É já um truísmo dizer que a República Federativa do Brasil assumiu há muito anos o figurino constitucional de um Estado laico ou não confessional, o que implica pleno respeito à liberdade religiosa, tanto para crer como para descrer em algo além da matéria.
E, como é cediço, neste cenário de amistosa tolerância, ateus e agnósticos convivem fraternamente com cristãos, judeus, espíritas, mulçumanos e adeptos de religiões politeístas como a umbanda, o candomblé e os seus respectivos orixás.
Todavia, sem embargo da neutralidade estatal que o constituinte de 1988 nos legou, é forçoso reconhecer que a tradição católica apostólica romana sempre influiu na adoção de certas praxes ínsitas àquela religião, como a instituição de feriados católicos, a incorporação de crucifixos, imagens e capelas em prédios públicos, a invocação da proteção divina e a leitura de salmos bíblicos em sessões legislativas e programas ou canais públicos de rádio e TV.
Isso sem falar da expressa referência divina nas cédulas monetárias nacionais, à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos da América, país cuja moeda, o dólar, traz a seguinte inscrição: “In God We Trust”. Pasmem, até nisso copiamos os americanos!
Pois bem. Em geral, no afã de evitar “mexer no vespeiro religioso”, as autoridades, sempre que instadas a se pronunciar sobre tal contradição, tendem a contornar o dilema sob a alegação de que tais práticas são culturais e não propriamente religiosas, argumento que a nosso ver se mostra pouco convincente.
Foi o que ocorreu, por exemplo, no julgamento dos Pedidos de Providência 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362, em 29 de maio de 2007, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indeferiu por maioria de votos a retirada dos símbolos religiosos das dependências do Judiciário, por entender que os objetos seriam símbolos da cultura brasileira e que não interferiam na laicidade estatal e na imparcialidade jurisdicional.
Todavia, inobstante o tropeço inicial, a renovação da composição do CNJ parece ter oxigenado o pensamento do órgão colegiado, que agora ensaia os primeiros e firmes passos em direção à consolidação da neutralidade religiosa.
De fato, em recente decisão liminar e monocrática, o conselheiro Fabiano Silveira deferiu o pedido formulado por um candidato ao cargo de juiz substituto do Tribunal de Justiça do Ceará, adepto de religião que impõe a guarda sabática e proíbe atividades externas entre o pôr do sol da sexta e o pôr do sol do sábado, para submeter-se à prova em horário diferenciado dos demais concorrentes.
A decisão do CNJ, que postergou a realização da prova desde que o candidato ficasse incomunicável junto à organização do concurso, reafirma o ideal de tolerância religiosa e o caráter não confessional do Estado brasileiro, que deve respeitar os preceitos de todas as crenças espirituais e não apenas as praxes católicas.
Por sua relevância e por não ensejar qualquer espécie de fraude ou vantagem sobre os demais concorrentes, já que o candidato “ficará incomunicável aguardando o início da prova”, a mencionada decisão do CNJ acabou estendendo-se aos demais participantes do concurso público que postularam e comprovaram a mesma condição religiosa.
Como se vê, a decisão em apreço emerge como um acertado passo do CNJ e do Estado brasileiro rumo à consolidação do seu caráter não confessional, que, diga-se de passagem, vem sendo lapidado gradualmente com outras medidas administrativas, legislativas e judiciais, como a incorporação do dia de Frei Galvão no calendário oficial brasileiro sem instituição de feriado em razão da neutralidade estatal[1], o reconhecimento dos efeitos civis do casamento religioso realizado em templos não católicos (CF/88, art. 226, § 2º)[2], a desativação de capelas em prédios públicos, dentre outros atos indicativos da laicidade auriverde.
Em suma, alegra-me saber que no embalo das recentes medidas administrativas, legais e judiciais adotadas, em breve poderei dizer: “Eu, André Puccinelli Júnior, sou católico sim, mas numa pátria de espiritualidade difusa e indeterminável, livre de vigília religiosa policialesca, sem preferências ou discriminações, onde nossos concidadãos de fé ou sem fé, sejam eles ateus, agnósticos cristãos, judeus, espíritas, mulçumanos ou umbandistas, convivem harmonicamente com a única obrigação de observar os bons costumes, a ordem, a tranquilidade e o sossego públicos, já que a liberdade religiosa não materializa um direito absoluto e, portanto, não deve ser convertida num véu para encobrir atividades ilícitas.
É isso de fato o que eu desejo e auguro!
[1] “A Lei n. 11.532/2007 declarou 11 de maio como o “Dia Nacional do Frei Sant’Anna Galvão”, constando tal data oficialmente no calendário histórico-cultural brasileiro, sem que houvesse reconhecimento do feriado religioso em razão da laicidade estatal”. PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 245.
[2] A pioneira decisão judicial que, por imposição laica e isonômica, realçou que tais efeitos irradiam-se não apenas das cerimônias tradicionais em igrejas cristãs, sinagogas judaicas e mesquitas muçulmanas, mas advêm igualmente das celebrações ocorridas em centros espíritas e templos menos ortodoxos, emanou do Tribunal de Justiça gaúcho por ocasião do julgamento da apelação cível 70.003.296.555 (TJRS, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 27-6-2002), sendo na sequência prolatada a decisão do TJBA no MS 34.739-8/2005.