O Tribunal de Contas da União, em resposta a consulta formulada pela Secretaria de Gestão Pública do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, estabeleceu critérios para fiscalização e manutenção do benefício pensional de filhas solteiras maiores, obtidos sob a égide da Lei nº 3.373/1958, através do Acórdão de Plenário nº 892/2012. Tal resposta motivou diversos órgãos da Administração pública a requerer de suas pensionistas, por ocasião do recadastramento anual determinado pela Lei nº 9.527/1997, declaração de que dependem economicamente da pensão que recebem, e a apresentação de algum documento que comprove o recebimento de qualquer espécie remuneratória, se existente.
Contudo, conforme se demonstrará, a verificação da permanência da situação de dependência econômica, conforme determinada pelo Acórdão do TCU nº 892/2012-Plenário é ilegal, violando uma série de garantias fundamentais da República Federativa do Brasil. Antes de mais nada, deve-se verificar o que diz a lei sobre o tema, e depois a análise do referido Acórdão dará evidência dessa ilegalidade cometida pelo Tribunal de Contas da União.
A Lei 3.373/1958, ora revogada, estabelecia no seu artigo 5º o seguinte:
Para os efeitos do artigo anterior, considera-se família do segurado: [...]
II - Para a percepção de pensões temporárias:
a) o filho de qualquer condição, ou enteado, até a idade de 21 (vinte e um) anos, ou, se inválido, enquanto durar a invalidez; [...]
Parágrafo único. A filha solteira, maior de 21 (vinte e um) anos, só perderá a pensão temporária quando ocupante de cargo público permanente.
Essa norma deixou de ser aplicada a novas pensões quando do advento da Lei nº 8.112, a partir de sua vigência em 12/12/1990, mas inúmeras pensões temporárias foram constituídas em seus fundamentos.
Segundo aquela Lei, a filha solteira perderia sua condição de pensionista se deixasse de ser solteira ou se viesse a ser “ocupante de cargo público permanente”. Portanto, a manutenção da pensão temporária da filha solteira depende da permanência de sua condição de solteira e da permanência de sua condição de não ser “ocupante de cargo público permanente”.
Muitas pensões foram extintas pelo fator do estado civil, inclusive por causa de casamentos religiosos ou uniões estáveis comprovadas, mesmo ainda quando não se havia estendido a proteção constitucional a esse regime de coabitação, ora constante no art. 226 da Constituição Federal.
Para aferição da regularidade das qualificações legais para a condição de filha solteira, maior de 21 anos, as pensionistas devem declarar, sob as penas da lei, que continuam no estado civil de solteira e que não exercem cargo público permanente em Órgão da Administração Pública. Quem fizer declaração falsa, omitindo fatos que devia relatar, incorre no crime assim definido no Código Penal Brasileiro:
Falsidade Ideológica
Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaraç?o que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaraç?o falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigaç?o ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - reclus?o, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, se o documento é público, e reclus?o de 1 (um) a 3 (tr?s) anos, e multa, se o documento é particular.
O Acórdão 892/2012-Plenário do TCU trata de dar resposta a questões relacionadas com o art. 5º da Lei 3.373/1958, especificamente sobre três aspectos: (1) o da ocupação de cargo público e acumulação de benefícios; (2) o de maioridade na época do óbito; (3) o da dependência econômica.
O Tribunal de Contas da União ofereceu resposta ao primeiro tópico com base no próprio texto legal: sendo ocupante de cargo público, a filha solteira maior de 21 anos deve perder a condição de pensionista, sequer havendo possibilidade de opção pela situação mais vantajosa, uma vez que não existe amparo legal para tal opção. É o que revelam os seguintes destaques do Acórdão:
9.1.3. Questão nº 3: o simples fato de a filha solteira maior de 21 anos titularizar cargo público ou ser aposentada sob o Regime do Plano de Seguridade Social do Servidor Público enseja, imediatamente, a extinção do direito à percepção do benefício instituído com fulcro no parágrafo único do art. 5º da Lei nº 3.373, de 1958?
Resposta: SIM, cumprindo esclarecer que se incluem ainda entre as razões para a extinção do direito à percepção de tal benefício qualquer outro fato que descaracterize a dependência econômica da beneficiária em relação ao instituidor da pensão, consoante resposta dada à questão nº 1.
9.1.4. Questão nº 4: uma vez constatada a situação da questão anterior, deverá a administração facultar à beneficiária de pensão a possibilidade de, a qualquer tempo, optar pela situação mais vantajosa, consoante disposto na Súmula nº 168, do Tribunal de Contas da União?
Resposta: NÃO, posto que inexiste amparo legal para que a administração faculte à beneficiária a opção cogitada, cabendo reiterar que, conforme a resposta dada à questão anterior, qualquer uma das situações ali aventadas, ou algum outro fato que descaracterize a dependência econômica da pensionista em relação ao instituidor da pensão, enseja a extinção irreversível do direito à percepção do sobredito benefício.
9.1.5. Questão nº 5: o fator impeditivo para a percepção do benefício previsto no parágrafo único do art. 5º da Lei nº 3.373, de 1958, qual seja, "ocupante de cargo público permanente" estará caracterizado se a filha solteira maior de 21 anos for nomeada para cargo em comissão, tiver sido contratada com supedâneo na Lei nº 8.745, de 1993, ou for empregada de empresa pública ou sociedade de economia mista, e, por conseguinte, deverá ser suspensa a pensão?
Resposta: SIM, mas não em razão de as ocupações mencionadas se equipararem a cargo público permanente, e sim por causa da percepção de renda própria, desde que o ganho auferido, não só pelo exercício das ocupações aí indicadas, como também de algum outro trabalho regularmente remunerado, resultar em rendimento capaz de proporcionar subsistência condigna, conforme verificação a ser procedida caso a caso (v. itens 29 a 39 do voto precedente), porquanto isso descaracterizaria a dependência econômica, requisito que, conforme já dito, deverá ser atendido por parte da filha solteira maior de 21 anos tanto para a concessão da pensão quanto para a sua manutenção.
Do mesmo modo quanto ao primeiro tópico, a resposta à segunda questão, relacionada com a maioridade da beneficiária, foi oferecida com base na própria Lei 3.373/1958, como se verifica na resposta formulada:
9.1.6. Questão nº 6: para que seja beneficiária da pensão prevista no parágrafo único do art. 5º da Lei nº 3.373, de 1958, a filha solteira deve ser menor de 21 anos na data do óbito do instituidor da pensão?
Resposta: NÃO.
Contudo, as questões relacionadas ao problema da dependência econômica requereram raciocínios e construções axiológicas que não podem ser verificadas na Lei, mas em outras fontes, chamadas de “premissas” num parecer técnico da Secretaria de Fiscalização de Pessoal – SEFIP, citado no Acórdão:
7. Antes de proceder à análise e buscar responder às perguntas acima, entendemos ser pertinente a apresentação de algumas premissas acerca da situação social da mulher no país na década de 1950, bem como do propósito da promulgação da Lei 3.373, de 12 de março de 1958.
8. O papel da mulher na sociedade brasileira da década de 1950 era bem diferente da realidade atual. A mulher dessa década, na sua grande maioria, tinha como funções o bem estar dos filhos, do marido e da casa. Ao homem cabia ser o chefe da família, sendo a autoridade da casa e o responsável pelo orçamento doméstico. Essa realidade já não é mais a realidade social das famílias brasileiras. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais-2007 do IBGE, em 2006 o número de mulheres responsáveis pelos domicílios era de 18,5 milhões. Esses mesmos indicadores apontam o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho e o aumento da porcentagem média de escolaridade feminina.
9. Quando de sua promulgação, a Lei nº 3.373/58 tinha por objetivo principal proporcionar recursos para a manutenção da família do servidor depois da sua morte. Levando-se em consideração à situação feminina na década de 1950, conforme acima mencionado, a filha solteira maior foi mantida no rol dos dependentes do segurado para a percepção de pensão temporária.
10. Mesmo tendo sido mantido o entendimento de que, ainda que maior de 21 anos por ocasião do óbito do instituidor, a filha solteira maior estaria habilitada para a percepção da pensão, este Tribunal deixa claro que os requisitos exigidos pela lei em questão deveriam estar preenchidos, quais sejam: ser solteira, não ser ocupante de cargo público e possuir dependência econômica em relação ao instituidor (vide Acórdão 305/2007-Plenário).
11. Tendo essas premissas por válidas, passemos aos questionamentos da SRH/MPOG.
O Tribunal de Contas da União simplesmente acrescentou um requisito à qualificação para a pensionista filha solteira maior de 21 anos: “possuir dependência econômica em relação ao instituidor”. Este requisito não constava da Lei nº 3.373/1958.
As premissas foram tomadas como válidas. Absolutas. Inquestionadas, fundamentaram a decisão final, proferida em Acórdão. Contudo, uma breve análise do fundamento “legal” da premissa demonstra a falácia do argumento construído.
Ao fim da apresentação das “premissas”, a SEFIP faz alusão a um outro Acórdão do TCU, de nº 305/2007–Plenário, que tratou do caso de uma
beneficiária de duas pensões civis pagas pelo Erário Federal: a primeira, no âmbito do Ministério dos Transportes, instituída por seu pai, Francisco Brito, em 15/12/2000, com base na Lei nº 3.373/58 (filha solteira maior de 21 anos), e a segunda, na condição de companheira designada, com fundamento na Lei nº 8.112/90 (art. 217, inciso I, alínea “c”), deixada por João Matias da Silva, ex-servidor do Ministério da Defesa (Comando do Exército), em 17/6/2003, com quem mantinha relação de concubinato desde 1996.
Essa beneficiária teve suspensa sua pensão temporária como filha solteira maior de 21 anos, pelo fato de ter vivido em concubinato, em franca violação ao parágrafo único do art. 5º da Lei 3.373/1958. O fundamento da extinção do benefício foi o da perda do estado civil de solteira, e o da irregularidade da data em que se concedeu a pensão, e não o da ausência de dependência econômica.
De fato, o tema da dependência econômica surge nos autos por uma transcrição do parecer do Ministério Público, que invoca uma decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 406886/RJ, envolvendo a mesma pensionista, como segue:
6. No caso em exame, não há como presumir essa dependência [econômica], uma vez que o pai da denunciada, Francisco Brito, faleceu em 10/04/79, e a pensão somente foi-lhe concedida em 15/12/2000, após 21 anos do óbito; além disso, Maria Gizélia convivia em perfeita união estável, harmônica e pacífica desde 1996, como se casada fosse com João Matias da Silva, de quem era companheira e dependente econômica, conforme declarações constantes dos autos (fl. 12).
7. A Lei nº 3.373/58 tinha por objetivo principal proporcionar recursos para a manutenção da família do servidor depois da sua morte (art. 1º). A partir do momento em que a filha solteira desse servidor passa a constituir nova família, fundada no casamento ou no companheirismo, diante do dever do casal de assistência econômica mútua e recíproca, ela perde a condição de dependente econômica do pai e cessa para a União o dever de prestar-lhe alimentos. A perda da condição de dependente e beneficiária do pai não é restabelecida com o óbito do companheiro, de quem obteve pensão.
No Acórdão do TCU nº 305/2007–Plenário, a pensionista não guardava dependência econômica para com o pai, mas para com o companheiro, conforme declaração do Ministério do Exército constante naqueles autos. Assim, ela perdeu o direito à pensão como filha solteira maior de 21 anos, não por descumprimento de um requisito não-legal de dependência econômica, mas por acumulação de benefícios excludentes.
O problema da dependência econômica não consta da Lei. Antes, é um fato da vida. Não obstante, o TCU estabeleceu o seguinte, no Acórdão 892/2012-Plenário:
9.1.1. Questão nº 1: a filha solteira maior de 21 anos, para fazer jus à pensão da Lei nº 3.373/1958, c/c a Lei nº 6.782/1980, deverá comprovar a dependência econômica em relação ao instituidor da pensão?
Resposta: SIM, lembrando que a dependência econômica constitui requisito cujo atendimento é indispensável tanto para a concessão da pensão quanto para a sua manutenção, ou seja, a eventual perda de tal dependência por parte da pensionista significará a extinção do direito à percepção do benefício em referência.
9.1.2. Questão nº 2: a filha solteira maior de 21 anos poderá acumular os proventos de aposentadoria percebidos sob o Regime Geral de Previdência Social com a pensão deferida com fundamento na Lei nº 3.373, de 1958?
Resposta: NÃO, salvo se os proventos de aposentadoria percebidos sob o Regime Geral de Previdência Social representarem renda incapaz de proporcionar subsistência condigna, situação a ser verificada mediante análise caso a caso, conforme explicação constante dos itens 29 a 39 do voto que fundamenta este acórdão.
Conforme explicitado anteriormente, o Tribunal de Contas da União, a partir da constatação do anacronismo da pensão temporária para filha solteira maior de 21 anos, constante da Lei 3.373/1958, declarou a necessidade de satisfação de mais um requisito: o de comprovação de dependência econômica. Esse requisito não consta do texto legal.
Assim, indaga-se, propriamente: a função de criar uma norma não pertence ao Poder Legislativo? Criar uma obrigação não é um ato que depende de competência legal? E a todos os cidadãos brasileiros, bem como aos estrangeiros residentes no país não é garantido que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, conforme art. 2º da Constituição Federal de 1988?
Ademais, não garante o Ordenamento Jurídico Brasileiro que “a lei não prejudicará o direito adquirido”, segundo a regra da Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXVI? No mesmo sentido, a Lei nº 12.376/2010, chamada de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, não garante o respeito ao “ato jurídico perfeito” e ao “direito adquirido”, no seu art. 6º? Tendo sido concedidas em conformidade com os termos da Lei 3.373/1958, as pensões das filhas solteiras maiores consistem em ‘atos consumados segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou’, de acordo com o parágrafo 1º, do art. 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
O Tribunal de Contas da União não possui competência para estabelecer um requisito adicional aos já elencados na Lei. Não se discorda do anacronismo da pensão para filha solteira maior de 21 anos. Há muito a mulher alcançou independência e autonomia suficientes para prover seu próprio sustento, e é difícil aceitar a ideia de se manter, a custa de recursos públicos, as necessidades de cidadãs que podem trabalhar e prover seu próprio sustento. Ainda assim, não se pode admitir que um órgão de fiscalização dos atos dos poderes públicos crie uma norma a ser aplicada como se legal fosse, em franca violação às regras do Estado Democrático de Direito.
Caso o Poder Legislativo considerasse necessária a satisfação de mais um requisito, o da dependência econômica dos proventos de pensão, este deveria ser devidamente cumprido e comprovado por todas as pensionistas temporárias que fossem filhas solteiras maiores de 21 anos (Mas isso implicaria em acrescentar termos à Lei 3.373/1958, o que nem mesmo o Congresso Nacional se dispôs a fazer, em respeito à regra constitucional do art. 5º, inciso XXXVI e à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Lei nº 12.376/2010). Caso qualquer outro órgão queira impor essa regra às suas pensionistas, nenhuma poderá ser obrigada a satisfazê-la e apresentar comprovantes de sua situação econômica. Esse é o procedimento de um Estado de Direito, em que se erige a República Federativa do Brasil, desde 1988. Outra coisa é tirania.