Técnicas de aplicação e superação do precedente
Na common law, o precedente pode ostentar força obrigatória ou meramente persuasiva. Na primeira hipótese, a ratio decidendi do julgado é vinculante às instâncias hierarquicamente inferiores e à própria corte prolatora; na segunda, a decisão da corte de jurisdição mais elevada não vinculada os julgadores ordinários, mas a autoridade de quem emanou os argumentos produz um efeito convincente, suasivo, que resulta, por vezes, na replicação prática da tese jurídica adotada.
Ainda que presentes todos os requisitos da doutrina do stare decisis, que qualificam o precedente como vinculante, porém, é possível ao julgador do common law, em determinadas circunstâncias, afastar a aplicação de determinado precedente, utilizando-se de técnicas específicas e cuidadosamente elaboradas. É o que se examina a seguir.
6.1 Distinguishing
O distinguishing é uma técnica de confronto, interpretação e aplicação do precedente, utilizada para os casos em que houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma (precedente invocável), seja por ausência de coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e os que serviram de base à ratio decidendi constante do precedente, seja porque, não obstante exista certa aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento permite o afastamento da aplicação do precedente (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 392). É um dos elementos característicos do common law, mas que tende a se expandir cada vez mais para outros domínios e tradições jurídicas, sendo certo que, quanto mais rígida for a aderência ao precedente judicial, mais frequente será o seu emprego (BUSTAMANTE, 2013, p. 470).
Para se aplicar a ratio decidendi a um caso, é necessário comparar o caso que a originou com o caso sob julgamento, analisando-se as circunstâncias de ambos. No âmbito do common law, tal diferenciação ou distinção de casos assume a forma de técnica jurídica voltada a permitir a aplicação de precedentes. O distinguishing, pois, expressa a distinção entre demandas judiciais para o efeito de se subordinar ou não o caso sob julgamento a determinado precedente (MARINONI, 2013, p. 326).
Nas hipóteses de distinguishing (ou distinguish), o caso a ser julgado apresenta particularidades que não permitem aplicar adequadamente a jurisprudência do tribunal. Embora possa permanecer inalterada a norma de interpretação, que é a norma jurídica em si mesma, a norma de decisão não reproduz a literalidade da primeira, o que ocorre em razão de determinadas circunstâncias fáticas que recomendam o afastamento da regra, situações essas, por vezes, nem mesmo previstas no espectro do precedente (LAGO, 2013, p. 1).
Thomas da Rosa de Bustamante (2013, p. 471) ensina que o distinguishing pode se manifestar de duas maneiras: a) pelo um reconhecimento de uma exceção direta (direct exception) à regra judicial invocada, justificada por circunstâncias especiais no caso em julgamento; b) pelo estabelecimento de uma exceção indireta (indirect exception, circumvention ou fact-adjusting), hipótese em que os fatos do caso presente são reclassificados como algo diferente, com o fito de evitar a aplicação do precedente judicial. Trata-se, em verdade, de um só ato de distinção baseado nos elementos fáticos do precedente, diferenciando-se as exceções entre direta e indireta, tão somente, no plano da estratégia argumentativa, tendo em vista a ênfase que é dada, no primeiro caso, à premissa maior (normativa) e, no segundo caso, à premissa menor (fática), do silogismo jurídico. Em palavras do autor:
a técnica do distinguishing deve ser definida como um tipo de afastamento do precedente judicial no qual a regra da qual o tribunal se afasta permanece válida, mas não é aplicada com fundamento em um discurso de aplicação em que, das duas, uma: (1) ou se estabelece uma exceção anteriormente não reconhecida – na hipótese de se concluir que o fato sub judice pode ser subsumido na moldura do precedente judicial citado; ou (2) se utiliza um argumento a contrario para fixar uma interpretação restritiva da ratio decidendi do precedente invocado na hipótese de se concluir que o fato sub judice não pode ser subsumido ao precedente. No primeiro caso (redução teleológica), opera-se a exclusão de determinado universo de casos antes compreendidos no âmbito de incidência da norma apontada como paradigma; no segundo caso (argumento a contrario), a norma jurisprudencial permanece intacta, mas se conclui que suas consequências não podem ser aplicadas aos fatos que não estejam compreendidos em sua hipótese de incidência. (BUSTAMANTE, 2013, p. 473)
Marcelo Alves Dias de Souza afirma que, das técnicas utilizadas para evitar a aplicação de um precedente, a da distinção entre os casos (distinguishing) é a principal, ou, pelo menos, a mais comum. Encontra-se relacionada à noção de fatos fundamentais (material facts), na medida em que, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não coincidem com os fatos fundamentais do caso posterior (em julgamento), os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos, com o consequente afastamento do precedente. O que é razoável distinguir em cada caso, contudo, depende da análise da demanda em particular (SOUZA, 2013, p. 142-143).
Gustavo Santana Nogueira esclarece os fundamentos da utilização do distinguishing nos seguintes termos:
A partir do momento em que os precedentes vinculam, a única chance que a parte tem de se sagrar vencedora quando um precedente está na “contramão” da sua pretensão é demonstrando que o seu caso difere substancialmente dos precedentes; daí resulta claro a importância do processo de distinção. (...) O fato é que nenhum caso é igual a outro, e, se forem iguais, existem mecanismos legais que impedem o rejulgamento do segundo, de modo que estamos tratando de casos que se assemelham, mas entre os quais existe uma diferença que torna o precedente inaplicável. (...) Todos os casos submetidos ao Judiciário contêm diferenças entre si, vez que, se forem idênticos, estaremos diante do fenômeno da duplicidade de ações (litispendência), porém os casos, quando postos em comparação, podem conter semelhanças que justifiquem a aplicação ao caso que está sendo julgado da ratio decidendi precedente. Não há uma fórmula que identifique com precisão que tipo de diferenças podem justificar a não aplicação do precedente, cabendo a cada juiz fazer a sua análise e ao Tribunal que elaborou o precedente verificar, quando cabível, se o distinguishing foi corretamente feito. (NOGUEIRA, 2013, p. 212)
Sob um primeiro olhar, a técnica das distinções pode parecer não acrescentar muito à teoria processual, porquanto a aplicação de qualquer texto jurídico, incluindo os formalmente legislativos, exige um contínuo trabalho de diferenciação ou distinção entre os fatos concretos e o suporte fático da norma que se pretende subsumir. No âmbito dos precedentes judiciais, contudo, a tarefa alcança uma dimensão mais elaborada, vez que os conceitos jurídicos abertos ou indeterminados e as eventuais lacunas da legislação terão sido superados pela atividade interpretativa dos tribunais, os quais fecham o espectro de atuação da norma e delimitam seu alcance, nos estritos termos do fato real trazido a julgamento.
Isto é, se determinada hipótese fática ou certo conflito principiológico não foi resolvido a priori pelo legislador, o tribunal, ante a vedação ao non liquet e o dever funcional de solucionar a tensão social encerrada no litígio, a partir de um esforço hermenêutico e democrático-dialético, pautado no contraditório, criará a norma jurídica aplicável, a qual forma a ratio decidendi do precedente, cuja eficácia é, no mínimo, persuasiva em relação ao próprio tribunal e à jurisdição inferior. Por conseguinte, no nível do precedente, a distinção dos fatos (ou distinguish) alcança muito maior relevância, vez que a norma jurídica de base jurisprudencial é bem mais específica e delimitada que a regra de direito de origem doutrinária ou legislativa.
Um exemplo pode vir a calhar: um demandante pleiteia dano moral, a par do dano material, sob o argumento de ter sofrido estresse por abalo psicológico resultante de um acidente de trânsito sem vítimas ocasionado por comprovada culpa exclusiva do demandado. Inexistindo precedente vinculante sobre a matéria, o juiz de primeiro grau pode livremente interpretar o direito do autor e julgar procedente a demanda sem se ater a maiores especificidades fáticas, por entender que o simples acidente, com efeito, gerou transtornos no cotidiano do demandante, indenizáveis sob a ótica do dano moral. Havendo precedente obrigatório, contudo, no sentido de que o alegado transtorno constitui “mera intempérie da via moderna”, sendo cabível tão somente a condenação pelo dano material, o julgamento de procedência da demanda exigiria a distinção (distinguish) entre o caso em apreço e o paradigma, o que somente ocorreria com o aprofundamento da instrução para a demonstração de circunstâncias aptas a comprovar que, na espécie, o fato superou os limites de uma simples “intempérie”, ocasionando um efetivo dano ao patrimônio moral do litigante. Assim, hipoteticamente, caso se comprovasse que o autor perdera seus familiares em acidente de trânsito e, traumatizado, havia passado por anos de tratamento psicológico para reabilitar-se a conduzir veículo automotor, encontrando-se, na data do fato, em seu primeiro percurso como motorista após custoso processo de recomposição, evidente estaria a especificidade do caso em julgamento em relação ao precedente, que previa a improcedência do pedido de dano moral para condutor experiente e livre de quaisquer traumas e temores relacionados à direção.
A hipótese ilustra como a aplicação do precedente exige o aprofundamento das questões de fato, tornando muito mais elaborada a instrução do feito e a fundamentação da decisão que se pretende diferenciar do paradigma. Revela, também, o quanto o distinguishing é relevante para a correta utilização do direito jurisprudencial, o qual, se adotado cegamente, tem o condão de ocasionar inequívoca injustiça no caso concreto. Resta claro, outrossim, o quão necessário é, em um sistema normativo que valorize a jurisprudência como fonte do direito, estarem as partes, por intermédio de seus advogados ou solicitadores, cientes do teor dos pré-julgados relacionados à lide, já que a não demonstração das circunstâncias distintivas na fase instrutória pode ensejar a aplicação equivocada de um precedente na posterior fase de julgamento, com prejuízos potencialmente irreparáveis.
Não se pode perder de vista, contudo, que o distinguishing pode ser desvirtuado por um mau uso, consistente no afastamento inadequado de precedentes que deveriam ser aplicados. Se é cogitável que um precedente tem cabimento no caso em julgamento, é bastante provável que os fatos da espécie e do paradigma não ostentem diferença gritante. A distinção, pois, quase sempre decorrerá de nuances ou especificidades fáticas presentes nas circunstâncias, e não nos fatos fundamentais, já que, se esse fosse o caso, muito provavelmente, o paradigma sequer seria invocado. Tal constatação demonstra o nível de cautela que precisa ser adotada na utilização do distinguishing, o qual, se olvidado quando necessário, nega à decisão conformidade com a justiça distributiva, ao passo que, se aplicado fora das hipóteses legais, viola frontalmente o princípio da igualdade.
Nesse sentido, Marcelo Alves Dias de Souza (2013, p. 145) refere a um “poder de distinguir” concedido aos magistrados, o qual é necessário para conferir flexibilidade ao sistema e permitir a realização da “justiça no caso concreto”; afirma, porém, que, se “levado ao extremo”, tem o condão de “ferir, com uma injustiça gritante, o princípio da isonomia”, além de conduzir a um estado de dúvida relativamente à real vinculação dos juízes e tribunais aos precedentes obrigatórios, o que, por sua vez, pode ocasionar a falência do sistema. É o que ensina, igualmente, Luiz Guilherme Marinoni:
A o realizar o distinguishing, o juiz deve atuar com prudência e a partir de critérios. Como é óbvio, poder para fazer o distinguishing está longe de significar sinal aberto para o juiz desobedecer precedentes que não lhe convêm. Ademais, reconhece-se, na cultura do common law, que o juiz é facilmente desmascarado quando tenta distinguir casos com base em fatos materialmente irrelevantes. Diferenças fáticas entre casos, portanto, nem sempre são suficientes para se concluir pela inaplicabilidade do precedente. Fatos não fundamentais ou irrelevantes não tornam casos desiguais. Para realizar o distinguishing, não basta o juiz apontar fatos diferentes, cabendo-lhe argumentar para demonstrar que a distinção é material, e que, portanto, há justificativa para não se aplicar o precedente. Ou seja, não é qualquer distinção que justifica o distinguishing. A distinção fática deve revelar uma justificativa convincente, capaz de permitir o isolamento do caso sob julgamento em face do precedente. (MARINONI, 2013, p. 325-326)
De fato, é preciso ter em conta que, cada vez que um precedente é afastado, há a edição tácita de um adendo ou emenda que restringe ainda mais o seu âmbito de aplicação. A esse respeito, Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 209-210) afirma que, embora não altere o precedente tal como o overruling, que efetivamente revoga ou reforma o entendimento jurisprudencial consolidado, o distinguishing é uma técnica de “quase superação” da ratio decidendi, na medida em que “a não incidência do precedente a um determinado caso retira-lhe uma margem de aplicação que pode enfraquecê-lo”, sobretudo quando há distinção reiterada entre o paradigma e os casos confrontados. Por conseguinte, leciona o autor que a distinção entre os casos deve ostentar relevo suficiente para autorizar a Corte a não seguir o precedente, “sob pena de a irregular operação de confronto entre os casos ser facilmente apontada pelos advogados e por outros julgadores, prejudicando consideravelmente a reputação do julgador.” (LIMA, 2013, p. 210)
6.2 Overruling
Overruling (ou overriding) [10] é o procedimento através do qual um precedente perde sua força vinculante e é substituído por outra ratio decidendi. É técnica de superação do precedente, e não apenas de aplicação, interpretação ou confronto de decisões judiciais. À semelhança da revogação de uma lei por outra, pode ocorrer de forma expressa (express overruling) ou tácita (implied overruling), conforme o tribunal manifeste expressamente seu interesse em adotar uma nova orientação, abandonando a anterior, ou adote posição contrária à previamente esposada sem, contudo, dispor diretamente a respeito (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 395).
Na Inglaterra, o Practice Statement 1966 autorizou a House of Lords a fazer uso da superação de seus próprios precedentes (NOGUEIRA, 2013, p. 193). Apesar disso, a prerrogativa tem sido utilizada com pouca frequência, haja vista o desgaste que importaria à imagem da suprema corte a alteração permanente de orientações jurisprudenciais em um sistema de precedentes vinculantes. Nos Estados Unidos, a técnica do overruling pela Supreme Court é considerada a medida de interpretação mais extrema à disposição dos magistrados, representando uma “dramática forma de mudança normativa” (LIMA, 2013, p. 207).
Não obstante, na prática judiciária, a superação do precedente pelo overruling se justifica por uma série de razões que importam em inequívoca injustiça da ratio decidendi vigente, forçando o Tribunal a uma revisão no entendimento, tais como a modificação das condições econômicas, políticas, culturais e sociais de determinado povo (LIMA, 2013, p. 206). A mudança de composição do Tribunal que elaborou o precedente e a alteração dos valores sociais também são elementos que ocasionam a substituição do julgado paradigma (NOGUEIRA, 2013, p. 199-200). Pode ocorrer, ainda, de um provimento posterior do Poder Legislativo (lei em sentido estrito) revogar dispositivo normativo que servia de base à interpretação jurisprudencial, ou, até mesmo, contrariar frontalmente o conteúdo de determinado precedente, já que, inclusive na Inglaterra, “o precedente está subordinado à legislação como fonte do direito”, de sorte que “um statute [11] pode sempre ab-rogar os efeitos de uma decisão judicial, e os tribunais se consideram obrigados a cumprir a legislação” (NOGUEIRA, 2013, p. 193-194). Certo é que, na sistemática do stare decisis, a mudança de orientação jurisprudencial exige sempre motivação pela corte, a qual, quando se furta a esse dever, é usualmente tachada de autoritária pelas instâncias sociais.
Para Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 209), overruling e overriding não são sinônimos. Defende o autor que “o overriding refere-se à prática de restringir o âmbito de aplicação de um precedente judicial em julgamento posterior”, pelo que se assemelha a uma revogação parcial da orientação jurisprudencial pretérita, limitando-se o alcance da holding extraída no primeiro julgamento. Distingue o autor, ainda, o overruling do reversal. Neste caso, não há propriamente revogação do precedente, mas reforma pelo órgão ad quem da decisão prolatada pela instância inferior, a qual aplicou equivocadamente a ordem jurídica ao caso – hipótese que ocorre, no mais das vezes, para adequar o julgamento proferido pelo juízo de primeiro grau aos precedentes emanados pela corte revisora (LIMA, 2013, p. 209).
Incumbe, ainda, registrar a distinção entre overruling e conflito de precedentes (conflict over time), proposta por Michele Tarufo, citada por Gustavo Santana Nogueira. Segundo a autora, o overruling é uma mudança de opinião consciente feita pelo Tribunal que leva a sério a função dos precedentes, enquanto o conflict over time decorre normalmente da “falta de conhecimento acerca da existência de um precedente em sentido contrário ou da falta de consideração acerca do papel que precedentes consistentes têm em um sistema legal” (NOGUEIRA, 2013, p. 198).
O conflict over time, pois, encontra-se relacionado à doutrina das decisões per incuriam, assim consideradas “as que são dadas na ignorância de um precedente obrigatório ou de uma lei relativos ao caso” (SOUZA, 2013, p. 146). Nessa hipótese, para que o julgado não seja reputado como overruling, não basta que o precedente ou lei tenham deixado de ser referidos no julgamento ou não tenham sido discutidos completamente pelos integrantes da corte; é necessário ficar caracterizado que, se o tribunal tivesse tido ciência do precedente ou da lei, teria, inequivocamente, chegado a uma conclusão diversa para o caso (SOUZA, 2013, p. 146).
Desta feita, relevante a fixação de critérios objetivos para a identificação dos precedentes efetivamente superados pela jurisdição superior. No processo judiciário dos Estados Unidos, Saul Brenner e Harold Spaeth, citados por Gustavo Santana Nogueira, defendem o ensino de Sidney Ulmer, para quem um precedente terá sido superado ou overruled sempre que: a) a maioria do colegiado julgador expressamente assim o declarar; b) o juiz reconhecer a superação do precedente em outra decisão ou em estudos jurídicos distintos de sua função judicante; c) o report da corte citar o precedente como revogado no sumário de casos; d) o Shpard’s Citations [12] listar o case como superado (NOGUEIRA, 2013, p. 198).
6.3. Sinaling
Segundo Marinoni (2013, p. 334), em determinados sistemas jurídicos de precedente vinculativo, notadamente nos Estados Unidos da América, verifica-se a utilização de técnicas de aplicação e superação do precedente situadas entre o distinguishing e o overruling. Nessas circunstâncias, o tribunal não revoga o precedente, mas também não realiza uma adequado distinguishing, deixando aparente que o caso em julgamento não se diferencia, em essência, dos que já haviam sido apreciados para a formação da jurisprudência vigente.
É o caso da denominada “técnica da sinalização” (sinaling). Por meio desta, o tribunal reconhece que o conteúdo do precedente está equivocado ou, pelas mais diversas razões, não mais deve subsistir. Apesar disso, em respeito à segurança jurídica, a corte aplica a interpretação do julgado anterior e deixa de revogá-la, preferindo apontar para a sua perda de consistência e sinalizar para sua futura revogação (MARINONI, 2013, p. 334). Em palavras do processualista paranaense:
Nesta situação, o tribunal tem consciência de que o distinguishing não é possível, pois a solução que se pretende dar à questão é logicamente incompatível com a ratio decidendi do precedente. A exceção que derivaria do distinguishing não guardaria lógica com a manutenção do precedente. Não obstante, também sabe a corte que a revogação do precedente, diante das particularidades da situação, estará colocando em risco a segurança jurídica, mediante a negação da previsibilidade então outorgada à comunidade. Mantém-se o precedente unicamente em virtude da segurança jurídica, da previsibilidade dada aos jurisdicionados e da confiança que o Estado deve tutelar, ainda que não se duvide de que a sua manutenção está em desacordo com o ideal de direito prevalente à época. (MARINONI, 2013, p. 334)
Logo, pela técnica da sinalização, o tribunal comunica à sociedade e, sobretudo, aos advogados, que o precedente que até então orientava a atividade dos jurisdicionados e a estratégia dos agentes do Direito será revogado. Evita-se, com isso, que alguém atue em conformidade com o direito jurisprudencial e, ainda assim, seja prejudicado em sua esfera patrimonial. A sistemática permite que os litigantes não sejam surpreendidos pela mudança de orientação da corte, já que a decisão do caso em apreço será balizada pela ratio decidendi em vias de revogação, ficando as partes e a comunidade jurídica cientes de que, para os casos futuros, deve-se levar em consideração a superação do precedente sinalizado.
Parcela da doutrina sustenta que o objetivo maior da technique of sinaling, qual seja, tutelar a justificada confiança da população na previsibilidade das decisões judiciais, ante a sistemática do stare decisis, poderia ser alcançado com a mera atribuição de efeitos puramente prospectivos ao overruling (MARINONI, 2013, p. 340). Com efeito, os tribunais norte-americanos, de fato, já se utilizaram da faculdade de conferir à superação dos precedentes efeitos exclusivamente futuros: mantém-se, no julgamento em apreço, a ratio decidendi vigente, ao passo que se declara, desde já, a revogação do acórdão enquanto paradigma. Defensores da técnica da sinalização, contudo, afirmam que esta permite uma melhor modulação futura dos efeitos do overruling, na medida em que se torna possível observar o impacto da sinalização no plano social (MARINONI, 2013, p. 341).
6.4. Transformation
Outra estratégia situada no plano intermediário, que não se qualifica como distinguishing ou overruling, é a denominada de transformation. Trata-se de uma modificação substancial no conteúdo do precedente desprovida de manifestação expressa do tribunal no sentido da revogação. Consiste na imputação de relevância aos fatos que, no precedente, foram considerados apenas de passagem, atribuindo-se-lhes nova configuração (MARINONI, 2013, p. 346). Melvin Eisenberg, citado por Marinoni (2013, p. 342), chega a afirmar que “tanto a transformation quanto o overruling envolvem a completa revogação de um precedente”, sendo que “a distinção entre os dois modelos é frequentemente mais formal do que substantiva”.
Em verdade, porém, o overruling se apresenta como uma mudança de posicionamento mais drástica que a qualificada como transformation. No overruling, há uma incontestável revogação do precedente, fundada na absoluta incompatibilidade da decisão que está sendo prolatada com a decisão-paradigma; na transformation, por sua vez, tenta-se, no mais das vezes, compatibilizar o precedente com o resultado alcançado no caso sob julgamento (MARINONI, 2013, p. 343). Fala-se, assim, não em revogação do precedente, mas em atualização, conformação, releitura ou “transformação” do julgado, pelo que o instituto se revela menos gravoso que revogação abrupta que caracteriza o overruling.
Comparada à revogação do paradigma, a transformation tem a vantagem de conferir uma maior estabilidade ao sistema de precedentes, na medida em que não implica o reconhecimento necessário da ocorrência de erro no julgamento anterior. De fato, no overruling, a corte admite não apenas um equívoco na tese jurídica que embasou as decisões pretéritas, mas, também, uma verdadeira falha no julgamentos efetuados, cujo resultado poderia ter sido inverso se inexistente a ratio decidendi superada (MARINONI, 2013, p. 344). Na transformation, diversamente, limita-se o tribunal a adequar a tese constante do precedente ao resultado do julgamento que pretende prolatar, deixando de negá-la por completo (caso do overruling) e tampouco abrindo uma exceção pautada em critérios estritamente fáticos (hipótese do distinguishing).
Não obstante, carrega o instituto o grave inconveniente de tornar dificultosa a compreensão, pelas cortes inferiores, do novo significado outorgado ao precedente. Na medida em que se modifica o resultado do julgamento sem negar vigência ao antecedente, cria-se um estado de indefinição que faz tormentosa a tarefa de interpretar o paradigma. Segundo Marinoni (2013, p. 344), tal problemática resulta precisamente da “artificialidade” da transformation, consistente na falsa ideia de que o respeito ao precedente ainda estaria sendo preservado.
6.5. Overriding
Nos Estados Unidos da América, fala-se, ainda, em overriding – que, nesse contexto, não se confunde com o overruling – para referir à técnica mediante a qual o Tribunal, sem adotar uma revogação expressa, limita ou restringe o âmbito de incidência de determinado precedente (MARINONI, 2013, p. 346). Assemelha-se a medida a uma revogação parcial, mas não se constitui efetivamente em uma porquanto não se cogita da invalidação do precedente, mas, tão somente, da inaplicabilidade da integralidade do paradigma a determinado caso concreto, tendo em vista a existência de novas condicionantes sociais (LOURENÇO, 2013, p. 1).
Por meio do overriding, afasta-se a aplicação de um precedente sem revogá-lo, pelo que a estratégia mais se aproxima da técnica do distinguishing. Difere desta, contudo, na medida em que não se pauta o julgador por distinções factuais, mas baliza sua decisão em lei ou entendimento superveniente fundado em proposições sociais incompatíveis com as que, outrora, justificaram a formação do precedente.
Significa dizer, pois, que não se nega a validade do precedente à luz do estado de coisas vigente ao momento de sua edição; tampouco se declara a impropriedade da ratio decidendi e muito menos a incorreção dos julgados pretéritos que nela se baseiam. Afirma-se, tão somente, que, no estágio de desenvolvimento social ao tempo do segundo julgamento, e tendo em vista o novo sistema de valores que comporta a sociedade, é de se superar parte do entendimento constante do paradigma para um julgamento eficaz do conflito sub examine. Marinoni esclarece o ponto nos seguintes termos:
O overriding se baseia na necessidade de compatibilização do precedente com um entendimento posteriormente formado. A distinção que se faz, para se deixar de aplicar o precedente em virtude do novo entendimento, é consistente com as razões que estiveram à base da decisão que deu origem ao precedente. Como explica Eisenberg, em teoria, o overriding poderia ser visto apenas como um caso especial de desvinculação (hiving off) mediante distinções consistentes, quando a Corte lida com um tipo de situação que não estava envolvida nos precedentes que deram origem ao entendimento anterior e conclui que, dadas as proposições sociais que fundamentam aquele entendimento anterior, a situação em questão deveria ser desvinculada para ser tratada de acordo com o entendimento mais recente. Portanto, há nova situação e novo entendimento no plano dos tribunais ou da academia, capaz de não permitir que caso substancialmente idêntico seja tratado da mesma forma. A distinção feita no overriding supõe que o litígio anterior, caso fosse visto na perspectiva da nova situação e do novo entendimento, teria tido outra solução. É por isso que, embora o overriding não signifique revogação, o seu resultado, do mesmo modo que aquele a que se chegou com o overruling, é incompatível com o precedente. (MARINONI, 2013, p. 346)
Eisenberg, citado por Maira Portes (2013, p. 1), aponta para o fato de que o overriding é uma forma de analisar uma questão não abordada no precedente, de maneira independente, e considerando-se as condições sociais que inspiraram a adoção da ratio decidendi. Ainda segundo o autor, na prática, porém, verifica-se que as cortes, muitas vezes, revogam parcialmente uma doutrina sob as mesmas condições sociais vigentes quando da edição originária do precedente. Nessas circunstâncias, o overriding nada mais se revela do que uma revogação parcial e implícita do precedente (PORTES, 2013, p. 1).
6.6. Drawing of inconsistent distinctions
Por último, registra-se a técnica estadunidense da elaboração de distinções inconsistentes (drawing of inconsistent distinctions), no âmbito dos procedimentos de interpretação, aplicação e superação de precedentes. Trata-se de artifício pelo qual o tribunal, sem revogar o precedente que o obriga, deixa de aplicar parte de determinado entendimento, à semelhança do que ocorre com o overriding. Diferentemente deste, contudo, a tese que se adota no julgamento corrente não é compatível com a ratio decidendi do paradigma, precisamente porque inexistem novas condicionantes sociais ou legais (MARINONI, 2013, p. 349). Por essa razão, fala-se que a distinção suscitada pela corte é “inconsistente”, vez que não resiste a uma análise de compatibilidade entre os valores fundantes da distinção e aqueles que inspiraram o precedente.
Uma vez que a consistência é um atributo desejável para os precedentes, a utilização de distinções inconsistentes pode parecer imprópria, devendo as cortes limitarem-se a aplicar os precedentes de forma coerente, ampliando seu alcance pelo uso de uma interpretação extensiva ou afastando sua aplicação mediante técnicas de diferenciação (distinguishing) ou de superação (overruling). Entretanto, sendo a elaboração de distinções inconsistentes uma prática consolidada nos tribunais norte-americanos, autores se dedicaram à tarefa de explicar teoricamente o instituto, sustentando a possibilidade de as cortes se valerem do expediente.
Nesse sentido, Ronald Dworkin, ao elaborar a teoria do direito como integridade, sustenta que as proposições jurídicas são verdadeiras quando comportam ou derivam de princípios de justiça, isonomia e constituem o devido processo pelo qual proveem a melhor construção interpretativa da prática jurídica da comunidade (MARINONI, 2013, p. 350). A integridade, para Dworkin, pressupõe dois aspectos distintos, sendo um legislativo e outro jurisdicional. Reside o primeiro na tarefa imposta ao parlamento de tornar o conjunto de leis do Estado moralmente coerentes, ao passo que a segunda perspectiva impõe aos magistrados que, por ocasião da atividade judicante, considerem como pilar hermenêutico a coerência moral que deve envolver o ordenamento jurídico (FERRI, 2013, p. 1). Trata-se, assim, de uma noção de integridade ou consistência sistêmica, e não meramente pontual, pelo que uma técnica essencialmente inconsistente, se utilizada de forma coerente como elemento da ordem normativa, não retira a integridade do sistema.
A partir dessa premissa, Melvin Eisenberg, citado por Marinoni, defende que argumentar o equívoco da utilização, pelas cortes judiciárias, da técnica das distinções inconsistentes
derivaria de uma concepção de integridade restrita a resultados, passo que o significado comum do termo “integridade” – assim como “isonomia” (evenhandedness) – pode se satisfazer não somente pela consistência dos resultados, mas também pelo emprego consistente dos princípios institucionais que geram estes resultados. Assim, os princípios institucionais do overruling, por exemplo, podem gerar resultados atuais incoerentes com os passados, de modo que o emprego consistente de princípios institucionais não afasta a integridade e a isonomia simplesmente porque gerou resultados inconsistentes. (MARINONI, 2013, p. 350)
Uma razão que justificaria a adoção de distinções inconsistentes seria a hipótese de o tribunal não estar completamente convencido de que o entendimento anterior deve ser revogado. Utilizar-se-ia a corte, nessas circunstâncias, de uma distinção inconsistente como passo provisório para uma revogação total, sendo o princípio institucional da provisoriedade responsável pela manutenção da integridade do sistema normativo, o qual manteria a isonomia, apesar de elaborar regra inconsistente com a ordem jurídica vigente (MARINONI, 2013, p. 351).
Outro argumento em prol do instituto é a tutela da confiança justificada. A distinção inconsistente permitiria a proteção daqueles que confiaram no núcleo de determinado entendimento, isto é, na parte essencial de determinado precedente, a qual, plausivelmente, não pode ser sequer diferenciada, sendo, portanto, mantida pelo tribunal, por ficar de fora da distinção suscitada. Com efeito, há casos em que é impossível efetuar-se uma revogação parcial (overruling), vez que o resultado que se pretende proferir seria incompatível com a manutenção de parte da regra, exigindo o caso uma revogação total do precedente. Igualmente, há hipóteses em que não cabe promover nova configuração a fatos não essenciais (transformation) ou justificar a alteração do precedente em um novo quadro de valores sociais (overriding), mas, simplesmente, de excluir-se determinada situação do campo de incidência de um julgado por mera conveniência do julgamento (critério da “justiça” da decisão). A utilização de distinções inconsistentes permite produzir o resultado pretendido sem revogar o núcleo essencial do precedente, prestigiando, assim, o particular que confiou na estabilidade regra de direito jurisprudencial.