1 introdução
Julgando os Recursos Extraordinários 377.457/PR e 381.964/MG, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade do art. 56 da Lei nº 9.430/96, que revogava a isenção concedida às sociedades civis de profissão regulamentada, prevista no art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. A referida decisão modificava uma jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça, que inclusive havia editado a Súmula nº 276, e vinha aplicando a mesma há cinco anos.
Concluído o mérito do julgamento, o Supremo foi instado a se manifestar sobre a possibilidade de modular os efeitos, atribuindo-se eficácia ex nunc à referida decisão. Ao considerar a proposição, foi aplicado analogicamente o art. 27 da Lei nº 9.868/99, que, além de razões de segurança jurídica e excepcional interesse social, exige a concordância de 2/3 dos membros do Tribunal. Dessa forma, pelo fato de cinco ministros terem rejeitado a proposta, a modulação temporal de efeitos foi recusada.
Observa-se que os citados recursos envolveram um tema ainda controverso na jurisprudência: a modulação temporal de efeitos. Como no Brasil ainda prevalece o dogma da nulidade, que determina a retroação dos efeitos das normas declaradas inconstitucionais, o mecanismo em tela ainda é ponto sensível na doutrina, sobretudo quanto se trata de norma tributária.
Nesse sentido, o que se pretende com a presente pesquisa é fazer uma análise da modulação temporal de efeitos, no âmbito do controle de constitucionalidade de norma tributária, quando há modificação de jurisprudência consolidada. Do julgamento-parâmetro, evidenciou-se a necessidade de um estudo sobre o mecanismo em epígrafe, sobretudo das hipóteses de aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99, quando ocorre uma mudança de entendimento que vinha sendo defendida largamente no Poder Judiciário. O ponto central é justamente estabelecer uma análise constitucional de sua aplicação, com vistas a evidenciar o direito do contribuinte à Segurança Jurídica Tributária.
Para cumprir o quanto proposto, será enfocado, no primeiro capítulo o controle de constitucionalidade das normas, delineando as premissas básicas do instituto. O objetivo aqui é assentar as características desse processo de compatibilização normativa, surgido para assegurar a Supremacia da Constituição. Pretende-se conhecer as bases históricas, os tipos de controle, os conceitos importantes, os efeitos e o modo de efetivação das declarações de (in)constitucionalidade.
A partir dessas premissas, será estudada a modulação temporal de efeitos das decisões judiciais; consignado sua evolução doutrinária e jurisprudencial, e o surgimento como forma de flexibilizar o dogma da nulidade. O objetivo do instituto é justamente ponderar a retroação de efeitos com princípios constitucionais e situações que estavam sendo desestabilizadas.
Ainda no primeiro capítulo, será feita uma apresentação do tema, delimitando os objetivos e as idéias que serão defendidas para deslinde da matéria. É nesse tópico que será feita referência aos recursos extraordinários que servem como objeto de pesquisa.
O capítulo seguinte será dedicado ao estudo do sobreprincípio da segurança jurídica tributária. Inicialmente, por questões propedêuticas, será abordada a teoria geral dos princípios, buscando conceituar e demonstrar a importância dessa espécie normativa na orientação do sistema jurídico. A partir de uma abordagem histórica, mostrar-se-á as características dos princípios, fazendo um paralelo com as regras, com o fim de estabelecer uma distinção segura de ambos. Ponto que merece ressalva é a forma de influenciar o ordenamento tanto horizontal quanto verticalmente, sendo um instrumento essencial a preservação das premissas básicas do Direito.
Para se assentar as idéias da pesquisa, faz-se uma análise do princípio da segurança jurídica. Procura-se demonstrar que esse preceito se liga intimamente com as noções de Direito, considerando-se traço elementar do ordenamento positivo: dar certeza e previsibilidade às relações sociais. Esse princípio emana do Estado de Direito, que revela a intenção de se criar uma sociedade estável e segura, para que os indivíduos possam prever e planejar suas ações.
A segurança jurídica no campo tributário apresenta importância fundamental. Como ramo do Direito através do qual o Estado, de maneira constante, se arvora na propriedade privada, esse princípio visa garantir direitos fundamentais dos contribuintes, e impedir a atuação arbitrária do Estado. Como sobreprincípio que orienta a segurança do sistema tributário, essa norma reflete inúmeros direitos e garantias, sendo efetivada através de subprincípios, concentrados em pontos específicos do ordenamento, como: a legalidade, a irretroatividade e a anualidade. As limitações do poder de tributar previsto no art. 150 da CF/88 expressam essa garantia.
Pretende-se observar que a segurança jurídica é um direito fundamental do contribuinte, assegurado sob o manto da cláusula pétrea. Portando, ao sujeito passivo da relação tributária, é garantida a certeza na tributação, impedindo a aplicação de normas tributárias novas a fatos pretéritos, bem como sua aplicação ao exercício financeiro seguinte e o respeito as interstício de noventa dias.
No terceiro capítulo, serão enfrentadas as questões pretendidas na pesquisa. Preliminarmente, serão feitas considerações sobre os conceitos de norma tributária e ordenamento positivo, utilizando-se os preceitos da semiótica. Dessa análise, será feita uma delimitação dos elementos componentes da norma jurídica, bem como sua diferenciação de texto normativo, sob o enfoque dos planos da linguagem. Pretende-se, com essas definições, assentar que o PoderJudiciário, no exercício de suas atribuições, insere normas jurídicas no ordenamento, inovando o Direito positivo. Mais uma vez será feita uma análise lingüística dos processos componentes do fenômeno apontado,
O tópico seguinte dará enfoque ao princípio da irretroatividade tributária, decorrência da segurança jurídica no campo fiscal. O princípio em tela determina justamente a aplicação proativa das normas tributárias, impedindo que normas majoradoras ou instituidoras de tributos sejam aplicadas a fatos pretéritos.
Definidas essas questões preliminares, demonstrar-se-á que o mecanismo previsto no art. 27 da Lei 9.868/99 não se aplica às declarações de constitucionalidade, por incompatibilidade lógica. Entretanto, se assentará que essa não aplicação analógica não impede a modulação dos efeitos da decisão. Será defendido que a motivação advém diretamente da segurança jurídica, especificamente da irretroatividade tributária. Segundo esse raciocínio, por ter havido mudança de jurisprudência, e conseqüente inserção de norma nova no ordenamento, a aplicação dos efeitos deverá ser proativa. A partir dessas conclusões, analisar-se-á a modulação nos recursos extraordinários que serviram de parâmetro para a pesquisa.
2 controle de constitucionalidade e modulação de efeitos temporais
A pesquisa a ser desenvolvida envolve um dos temas de maior discussão e complexidade dentro do Direito Constitucional, desse modo, para que se assente as premissas básicas do raciocínio a ser desenvolvido, é importante a fixação das características gerais do controle de constitucionalidade e da modulação de efeitos das decisões judiciais. Certamente, a pretensão não é esgotar os temas, mas dar subsídio necessário ao desenvolvimento lógico das idéias apresentadas.
2.1 Noções de Controle de Constitucionalidade
Historicamente, com o movimento neo-constitucionalista surgido após a Segunda Grande Guerra, as Constituições, que até então eram consideradas uma carta de intenções, tornaram-se a Lei de maior hierarquia no ordenamento jurídico de uma nação. As Constituições passaram a abrigar as normas nas quais se assentavam todo o ordenamento jurídico dos Estados Democráticos, estruturando e dando validade aos Poderes na medida e na proporção por ela determinada.
Desse status, surgiu o princípio da supremacia da Constituição, o qual determina, conforme os ensinamentos de José Afonso da Silva, que esse documento político é a lei suprema do Estado, e que toda autoridade só nela encontra fundamento[1]. Por conseguinte, qualquer ato ou norma jurídica só devem ser considerados validos se compatíveis com a Constituição Federal, de onde todo poder emana. Por essa razão, a CF/88 impõe a necessidade de compatibilidade vertical de todos os princípios e regras a ela inferiores.
Nesse esteio, o Controle de Constitucionalidade das leis advém da necessidade de compatibilização das normas infraconstitucionais com os preceitos da Constituição Federal, vez que suas disposições fundamentam e dão validade a todo o sistema jurídico nacional. Esse mecanismo foi desenvolvido para garantir o Princípio da Supremacia Constitucional, e é o meio pelo qual o Poder Judiciário verifica a adequação de atos normativos com os preceitos da Lex Legum.
O Controle advém das noções de rigidez constitucional e de escalonamento normativo, no qual a Constituição ocupa o ápice da hierarquia. No mesmo sentido, Alexandre de Moraes acredita que a idéia do instituto jurídico em epígrafe “[...] está ligada à Supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à de rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais”.[2]
Quanto aos requisitos para o controle, observe-se o magistério de Pedro Lenza, in verbis:
Como requisitos fundamentais e essenciais para o controle, lembramos a existência de uma constituição rígida e a atribuição de uma competência a um órgão para resolver os problemas de constitucionalidade, órgão este que variará de acordo com o sistema de controle adotado.[3] (grifos originais)
O constitucionalista continua, afirmando que:
A idéia de controle, então, emanada da rigidez, pressupõe a noção de um escalonamento normativo, ocupando a Constituição o grau máximo da aludida relação hierárquica, caracterizando-se como norma de validade para os demais atos normativos do sistema.[4] (negrito de origem)
A rigidez de uma Constituição ocorre quando essa prevê, para sua modificação, um modo mais dificultoso do que aquele previsto para alteração das leis infraconstitucionais. Seguindo esse preceito, a Carta Magna brasileira determina que a sua modificação efetivar-se-á pela aprovação das duas Casas do Congresso, em dois turnos, obtendo em ambos 3/5 dos votos dos membros. Noutro giro, as leis complementares e ordinárias são aprovadas através do voto da maioria absoluta e simples, respectivamente, dos membros das duas Casas, em um único turno.
Nesse esteio, tornar-se-ia sem sentido a Supremacia Constitucional caso as normas infraconstitucionais pudessem contrariar as regras e princípios abrigados pela Lei Maior, operando livremente no mundo jurídico. Por conseqüência, todas as leis concebidas de forma a contrariar, formal ou materialmente, a Lex Legum devem ser retiradas do mundo jurídico.
Historicamente, os sistemas jurídicos adotados nos diversos ordenamentos deram origem a vários modelos de controle de constitucionalidade, entretanto, três tiveram maior relevância.
O modelo estadunidense teve como marco o julgamento “Marbury versus Madison”, em 1803. Nessa ocasião, o Chief Justice da Suprema Corte John Marshall afirmou que ao Poder Judiciário cabia adequar e compatibilizar leis incompatíveis com a Constituição, no julgamento do caso concreto. Pelo sistema em comento, o ato inconstitucional é nulo, ineficaz desde seu nascimento (nulidade ab origine), razão pela qual a decisão que reconhece a situação de inconstitucionalidade tem natureza declaratória. Nesse sentido, a referida decisão terá efeito ex tunc, ou retroativo, em vista da nulidade ser pré-existente.
No modelo austríaco, previsto pela Constituição de 1920, um Tribunal Constitucional exerce o controle de constitucionalidade de maneira exclusiva, anulando-se abstratamente normas incompatíveis com os preceitos da Lex Legum. Esse modelo se consagrou na Europa após a Segunda Guerra Mundial, quando se operou uma crise na democracia representativa dos órgãos legislativos e constatou-se a necessidade de uma Corte Constitucional decidir sobre a compatibilidade constitucional das leis. Após o período nazista, o judicial review foi adotado pela Lei Fundamental alemã em 1949.
No sistema em comento, ao contrário do modelo estadunidense, a decisão no controle de constitucionalidade tem natureza constitutiva, produzindo efeitos ex nunc. Esse sistema foi influenciado pela teoria da anulabilidade da norma inconstitucional de Hans Kelsen, baseado na idéia de que o ato inconstitucional é anulável e provisoriamente válido até a sentença constitutivo-negativa.
O modelo francês conjecturou um controle de constitucionalidade profilático, realizado pelo chamado Conselho Constitucional durante o processo legislativo. Esse órgão se pronunciaria sobre a constitucionalidade do projeto em tramitação quando provocado pelo Governo ou presidente de qualquer das Casas legislativas. Há que salientar que o art. 37.2 da Constituição da França prevê a possibilidade de o Conselho Constitucional analisar, de forma abstrata, a repartição constitucional de competências entre o Governo e o Parlamento, como um efetivo controle repressivo.
O Brasil adota atualmente um sistema misto de controle de constitucionalidade, apesar de inicialmente ter seguido o sistema dos Estados Unidos. Vejamos o quanto afirmado no magistério de José Afonso da Silva:
[...] o Brasil seguiu o sistema norte-americano, evoluindo para um sistema misto e peculiar que combina o critério difuso por via de defesa com o critério concentrado por via de ação direta de inconstitucionalidade, incorporando também, agora timidamente, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a e III, e 103).[5]
O constitucionalista salienta ainda que o fato de ter reduzido a competência do Supremo Tribunal à matéria constitucional não o transforma em Corte Constitucional: primus por não ser o único órgão do Judiciário competente para o exercício da jurisdição constitucional, prevalecendo o sistema difuso; e secundus, porque é um Tribunal que examina a questão constitucional com critério essencialmente técnico-jurídico, como se extrai da forma de escolha dos membros.
Com relação aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, adota-se no Brasil, como regra, a teoria da nulidade. Segundo essa teoria estadunidense, diametralmente oposta àquela engendrada por Kelsen, a inconstitucionalidade de lei se situa no plano de validade da referida norma, sendo a declaração de inconstitucionalidade mero ato declaratório, que reconhece o vício da mesma desde o nascimento. Dessa forma, nas palavras de Alfredo Buzaid o ato normativo inconstitucional seria “(...) nulo, írrito, e, portanto, desprovido de força vinculativa”.[6] O professor Mauro Cappelletti afirma que:
(...) a lei inconstitucional, por que contrária a uma norma superior, é considerada absolutamente nula (“null and void”) e, por isso, ineficaz, pelo que o juiz, que exerce o poder de controle, não anula, mas, meramente, declara (pré-existente) nulidade da lei inconstitucional.[7]
É prudente acrescentar que a teria da nulidade vem progressivamente sofrendo mitigações no direito brasileiro; entretanto, por tratar-se de questão essencial ao tema, abordaremos o assunto em tópico específico (2.2).
O controle de constitucionalidade classifica-se, quanto ao momento de realização, em preventivo e repressivo; enquanto aquele busca impedir que um projeto de norma inconstitucional ingresse no mundo jurídico, esse pretende retirar lei já promulgada que contrarie a Constituição. Esse último tipo ainda pode classificar-se quanto ao órgão controlador. Diz-se controle político quando o órgão garantidor da supremacia da Constituição não faz parte de nenhum dos poderes do Estado, enquanto o controle judiciário é aquele feito pelos órgãos investidos de jurisdição. O sistema misto ocorre nos países onde se prevê a atuação desses dois órgãos.
No Brasil, o controle preventivo é realizado pelos poderes Executivo e Legislativo, sobretudo através do veto jurídico e das comissões de constituição e justiça; enquanto o controle repressivo é realizado pelo Poder Judiciário. Excepcionalmente, o STF poderá realizar controle de constitucionalidade preventivo quando julga desrespeito a direito subjetivo de Parlamentar ao devido processo legislativo.
Quanto às espécies de inconstitucionalidade, essa pode ocorrer por omissão ou por ação. Diz-se inconstitucionalidade por ação aquela em que há uma norma incompatível com os preceitos constitucionais, tem-se, portanto, uma conduta positiva do legislador. Já a inconstitucionalidade por omissão surge com a inércia do legislativo, quando esse não edita leis para regulamentarem normas constitucionais de eficácia limitada.
A inconstitucionalidade por ação pode ocorrer ainda por vício formal ou material. Há vício formal ou nomodinâmico quando o devido processo legislativo é desrespeitado, a inconstitucionalidade aparece na formação da norma, pela não obediência das formalidades para sua criação. A inconstitucionalidade formal orgânica origina-se da não observância da competência legislativa para a elaboração do ato. O vício formal propriamente dito ainda pode ser subjetivo, quando a inconstitucionalidade se dá na fase de iniciativa; e objetivo, quando o desrespeito aos preceitos constitucionais emerge nas demais fases do processo legislativo. Merece ressalva que a violação de pressupostos objetivos do ato normativo, externos ao processo legislativo, também pode gerar inconstitucionalidade formal.
O vício material ou nomoestático surge, por sua vez, quando a inconstitucionalidade está presente na substância da norma. Nesse caso, é o conteúdo da norma que contraria regras e princípios da Constituição, e não o processo de sua formação.
O sistema de controle judicial da constitucionalidade diz respeito a quais órgãos do Judiciário tem o poder de efetivar a compatibilização constitucional das normas e como esse controle ocorre. Pelo critério subjetivo ou orgânico o sistema pode ser difuso ou concentrado.
O sistema difuso surgiu com o já citado julgamento do caso “Murbury versus Madison” em fevereiro de 1803, quando o Chief Justice John Marshall afirmou que é próprio dos órgãos da atividade judiciária interpretar e aplicar as leis. No caso em questão, o magistrado decidiu que, havendo um conflito, no caso concreto, entre uma lei e um dispositivo constitucional, deve prevalecer a Constituição.
Diz-se difuso porque o sistema de controle referido é realizado por todos os órgãos do Poder Judiciário, no julgamento do caso concreto, razão pela qual também é conhecida como controle pela via de exceção. No controle difuso a declaração é feita incidenter tantum, como questão prejudicial ao mérito, sendo a inconstitucionalidade da norma integrante da causa de pedir. A principal finalidade do controle difuso é, conforme os ensinamentos de Marcelo Novelino, “(...) a proteção de direitos subjetivos (processo constitucional subjetivo)”.[8]
Merece observar que, para um tribunal declarar a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo emanado do Pode Público, deverá haver decisão da maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do órgão especial, nos termos do art. 97 da Constituição Federal. Conhecida como cláusula de reserva de plenário, essa exigência é uma condição de eficácia jurídica da própria declaração de inconstitucionalidade, e tem por função dá segurança necessária a essa decisão de relevante importância. Através da súmula Vinculante nº 10 o Supremo Tribunal Federal ressaltou que fere a cláusula de reserva de plenário não apenas a declaração expressa, mas também o afastamento de incidência de determinada lei.
Os efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade no controle difuso é inter partes e ex tunc, ou seja, se limita às partes que compõe o litígio levado a apreciação pelo judiciário, de maneira incidental, bem como retroage até a edição da norma, tornando-a nula de pleno direito. Entretanto, caso o STF declare a inconstitucionalidade de lei, no controle difuso, por maioria absoluta de seus membros, o tribunal comunicará o Senado para suspender a execução da mesma. O art. 52, inciso X, da Constituição de 1988 prevê que é competência privativa do Senado Federal suspender, no todo ou em parte, atreves de resolução, a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF. Vale destacar que prevalece o entendimento que o Senado não está obrigado a suspender a execução da lei declarada inconstitucional, sendo ato de discricionariedade política.
O controle concentrado consagrou-se, conforme dito alhures, na Constituição da Áustria de 1920, influenciado pelas teorias de Hans Kelsen. O sistema austríaco foi introduzido pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 16/1965 que modificou a Constituição Federal de 1946.
O referido modelo consiste na concentração da competência para apreciar a constitucionalidade de leis ou atos normativos emanados do Poder Público, em um único órgão jurisdicional. No Brasil, por se adotar um sistema misto, essa exclusividade prevista para o Supremo Tribunal Federal apenas se aplica na defesa da ordem jurídica constitucional de maneira abstrata.
No que diz respeito à finalidade do sistema em tela, Novelino afirma:
O controle concentrado-abstrato tem por finalidade precípua a defesa da ordem constitucional objetiva, independentemente da existência de lesões concretas a direitos subjetivos, cuja tutela principal ocorre no processo constitucional subjetivo. Isso não significa que a proteção de direitos seja irrelevante no controle abstrato, mas que se trata de uma preocupação secundária. [9] (grifos originais)
O ordenamento brasileiro consagra como mecanismos de efetivação do controle concentrado-abstrato: a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), a ação de declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), e a ação direta de inconstitucionalidade interventiva. As citadas ações estão previstas no texto da Constituição de 1988, respectivamente, nos artigos: 102, inciso I, alínea a, primeira parte; 102, inciso I, alínea a, segunda parte; 102, § 1º; 103, § 2º; e 36, inciso III.
A ação direta de inconstitucionalidade visa a assegurar o princípio da supremacia constitucional, retirando do ordenamento normas que contrariem ou que sejam incompatíveis com os preceitos consagrados na Constituição Federal de 1988. Por sua vez, a ação declaratória de constitucionalidade foi criada pela EC 3/1993 e tem o objetivo de colocar fim a incerteza sobre a constitucionalidade de determinado dispositivo legal. Vale ressaltar que para evitar o uso do instrumento como uma mera consulta sobre a validade constitucional de determinada lei, desvirtuando a finalidade do instituto, é pressuposto de admissibilidade da ADC a existência de controvérsia judicial relevante. A ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade possuem caráter dúplice, são ações de mesma natureza com o “sinal trocado”.
Por tratar-se de processo constitucional objetivo, ADI e ADC possuem características peculiares como: natureza híbrida, um misto entre atividade judiciária e legislativa; desnecessidade de demonstração de interesse específico; e inexistência de partes formais. Observe-se ainda que a causa de pedir é aberta, abrangendo todas as normas consagradas na CF/88, independente dos fundamentos expressamente invocados pela autor da ação. Outra importante característica é que não se aplica ao processo constitucional objetivo determinados princípios constitucionais do processo como contraditório, ampla defesa e duplo grau de jurisdição. Na ADI e ADC não é admitido desistência, assistência ou intervenção de terceiros, o mérito não é recorrível (salvo interposição de embargos de declaração) e não se admite ação rescisória.
A legitimidade para propor as ações diretas de constitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade possui rol taxativo previsto no art. 103 da CF/88. Os legitimados universais são: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB e partido político com representação no congresso nacional. Já os legitimados ativos especiais precisão, ao contrário dos universais, demonstrar pertinência temática para proporem as ações, e são eles: a mesa de Assembléia Legislativa e da Câmara legislativa do Distrito Federal, pelo Governador dos estados e do Distrito Federal e pelas confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional.
Ao se referir sobre o objeto da ADI, Alexandre de Moraes esclarece que:
O objeto das ações diretas de inconstitucionalidade genérica, além das espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição Federal, engloba a possibilidade de controle de todos os atos revestidos de indiscutível conteúdo normativo. Assim, quando a circunstância evidenciar que o ato encerra um dever-ser e veicula, em seu conteúdo, enquanto manifestação subordinante de vontade, uma prescrição destinada a ser cumprida pelos órgãos destinatários, deverá ser considerado, para efeito de controle de constitucionalidade, como ato normativo.[10]
Entretanto, conforme o ensinamento de Marcelo Novelino, não se admite como objeto de ADI e ADC: norma constitucional originária, atos tipicamente regulamentares (atos normativos secundários), normas revogadas, leis declaradas inconstitucionais em decisão definitiva do STF (com eficácia suspensa pelo Senado Federal), leis temporárias após sua vigência, normas com eficácia exaurida e medida provisória revogada.
O parâmetro invocado pelos proponentes das ações constitucionais em estudo é a norma formalmente constitucional desrespeitada pela lei que se pretende revogar. Nesse sentido, não poderão ser usados como parâmetro: normas constitucionais revogadas, dispositivos de Constituições anteriores e o preâmbulo da CF/88.
No processo constitucional objetivo, o Procurador-Geral da República atua como custos constitutionis, devendo ser ouvido antes de o relator apresentar seu voto em plenário – mesmo que ele seja o autor da ação –, podendo se manifestar pela constitucionalidade ou pela inconstitucionalidade da norma. Noutro lado, ao Advogado-Geral da União cabe o munus de defender a norma ou o ato impugnado, nos termos do art. 103, § 3º. Portanto, o AGU age como defensor legis, possuindo a função de garantir o princípio da presunção de constitucionalidade da norma, seja essa de origem federal ou estadual. Há que observar, ainda, que só o AGU só será citado para defender a norma quando se tratar de ADI; no caso da ADC, apenas quando houver solicitação do relator.
Como conseqüência do caráter ambivalente da ADI e da ADC, a decisão de mérito em ambas as ações pode ser declaratória de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade da norma, a depender da procedência ou improcedência do pedido. O quorum para julgamento das ações em epígrafe é de 2/3 dos membros do STF, nesse esteio, devem estar presentes pelo menos oito ministros. A decisão é irrecorrível; não-passível de ação rescisória; e produz efeitos erga omnes e vinculante, apenas contra o Poder Judiciário e a Administração Pública. Conforme já observado, a declaração de (in)constitucionalidade produz, em regra, efeitos ex tunc, retroagindo até a sua origem.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é uma ação de caráter subsidiário que pretende invalidar atos que violadores do preceitos fundamentais da Constituição Federal. A ação em epígrafe possui como legitimados ativos os mesmos previstos para a ADI e a ADC, enquanto o legitimado passivo é a autoridade responsável pela prática do ato questionado. Os parâmetros da arguição são os preceitos fundamentais da CF/88, considerados entre eles: os princípios fundamentais, os princípios constitucionais sensíveis e as cláusulas pétreas.
A ADPF é cabível tanto em caráter autônomo quanto incidental. A arguição autônoma gera um processo constitucional objetivo, objetivando proteger o preceito fundamental, em caráter abstrato, do ato desrespeitador emanado do Poder Público. A arguição incidental surge, por sua vez, no curso de um processo judicial concreto, pelo surgimento de uma controvérsia judicial relevante, e com a finalidade de encurtar o tempo que a questão seria levada à apreciação do STF. Os legitimados ativos são os mesmos da arguição autônoma, não possuindo tal faculdade as partes envolvidas na lide.
Os objetos da ADPF são, não apenas as normas, como também atos não-normativos, v.g. os atos normativos municipais e os atos anteriores a CF/88. Tal abrangência advém da noção do termo “descumprimento”, que não se confunde com inconstitucionalidade. Cumpre observar que a jurisprudência do STF excluiu do objeto da ADPF: os enunciados de súmula, as propostas de emenda a Constituição e o veto do Chefe do Executivo.
Os efeitos da decisão que julga uma ADPF são os mesmos das ações analisadas acima: vinculante, erga omnes e ex tunc; devendo ser fixado as condições e o modo de interpretação e de aplicação do preceito fundamental. Na arguição incidental, os efeitos serão dúplices: um de natureza endoprocessual (controle concreto) e extraprocessual (controle abstrato).
2.2 Modulação de efeitos temporais no controle de constitucionalidade
A teoria das invalidades dos atos surgiu no Direito Privado, enquanto o ato nulo teve sua origem remota no Direito Romano, a tese da anulabilidade foi desenvolvida durante Idade Média, especialmente pelo Direito Canônico. Inicialmente, atribuía-se a distinção de ambos pelo critério da gravidade do defeito do ato: a nulidade correspondia ao defeito mais grave, considerado insanável; ao passo que a anulabilidade era atribuída ao ato eivado de vício menos grave e, portanto, sanável. A partir de então, a doutrina atribuiu inúmeras diferenças aos institutos em tela, pelo critério da dessemelhança – o que um era o outro não era –, entretanto, todos de caráter extrínseco a invalidade em si. Essa falta de elementos intrínsecos causa enorme insegurança na diferenciação clara dos institutos. Com relação ao tema, Ana Paula Ávila fez a seguinte conclusão preliminar:
[...] o que interessa, realmente, para a fixação das nulidades e anulabilidades é o regime jurídico, cujo único limite é sua compatibilidade em face da Constituição. [...] Assim, de tudo que foi dito, chega-se a conclusão preliminar de que, devido à falta de elementos intrínsecos que permitam identificar nulidade e anulabilidade como institutos diversos, cabe ao ordenamento jurídico fixar quais sejam esses vícios, bem como o regime de decretação e efeitos que lhes correspondam. Não é numa prévia conformação desses institutos que o legislador encontrará empecilho para disciplinar a matéria. Ele tem a faculdade de discipliná-la [...][11]
Nesses termos, o que define se determinada invalidade caracteriza-se em nulo ou anulável é o regime jurídico adotado por dado ordenamento, é a lei que vai prever a natureza e os efeitos dessa invalidade. Fixa-se, portanto, que a nulidade e a anulabilidade são defeitos com maior ou menor potencialidade de desconstituir os efeitos de um ato existente, cabendo ao legislador a determinação de qual tipo invalidade será atribuída a cada defeito; previsões que nunca afastam a análise constitucional do tema.
Conforme visto, perfunctoriamente, no tópico anterior, a doutrina internacional engendrou duas teses sobre o desfazimento ou permanência dos efeitos do ato tido como inconstitucional.
Pela teoria da nulidade, engendrada no direito estadunidense, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade de uma lei, os efeitos dessa declaração retroagiriam até a edição da norma, desfazendo-se todos os atos e desconstituindo-se todas as situações dela decorrentes. A tese da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade foi assumida como dogma na doutrina e jurisprudência brasileira, influenciadas, sobretudo, por Rui Barbosa. Essa corrente se fundamenta no postulado da Supremacia da Constituição, pois, segundo seus defensores, permitir a validade de qualquer efeito emanado de um ato inconstitucional seria reconhecer, ainda que por um instante, a ineficácia da Lei Maior.
A tese da anulabilidade foi, por sua vez, engendrada no Direito Austríaco, através das idéias de Hans Kelsen, segundo o qual a declaração da inconstitucionalidade de lei gerava efeitos ex nunc. Pela doutrina em tela, o julgamento que decide pela inconstitucionalidade de uma norma terá validade apenas proativa. Isso ocorre porque, segundo seus defensores, a decisão possui natureza constitutiva negativa e não declaratória, e o ato é considerado válido até o reconhecimento de sua invalidade. Para Kelsen, em sua teoria pura do direito, a existência da norma equivale a sua validade, uma norma posta é uma norma válida, ainda que provisoriamente, até a constituição de sua invalidade. A teoria da anulabilidade encontra base na segurança jurídica e na certeza do direito.
Conforme já afirmado, a teoria que prevaleceu no Brasil foi a estadunidense, elevada aqui à condição de dogma pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que manteve essa posição durante décadas. Tanto nos Estados Unidos como Brasil não havia disciplina legal referente ao reconhecimento da nulidade, tendo a mesma sido reconhecida aqui como princípio implícito da Constituição.
Entretanto, esse regime exclusivo de desfazimento dos efeitos de leis tidas como inconstitucionais começou a gerar conflitos com normas de mesmo status constitucional. A necessidade de revisão da regra posta passou a ser reconhecida inclusive no país de origem da teoria da nulidade, a partir do leading case Linkletter vs. Walker, cuja decisão afirmou que cabe ao Poder Judiciário definir a natureza dos efeitos declaração de inconstitucionalidade através de ponderações de valores no caso concreto.
Essa flexibilização do tratamento da matéria, deveu-se a constatação de que nenhuma das teorias apresentava soluções satisfatórias a todo caso que era levado a julgamento. Mesmo o Tribunal Constitucional da Áustria começou a flexibilizar suas posições, sobretudo quando recebeu poderes, através da reforma constitucional de 1975/76, para modular os efeitos das declarações de inconstitucionalidade, inclusive para atribuição de eficácia ex tunc.
Por conseguinte, o Supremo Tribunal Federal começou reconhecer, em alguns julgamentos, a possibilidade de flexibilização da teoria da nulidade, aplicando efeito proativo e mesmo profuturo a algumas decisões. Apesar da notável evolução da jurisprudência do STF, não foi superado totalmente o dogma da nulidade, que ainda é reconhecido como regra.
Essa nova concepção, desenvolvida principalmente através dos ensinamentos do professor Lúcio Bittencourt, observa que a declaração de inconstitucionalidade não tem a capacidade de desconstituir as situações reais geradas antes da mesma. Carlos Wagner Dias Ferreira afirmou, em artigo sobre o tema, que:
Esse desprestígio da técnica da nulidade da lei inconstitucional passou a ganhar fôlego devido à falta de fundamentos mais sólidos e de instrumentos que propiciassem a teorização dos efeitos da decisão, à semelhança do que se viu com o ‘Gesetzeskraft’ (força de lei) alemã ou com o stare decisis americano. A frustrada tentativa de generalizar a doutrina relacionada aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, mediante a intervenção do Senado Federal, que fora consagrada pela Constituição de 1934 e reproduzida nos textos subseqüentes, não contribuiu para a consolidação da teoria da nulidade, pois conceder a um órgão político tal poder mais a negava do que a afirmava.[12]
Observe-se o ensinamento do Ministro Leitão de Abreu no RE 79.343/BA (julgado em 31.05.1977), oportunidade em que defendeu que os efeitos ex tunc da Declaração de Inconstitucionalidade devem ser atenuados para preservação das relações de boa-fé:
Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o "Corpus Juris Secundum", de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabelecerem relações entre o particular e o
Poder Público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.[13] (grifo nosso)
Com o advento da Lei nº 9.868/1999, a possibilidade de aplicação da teoria da anulabilidade passou a ser expressa, conferindo ao Supremo Tribunal a faculdade de modular os efeitos de suas decisões que declaram inconstitucionalidade de ato normativo. O dispositivo em comento determina que:
Art. 27 Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Vale sublinhar que a regra prevista nesse artigo enrijeceu o regime que vinha sendo adotado pelo Supremo, tendo em vista que foram estabelecidos requisitos para a modulação dos efeitos, limitando a atuação desse Tribunal. Os requisitos previstos pelo legislador podem ser divididos doutrinariamente em formal e material. Quanto ao requisito formal, fixou-se que, na decisão que pretender dar eficácia ex nunc ou profuturum em controle de constitucionalidade, deverá contar com o voto favorável de 2/3 quintos do Pleno do STF, equivalente a oito ministros. Quanto ao requisito de natureza material, exige-se a demonstração de que a disposição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade é motivada por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Esses requisitos impostos pela lei infraconstitucional são considerados pela doutrina como conceitos indeterminados, normas abertas que permitem o preenchimento hermenêutico pelos interpretes. Analisando o artigo em tela, Ana Paula Ávila afirma:
A idéia de conceito jurídico indeterminado adquiriu relevância em face da percepção de que: (a) o sistema jurídico não é um sistema fechado, não propondo, dessa forma, soluções apriorísticas para todo e qualquer problema que reclame uma solução jurídica; e (b) são necessários mecanismos normativos que permitam a adaptação da norma às circunstâncias especiais dos casos concretos que, devido à sua particularidade, não contam com previsão específica nas normas gerais.[14]
Quando da aplicação desses conceitos jurídicos indeterminados, o operador do direito atua na construção do próprio sentido da norma, a partir de elementos do caso concreto. Esses conceitos dão maior liberdade para o hermeneuta moldar o comando jurídico aos fatos apresentados, facilitando a atualização dos preceitos em face da evolução social. Os institutos em comento tem sua origem ligada a superação do dogma da completude do sistema, em vista da progressiva complexidade dos casos apresentados ao Judiciário.
Nesse sentido, as normas que possuem conceitos jurídicos indeterminados, conforme registrado por Ana Paula Ávila:
[...] necessitam de preenchimento valorativo pelo interprete e permitem a transposição, para o ordenamento jurídico, de elementos extrajurídicos, possibilitando ao aplicador a busca da solução mais adequada ao caso, de acordo com os valores, os padrões ético-sociais, os usos e costumes do momento.[15]
Justamente pela incapacidade de prever todas as situações concretas e a necessidade de dar ao STF certa liberdade, ainda que restrita, no processo de modulação de efeitos; o art. 27da Lei nº 9.868/1999 utilizou as razões de segurança jurídica e o excepcional interesse social como conceitos jurídicos indeterminados.
As razões de segurança jurídica expressas no artigo remetem ao sobreprincípio de mesmo nome, possuindo, desta forma, núcleo conceitual bastante definido. Nesse ponto da pesquisa não será feita uma análise aprofundada do instituto, vez que, por se tratar de ponto chave da idéia desenvolvida, será abordado em capítulo específico.
Quanto a expressão excepcional interesse social, a mesma deve ser entendida como a defesa de interesses da sociedade, dos administrados em contraposto com os interesses do Estado. No processo de ponderação entre normas constitucionais para se concluir pela modulação de efeitos, o excepcional interesse social deve ser entendido como um princípio constitucionalmente relevante cuja proteção merece atribuição de eficácia ex nunc e profuturum a determinada decisão.
Apesar de não haver regra expressa, a modulação de efeitos não é aplicada apenas no âmbito do controle de constitucionalidade concentrado-abstrato, mas também incidentalmente, quando no exercício do controle difuso-concreto. Debruçando-se sobre o tema do controle de constitucionalidade, Dirley da Cunha Júnior ponderou, referindo-se os artigos 27 e 11, respectivamente, das Leis nºs. 9.868/99 e 9.882/99:
Nesse contexto, em que pese os preceitos acima mencionados constarem de leis reguladoras do processo e julgamento das ações diretas do controle concentrado-abstrato de constitucionalidade, não temos dúvidas que eles podem servir de supedâneo para a modulação da eficácia temporal também no âmbito do modelo de controle difuso-incidental de constitucionalidade.[16]
Apesar de ser praticamente pacífico no STF a aplicação da modulação de efeitos as processo subjetivo, a jurisprudência e a doutrina são controversas no que tange a aplicação análoga do art. 27 nas declarações de constitucionalidade. Pesa em favor da não aplicação o fato de o legislador ter apenas previsto o mecanismo para as declarações de constitucionalidade. Defender-se a nessa pesquisa a não aplicação da modulação prevista na Lei nº 9.868/99 às declarações de constitucionalidade, o que não impede a previsão de efeitos ex nunc e pro futurum das decisões, para assegurar princípios constitucionais.
Com relação à jurisprudência do STF, Luís Roberto Barroso afirmou que o Supremo tem modulado os efeitos das em quatro hipóteses: “a) declaração de inconstitucionalidade em ação direta; b) declaração incidental de inconstitucionalidade; c) declaração de constitucionalidade em abstrato; e d) mudança de jurisprudência”[17]. É justamente essa última modalidade que merecerá maior atenção nesta pesquisa.
Conforme se extrai das breves considerações, as discussões sobre o instituto em epígrafe afloram na doutrina e na jurisprudência, sobretudo por tratar de questões que refletem sensível interesse social e por se fundar em conceitos jurídicos indeterminados. A modulação imposta pelo art. 27 limitou bastante a liberdade do STF na determinação dos efeitos temporais das decisões, impondo, como fora abordado, requisitos formais e materiais, antes inexistente. A questão torna-se ainda mais controversa quando é analisada no âmbito da matéria tributária.
2.3 Modulação temporal de efeitos alterando jurisprudência consolidada – REs 377457/PR e 381964/MG
Conforme asseverado no tópico supra, uma das hipóteses em que o STF tem modulado os efeitos das decisões é nos casos em que a decisão proferida modifica uma posição que vem sendo adotada na jurisprudência. Tal aplicação do instituto se deve, sobretudo, à proteção da segurança jurídica e da boa-fé; tendo em vista que o julgamento reiterado em relação a determina matéria gera confiança na sociedade para a prática de atos baseados nessa decisão. Para embasar o quanto afirmado, observem-se as decisões abaixo, nos quais houve modulação de efeitos por mudança de entendimento, relativamente à competência para ações acidentárias e ao regime de fidelidade partidária, respectivamente:
[...] 5. O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. 6. Aplicação do precedente consubstanciado no julgamento do Inquérito 687, Sessão Plenária de 25.08.99, ocasião em que foi cancelada a Súmula 394 do STF, por incompatível com a Constituição de 1988, ressalvadas as decisões proferidas na vigência do verbete [...].[18] (grifou-se)
[...] 10. Razões de segurança jurídica, e que se impõem também na evolução jurisprudencial, determinam seja o cuidado novo sobre tema antigo pela jurisdição concebido como forma de certeza e não causa de sobressaltos para os cidadãos. Não tendo havido mudanças na legislação sobre o tema, tem-se reconhecido o direito de o Impetrante titularizar os mandatos por ele obtidos nas eleições de 2006, mas com modulação dos efeitos dessa decisão para que se produzam eles a partir da data da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à Consulta n. 1.398/2007 [...].[19](grifou-se)
Dessa forma, toda vez que há mudança na interpretação de um dispositivo legal pelo STF, reconhecendo sua constitucionalidade, em prejuízo da sociedade, deve-se aplicar a nova norma proativamente. Essa medida tem como fundamento o sobreprincípio da segurança jurídica e os subprincípios dele decorrentes. O Estado não pode se valer da própria torpeza, manifestando opinião de certeza sobre determinado assunto, e, após entender de forma diversa, pretender exigir a nova postura desde o começo.
Apesar do quanto consignado, julgando a aplicação do COFINS às sociedades prestadoras de serviços profissionais, o STF negou aplicação retroativa a efeitos da decisão de constitucionalidade que modificou jurisprudência consolidada. Tratam-se dos casos parâmetro da presente pesquisa: os REs 377457/PR e 381964/MG.
Nos citados recursos extraordinários, julgados no dia 17 de setembro de 2008, o Supremo decidiu pela validade da revogação pelo art. 56 da Lei nº 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão regulamentada, pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. No mérito dos recursos, o Pleno do tribunal discutiu a constitucionalidade da revogação de um dispositivo de lei ordinária por uma lei complementar. Ocasião em que, conclui-se pela adequação constitucional da alteração, visto que a lei modificada era formalmente complementar, mas materialmente ordinária. Entretanto, esse raciocínio defendido pela metade dos Ministros presentes, modificou um entendimento pacífico STJ, assentado inclusive na Súmula 276 (atualmente cancelada), a qual determinava que “As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado”.[20]
Por conseguinte, pelo fato de o STF ter modificado um posicionamento que vinha sendo adotado a 05 (cinco) anos pelo STJ, o advogado Paulo de Barros Carvalho requereu a modulação dos efeitos da decisão. Pretendia-se evitar que os contribuintes que não haviam recolhido o CONFIS, baseado na posição consolidada do STJ, tivessem que pagar o tributo de forma retroativa. Ocorre que, para apreciar o pedido, o Supremo aplicou analogamente o art. 27 da Lei nº 9.868/99, e, por não ter sido alcançado o quorum qualificado de 2/3 exigido pelo dispositivo legal, a modulação foi rejeitada. O ponto central da discussão é justamente ponderar sobre aplicação do art. 27 da Lei nº 9.868/99, nos casos em que há essa alteração jurisprudencial. Há que se buscar a solução que melhor se adequa aos ideais impostos pelos princípios constitucionais e pelos fundamentos do Estado de Direito, sob o ponto de vista do Direito Tributário.