4 CUSTOS DA PRIVAÇÃO DA LIBERDADE E CRISE DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PRISIONAL
Eugênio Raul Zaffaroni, analisando as fontes teóricas da deslegitimação do sistema penal e da pena de prisão nos países centrais, refere-se à “versão deslegitimante de Quinney”, conhecido filósofo crítico, cuja contribuição para a investigação criminológica é considerada significativa. Nas palavras e Zaffaroni, Quinney se refere à crise do direito penal e da prisionização como conseqüência da crise do capitalismo, “pois frente à crise legitimante de seu poder, o capitalismo enfrentaria um conflito que provocaria o seu colapso.”[19]
Aponta, ainda, que Quinney dedicou várias páginas de seu estudo aos problemas dos custos do delito e à política econômica do direito penal, apontando que tais fatores representam ponto relevante para a crise de legitimidade do sistema prisional. Ele “observa a existência de uma política econômica do direito penal com custos astronômicos que recaem sobre a população excedente”.[20] Trazendo o problema dos custos como argumento central, Quinney parece ter a abolição do sistema penal como meta principal.
Em sua obra Teoria da Pena, Juarez Cirino dos Santos passa em revista as teorias que defendem os “substitutivos penais”, assim chamados por representarem uma alternativa às penas de prisão. As propostas substitutivas das penas surgem em face da sua tão decantada deslegitimidade para responder, satisfatoriamente, aos problemas do crime e da criminalidade, não atendendo aos fins preventivos geral e especial da pena.
Analisando o que chama de “teorias críticas”, Cirino dos Santos apresenta três argumentos da “moderna teoria jurídica e criminológica sobre crime e pena” a justificar a opção pelos substitutivos: a superlotação carcerária, a ampliação do controle social e a crise fiscal do sistema penal. Aqui interessa, mais particularmente, o último argumento, que penetra o problema dos custos do direito penal de maneira frontal.
Conforme acentuado pelo referido autor, “a tese da crise fiscal explica os substitutivos penais por relações custo/benefício, fundada no argumento da incapacidade financeira do Estado para arcar com o custo do preso durante a execução da pena.”[21] Nesse diapasão, lembra que o custo do preso, como já exarado nestas páginas, inclui despesas de consumo individual e de serviços pessoais, como também:
[...] o conjunto dos salários do pessoal técnico-administrativo, assistencial e de segurança interna dos estabelecimentos penais, mais a verba consumida com reformas, ampliações, reconstruções e construções de novas prisões, cuja soma constitui a dotação orçamentária do sistema penitenciário.” [22]
Aliás, o problema do custo da prisão parece ser dos argumentos mais robustos e contundentes que os defensores dos substitutivos penais erguem contra a privação da liberdade. Geder Gomes, já referido neste trabalho, um dos mais ardorosos defensores das alternativas penais no Brasil, parece seguir por esse caminho. Em sua obra sobre a substituição da prisão, sustenta sua defesa das medidas alternativas, dentre outros, no argumento do custo financeiro da pena. Vejam-se suas palavras:
[...] o sistema de execução de alternativas penais é significativamente mais barato que o sistema carcerário, gerando uma economia extremamente expressiva para os cofres públicos e, conseqüentemente, para a sociedade, pois um sentenciado a alternativas penais custa, em média, menos de 10% do custo mensal de um preso. [23]
A busca de legitimação das alternativas penais sustenta-se em seu reduzido custo frente à privação da liberdade; aqui, o que se tem em mira não é tanto a eficácia de um ou de outro sistema, mas o seu impacto financeiro que tendem a causar na economia da Administração Pública.
O problema dos custos, assim, parece figurar como uma causa natural da crise pela qual passam as penas privativas de liberdade, no Brasil e no mundo. Entretanto, diante da constatação da escassez de recursos públicos de que é vítima o Estado, é possível pensar que, talvez aqui, no tocante ao sistema prisional, o problema dos custos não seja tão somente causa da reconhecida crise, mas também um meio de justificar as escolhas trágicas – políticas, portanto – de não se investir no sistema prisional, fator que somente aprofunda suas incongruências e reforça sua crise de legitimidade.
A opção pelo não investimento de recursos no âmbito dos estabelecimentos prisionais, por seu turno, causa “efeitos colaterais”, como o déficit de vagas, a falta de pessoal técnico especializado, as condições desumanas e demais abusos. A carência de recursos e o baixo investimento agudizam, assim, os demais fatores determinantes da crise do sistema. É o que ressalta das observações que se seguem:
[...] os juristas [...] vêm se ocupando dos estudos sobre a existência da crueldade e da desumanização no ambiente carcerário, como elemento ensejado da deslegitimação da pena privativa de liberdade, onde violações à dignidade da pessoa humana são rotineiras e freqüentes, e que ocorrem em vários países, não se restringindo ao terceiro mundo. Citam como deficiências do sistema [...] a superpopulação carcerária, a qual reduz a privacidade do recluso e facilita abusos sexuais; a falta de higiene, que estimula a proliferação de doenças; as condições deficientes de trabalho; a deficiência de serviços médicos; o regime alimentar deficitário; o consumo de drogas facilitado por funcionários penitenciários corruptos; a violência e utilização de meios brutais para a imposição do poder, além de outras formas de coação. Tais constatações viriam a exigir dos governantes uma série de reformas, que viessem a permitir que a pena privativa de liberdade pudesse efetivar sua finalidade reabilitadora.[24]
Como visto, todo o caos instalado no ambiente prisional demanda, dos governantes, “uma série de reformas”, que não são empreendidas pela falta de vontade política, justificada pela reserva do possível.
Aliás, em sua abordagem, Cirino dos Santos reforça ainda mais esses argumentos, lembrando que a referida crise fiscal do sistema prisional tem produzido “modificações dos mecanismos repressivos do Estado na era da internacionalização do capital financeiro e das relações econômicas e comerciais”, gerando, dentre outros, os seguintes efeitos:
[...] o deslocamento do controle social de setores não-produtivos do Estado para setores produtivos da indústria e do comércio, expandindo a área do controle social não-institucionalizado, como a utilização intensiva de penas alternativas e de hipóteses legais de execução penal desinstitucionalizada, a ampliação da descriminalização e da despenalização de condutas [...] e ainda caracteriza a política criminal dos países periféricos do sistema econômico-financeiro.[25]
Como o sistema prisional não se inclui no setor produtivo, o Estado acaba por desprestigiá-lo quanto ao aporte de recursos, preferindo as vias menos pesadas, como a adoção das penas alternativas e medidas outras de desinstitucionalização da execução penal, bem como os fenômenos de descriminalização e despenalização. Todos esses mecanismos são formas de reduzir o investimento estatal no meio carcerário e, consequentemente, de aprofundar o seu descrédito.
Além da preferência por direcionar recursos para os meios produtivos, o não investimento no sistema prisional também é justificado pela promoção de políticas públicas de amplo espectro e que alcançam parcelas maiores da sociedade. É isso o que ressalta do discurso de Geder Gomes:
Vale ressaltar que esse enxugamento no gasto público com a atividade punitiva se reflete na ampliação da possibilidade de investimento dos recursos economizados, em políticas públicas e sociais ou de caráter preventivo criminal que em última análise, enfrentam o problema nas suas causas e não nos seus efeitos. [26]
Argumentos assim representam o combustível com que os governantes fundamentam o não atendimento pleno das demandas prisionais. Direcionar verbas para outros setores, promovendo políticas públicas e sociais, parece ser um motivo justo para se preterir a “grande massa delinqüente” em favor dos “homens bons e honestos” da “sadia sociedade”.
Parece haver, portanto, por um lado, uma crise que é real, intrínseca à própria concepção e execução da privação da liberdade, na qual o problema dos custos exerce influência singular, e um outro lado dessa crise, um lado fomentado por decisões políticas de alocação do erário público, que toma a crise do sistema como “le motive” para não investir recursos no universo prisional, aprofundando ainda mais as suas incongruências e contribuindo para sua falência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos custam. E custam caro.
O Estado, em seu papel de atender às demandas sociais, necessita despender altas somas para a satisfação das pretensões de proteção e concreção dos direitos fundamentais.
Nada obstante esse dever, os recursos públicos são escassos, o que leva o Poder Público a tomar decisões trágicas. Nestas decisões, torna-se imperioso, por meio de critérios políticos e discricionários, promover a alocação de recursos em determinados setores, em detrimento de outros.
Os custos do crime e da prisão se revelam altos e pesados para a sociedade. Sobretudo os custos da pena, que abarcam desde a instalação dos estabelecimentos prisionais (construção, ampliação, reformas, reconstrução e instalações), passando pelos gastos com alimentação, vestuário, pessoal técnico e saúde, atingindo mesmo os custos com a busca da reinserção do condenado ao convívio social.
Em meio à crise de legitimidade pela qual passam as penas privativas de liberdade, o problema dos custos é apontado como fator fundamental. As altas somas que são empregadas no sistema e a baixa expectativa de que as medidas encarceradoras produzam efeitos profiláticos e terapêuticos contribui para que outras medidas, alternativas à pena de prisão, sejam preferidas, por serem menos custosas.
Tal panorama, na prática, termina por gerar justificativas, plausíveis ao olhar social, para que o Poder Público não aloque seus tão escassos recursos no sistema prisional. Já que a privação da liberdade não serve para nada, ou antes, somente serve como castigo e segregação da “escória” humana, é melhor empregar os poucos recursos do erário público com aqueles ditos “saudáveis”, “pessoas de bem”, que merecem usufruir do sadio convívio social.
Ao que tudo indica, o aspecto financeiro da crise de legitimidade da privação da liberdade é manifestamente utilizado para justificar as decisões alocativas do Poder Público e os baixos investimentos do sistema prisional. Disto resulta o aprofundamento das distorções e o agravamento do desrespeito da dignidade humana dos “clientes” do sistema.
Acredita-se que o Estado necessita rever suas decisões alocativas no tocante ao sistema prisional. Até que seja substituída por algo melhor, as prisões ainda desempenham papel fundamental de controle social, não se podendo dela prescindir, ao menos na atual conjuntura sócio-política. Se já se reconhece que o seu ambiente é inóspito, desumanizante, o papel do Estado é torná-lo o menos agressivo possível, o que somente se realiza com aporte de recursos, com investimento.
Suas incongruências não devem justificar o desinteresse estatal pela sua existência e sua realidade. Afinal, ainda que rotulados como “criminosos”, lá se encontram pessoas que tão somente foram cerceadas, através de uma sentença condenatória ou de alguma medida cautelar, do seu direito de ir e vir. Todos os demais direitos não atingidos pelos efeitos da condenação devem ser preservados e promovidos pelos entes públicos.
Assim, considera-se que a escassez de recursos não pode servir como pano de fundo para a negligência acintosa do Estado frente às carências do cárcere. É preciso rever as decisões alocativas e contribuir para a redução dos efeitos danosos que o encarceramento produz sobre a sociedade e os indivíduos.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: São Paulo, 2002, v. 2, p. 135.
[2] BITENCOURT, Cezar. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 02.
[3] SOUZA, Percival de S. Sindicato do crime: PCC e outros. São Paulo: Ediouro, 2006.
[4] GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos do Direito – Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[5] AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha – Critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 29 e ss.
[6] MARCELINO JR., Júlio C.; ROSA, Alexandre M. da. “Os Direitos Fundamentais na perspectiva de custos e o seu rebaixamento à categoria de direitos patrimoniais: uma leitura crítica”. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2009, n. 1, Ago-Dez., p. 12.
[7] MARCELINO; ROSA. Op. Cit., p. 12
[8] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W. W. Norton, 1999, p. 13.
[9] Idem, p. 43-44.
[10] Op. Cit., p. 201.
[11] AMARAL, Gustavo. Op. Cit., p. 29 e ss.
[12] AMARAL, Gustavo. Op. Cit., p. 81.
[13] Idem, p. 83.
[14] SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível, mínimo existencial e direitos humanos. In: COUTINHO, Jacinto N. de M.; LIMA, Martonio M. B. (Orgs.). Diálogos Constitucionais: Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 152-153.
[15] GOMES, Geder L. R. A substituição da prisão – Alternativas Penais: legitimidade e adequação. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 199-200.
[16] Op. Cit., p. 200-201.
[17] SANTOS, Boaventura S. (dir. científica); GOMES, Conceição (coordenação). A Reinserção Social dos Recluso: uma contribuição para o debate sobre a reforma do sistema prisional. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2003, p. 242.
[18] Op. Cit., p. 243.
[19] ZAFFARONI, Eugênio R. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 57.
[20] Idem, ibidem.
[21] SANTOS, Juarez C. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 152.
[22] SANTOS, Op. Cit., p. 152.
[23] GOMES, Geder L. R. Op. Cit., p. 202.
[24] NEVES, Sheilla M. da G. C. das. Penas restritivas de direitos – alternativa de punição justa: uma análise dos fins das penas restritivas de direitos à luz da teoria dialética unificadora de Claus Roxin. Dissertação de Mestrado. Salvador:UFBA, 2007, p. 73.
[25] SANTOS, Juarez C. dos. Op. Cit., p. 153.
[26] GOMES, Geder L. R. Op. Cit., p. 203.