3. A falta ou mora na comunicação do sinistro à seguradora
Uma questão que tem sido recorrente na prática dos tribunais é a evocação da exclusão de responsabilidade de indemnizar pelas seguradoras, em virtude de mora ou falta de participação da ocorrência do sinistro pelo tomador do seguro ou segurado, dentro do prazo devido.
A pergunta é inevitável.
É lícito à seguradora furtar-se ao pagamento da indemnização ou do capital seguro apenas porque o sinistro não foi participado tempestivamente?
É sobre esse ponto que nos vamos debruçar.
Efectivamente, decorre da lei que, em caso de verificação do sinistro, o tomador do seguro ou o segurado devem comunicar tal facto à seguradora no prazo de oito dias a contar da ocorrência ou da data em que uma das referidas pessoas tenha tido conhecimento da verificação do sinistro. Pode, no entanto, o contrato definir prazo diverso (artigo 136.º, n.ºs 2 e 3 do RJS).
Com base nos ditames da boa fé (artigo 86.º do RJS), a doutrina maioritária considera tempestiva a participação quando a seguradora tenha tido conhecimento do sinistro por outro meio durante o prazo estabelecido para a participação. O mesmo sucede caso o participante consiga demonstrar que não podia ter efectuado a participação em momento anterior àquele em que o fez.
Na participação devem ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respectivas consequências (artigo 136.º, n.º 4 do RJS). Com assento ainda na boa fé, devem, pois, ser prestadas todas as informações relevantes relativas ao sinistro e às suas consequências que sejam solicitadas pela seguradora.
A participação à seguradora representa o aspecto formal da solicitação de pagamento da indemnização. Até então, a seguradora não está obrigada a pagar porque simplesmente não tem ciência do evento.
E, se houver mora ou falta de participação?
No domínio do princípio da autonomia privada (artigo 87.º do RJS), é permitido às partes que estabeleçam no contrato de seguro penalidades para o beneficiário se a participação do sinistro não for feita dentro do prazo devido. Em regra, o contrato de seguro pode prever: i) que haja redução da prestação da seguradora, atendendo ao dano que a falta de participação atempada lhe causa; ou ii) que haja perda da cobertura se a falta de participação atempada ou a participação de modo incorrecto for dolosa e tiver determinado dano significativo para a seguradora.
Compulsando, porém, o Regime Jurídico dos Seguros e toda a legislação correlata não resulta em nenhum preceito que a falta ou mora na comunicação seja motivo de exclusão da responsabilidade da seguradora em pagar a indemnização.
No geral, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (por ex. artigo 4.º da Lei n.º 2/2003, de 21 de Janeiro), as exclusões devem encontrar-se nas cláusulas da apólice nos mesmos termos que as condições que estabelecem causas de invalidade ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes ou que consagram reduções de cobertura, devendo, em todas, ser escritas utilizando caracteres destacados, de forma a tornar fácil a sua identificação (artigo 104.º, n.º 1 do RJS). As exclusões podem ser relativas às qualidades do tomador ou pessoa segura ou a circunstâncias alheias a estes.
É, de resto, o artigo 137.º do RJS que estabelece a sanção em caso de mora ou falta de comunicação. Segundo este dispositivo, se a participação não for feita dentro do prazo legal ou convencionado, o segurado responde pelos danos que cause à seguradora, com a demora. A seguradora passa a ter direito a uma indemnização consistente nos danos sofridos e evitáveis com a participação atempada. A lei impõe apenas “o dever de indemnizar a seguradora pelos danos e demais despesas ocasionadas por essa actuação”. Nascido o direito, este pode ser exercido na fase extrajudicial perante o tomador do seguro ou segurado ou na fase judicial, quando não haja acordo sobre a proposta apresentada ou a seguradora não aceite a responsabilidade pelo acidente. Trata-se de uma norma de natureza sancionatória civil que visa, essencialmente, incentivar o cumprimento dos prazos e dos procedimentos a levar a cabo pelo tomador do seguro ou segurado no quesito da comunicação atempada do sinistro.
A norma é imperativa (artigo 87.º, n.ºs 2 e 3 do RJS), limitando a mora à responsabilidade civil do segurado, na proporção do prejuízo causado à seguradora. Com efeito, não vai, por essa falta, a seguradora pretender excluir a sua responsabilidade de pagar a indemnização ou o capital seguro, ou, como diz Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, op. cit., p. 817, “a sanção não pode, designadamente, pelas condições gerais, ser alargada ao ponto de se considerar ineficaz o seguro, por falta de participação atempada”.
A seguradora deve cumprir as obrigações contratualmente assumidas (artigo 82.º, n.º 3 do RJS), sendo que neste caso releva a de pagamento da indemnização ou do capital seguro. Para tal basta que se confirme a ocorrência do sinistro e se definam e aceitem as suas causas, circunstâncias e consequências (artigo 144.º, n.º 1 do RJS).
A mora ou falta de comunicação do sinistro à seguradora não constitui, em suma, obstáculo ao exercício do direito de acção, nem o documento de participação é essencial à propositura da demanda.
Em conformidade, por esse motivo, a seguradora não poderá opor a sua responsabilidade ao beneficiário do seguro. Muito menos poderá opô-la ao lesado. O artigo 12.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 47/2005, de 22 de Novembro, elucida este quadro quando dispõe, para o seu objecto, que, para além das exclusões previstas na Lei n.º 2/2003, de 21 de Janeiro, ou casos de resolução automática ali estabelecidos, a seguradora apenas poderá opor aos lesados a cessação do contrato nos termos postulados para a alienação do bem seguro ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.
Nos demais casos, sendo o seguro válido, vai a seguradora pagar a compensação por si garantida em caso de sinistro, até ao valor seguro. Neste particular vale a pena seguir Sofia Martins, Guia sobre o Novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro, Uria Menéndez, Lisboa, s/d, pp. 55-56, quando expende que “a falta de participação de sinistro por quem a tal esteja obrigado não é oponível aos lesados. Significa isto que os terceiros que devam ser indemnizados ao abrigo de uma apólice de outrem – caso típico do seguro automóvel – não podem ser prejudicados pelo facto de o titular da apólice não ter participado o sinistro em tempo útil. Nestes casos, o segurador deverá pagar a indemnização a que haja lugar, ficando com direito de regresso contra o incumpridor do dever de participação, com as limitações estabelecidas no referido contrato de seguro”.
4. Consequência da falta de legitimidade processual
Nos termos do CPC, se a falta de legitimidade, seja do autor, seja do réu, for manifesta em face do texto da petição inicial, deve esta ser liminarmente indeferida (artigo 474.º, n.º 1, alínea b)). Se só mais tarde for apurada, configura uma excepção dilatória (artigo 494.º, n.º 1, alínea b)) e deve absolver-se o réu da instância (artigo 288.º, n.º 1, alínea d)) no despacho saneador (artigo 510.º, n.º 1, alínea a)) ou na sentença final (artigo 660.º, n.º 1), abstendo-se o juiz de se pronunciar sobre o mérito da acção. Em qualquer dos casos, a ilegitimidade, qualquer que seja a sua natureza, é, em regra, vício sanável (artigo 494.º, n.º 2).