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A legitimidade processual das seguradoras no domínio da responsabilidade civil

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07/08/2014 às 14:18
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Investiga-se se um terceiro lesado, estranho a um determinado contrato de seguro, pode demandar directamente a seguradora, pedindo que esta o indemnize de um dano que sofreu no âmbito de um risco coberto pelo seguro.

1. Breve teorização sobre os contratos de seguro

O termo “seguro” é originário do latim securus, sendo que gramaticalmente exprime o sentido de livre e isento de perigos e cuidados, posto a salvo, garantido (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, 27ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2006, pp. 1268-1269).

Em linguagem jurídica, Teodoro Andrade Waty, Direito dos Seguros, W&W Editora, Maputo, 2007, p. 11, fixa o sentido de seguro como “uma operação pela qual a seguradora, avaliadas as probabilidades de ocorrência futura de determinados eventos, aceita efectuar prestações pré-convencionadas a favor de conjunto homogéneo de pessoas, mediante um prévio desembolso.”

Em conformidade, o contrato de seguro pode ser definido, atento a Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros – apontamentos, Cascais, Principia, 1999, p. 94, como “o contrato aleatório por via do qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer”.

Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1971, pp. 23-24, traz um conceito mais copioso, definindo o contrato de seguro como “aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de prestação a realizar em data determinada”. Na mesma linha situam-se Garrides, apud. Teodoro Andrade Waty, Direito dos Seguros, op. cit., pp. 11-12 e José Vasques, Contrato de Seguro: Notas para uma Teoria Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 94.

O actual Regime Jurídico dos Seguros (RJS), aprovado pelo DL n.º 1/2010, de 31 de Dezembro, traz no n.º 9 do Glossário em Anexo a definição legal de contrato de seguro. Com efeito, este é “o acordo pelo qual a seguradora ou micro-seguradora se obriga, em contrapartida do pagamento de um prémio e para o caso de se produzir o evento cuja verificação é objecto de cobertura, a indemnizar, nos termos e dentro dos limites convencionados, o dano produzido ao segurado ou a satisfazer um capital, uma renda ou outras prestações nele previstas.”

Através do contrato de seguro, a seguradora obriga-se a suportar o risco. Ou seja, como contrapartida do recebimento do prémio, a seguradora passa a estar disponível para fazer face às consequências da eventual realização do sinistro. Desta forma, pode afirmar-se que, por força do contrato, nas relações internas, a seguradora coloca-se na posição de quem é obrigada a indemnizar e o segurado na posição de quem tem que demonstrar o dano, a sua relação com o sinistro, bem como a sua extensão e valorização.

São sujeitos do contrato de seguro o segurador e o tomador do seguro (artigo 79.º, n.º 1 do RJS).

O segurador é uma sociedade anónima, ou sociedade mútua ou sucursal de uma sociedade estrangeira que, autorizada a explorar a actividade seguradora, assume o risco transferido de um tomador de seguro. No fundo o segurador é a pessoa que promete a cobertura do seguro. Por seu turno, o tomador do seguro, que é a contraparte, é a pessoa singular ou colectiva, que transfere o risco para o segurador mediante a obrigação de pagamento de um prémio. Segundo Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros – apontamentos, op. cit., p. 53, “tomador do seguro é uma expressão não muito feliz que designa o sujeito que transfere o risco para a seguradora mediante a obrigação de pagamento de um prémio (…); tradicionalmente utilizava-se o termo segurado (…) mas admitindo que poderia suscitar confusão entre aquele que faz o seguro e o que dele beneficia, usa-se, no primeiro sentido tomador do seguro”. Importa referir que o tomador do seguro poderá ser diferente do segurado, embora na maior parte dos casos, o tomador seja o beneficiário, ou seja, o sujeito a quem a indemnização ou outra compensação deverá ser liquidada.

Trata-se, em suma, o contrato de seguro de um negócio jurídico i) bilateral e sinalagmático, por gerar direitos e obrigações às partes contratantes; ii) oneroso, pois representa sacrifício patrimonial para ambos os contraentes, na busca de seus respectivos objectivos; iii) formal, pois a lei impõe para a sua celebração a forma escrita a constar de um instrumento próprio, designado apólice de seguro (artigo 102.º do RJS), que serve de sua expressão material; iv) aleatório, conforme entende a maior parte da doutrina; v) de execução continuada, pois a sua execução se protrai no tempo, determinando a eficácia ex nunc da resolução (artigo 434.º, n.º 2 do C. Civil); vi) por adesão, em razão da maioria das cláusulas ser pré-estabelecida pela seguradora; vii) empresarial, pois é indispensável que a seguradora seja sociedade empresarial, nomeadamente sociedade anónima, legalmente autorizada para tal fim, sobretudo em razão da função social desempenhada.

Cumpre notar que nem a existência de um órgão regulador e fiscalizador do sistema de seguros, no caso moçambicano o Instituto de Supervisão de Seguros de Moçambique (ISSM), nem o maior dirigismo dos contratos, nomeadamente com relação aos seguros obrigatórios, retiram a natureza privada desta modalidade de contratos. É que, pese embora a preeminência de contratos de adesão, a observância dos princípios de ordem pública, a interferência estatal e a natureza dos interesses tutelados, se atendermos ao regime fixado no RJS, a matéria referente à constituição, modificação e extinção dos contratos de seguros está, em regra, enquadrada no âmbito do direito privado, pautando-se pelo princípio da autonomia privada (Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros – apontamentos, op. cit., pp. 39 e segs.).

Assim, como em qualquer contrato, a boa-fé é importante requisito a ser observado pelas partes nos contratos de seguro (artigo 86.º do RJS), pois as declarações e informações prestadas são fundamentais na celebração do contrato, na análise dos riscos, na fixação do prémio e no decurso de toda a execução do contrato.

Uma lição a reter é que o seguro destina-se exclusivamente a repor o valor dos prejuízos resultantes da ocorrência do risco (sinistro). Nem o segurado nem qualquer outro interveniente na ocorrência podem obter lucro como resultado dessa ocorrência.

Se é certo que a liberdade de contratar ou não contratar depende normalmente da vontade das partes, situações há em que o exercício de determinada actividade é condicionado pelo Estado à existência de um seguro prévio: os seguros obrigatórios. Estes decorrem assim de uma imposição legislativa e não da liberdade das partes.

Será, então, de se entender, ser no geral, obrigatório o seguro em Moçambique?

Historicamente, os seguros obrigatórios surgem em decorrência da industrialização e do aumento dos riscos inerentes às variadas actividades humanas, que obrigam os Estados a desenvolver meios concretos de reparação de danos. Dessa forma, foi imposta a contratação destes seguros, para proteger o património do segurado e principalmente para evitar a frustração dos interesses do lesado, promovendo-se a repartição social de determinados danos. Para Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, p. 773, as modernas sociedades técnicas implicam uma repartição social de determinados danos: pense-se nos acidentes de trabalho, nos acidentes de viação ou nos incêndios em condomínios. Essa repartição social consegue-se, tecnicamente, através da obrigatoriedade de celebração de contratos de seguro. O Estado impõe esses seguros e obriga, naturalmente, a inserção neles de determinadas cláusulas.

Na continuidade, Leite de Campos, Seguros de Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1971, pp. 23-24, refere que a transição do seguro facultativo para o obrigatório reflecte uma significativa alteração dos interesses em causa. No primeiro momento, o seguro, embora indo beneficiar o lesado, é contratado por quem quer tutelar o seu próprio património contra eventualmente pesadas obrigações de indemnizar. É, portanto, o interesse do segurado que prevalece. Numa segunda fase, o legislador ao tornar o seguro obrigatório, fá-lo com vista à protecção dos eventuais lesados, colocando, deste modo, o benefício que de tal contrato resulta para o lesado na posição de finalidade principal do seguro.

No nosso ordenamento jurídico, são obrigatórios, entre outros, os seguros de responsabilidade civil automóvel (artigo 157.º do CE e artigo 1.º da Lei n.º 2/2003, de 21 de Janeiro), os de provas desportivas (artigos 158.º do CE e 3.º do Decreto n.º 47/2005, de 22 de Novembro), os decorrentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (artigos 231.º e 232.º ambos da LT e artigos 7.º e 8.º do Regulamento que Estabelece o Regime Jurídico de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovado pelo Decreto n.º 62/2013, de 4 de Dezembro), e os do edifício contra o risco de incêndio em condomínio (artigo 28.º, n.º 1 do Regulamento do Regime Jurídico do Condomínio, aprovado pelo Decreto n.º 17/2013, de 26 de Abril).

Estão ainda abrangidos pelo regime da obrigatoriedade, nos termos do preceituado no Regulamento de Transporte em Automóveis, aprovado pelo Decreto n.º 11/2009, de 29 de Maio, o seguro de responsabilidade civil sobre danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros no exercício de transporte particular (artigo 6.º, n.º 2), no transporte público (artigo 15.º, n.º 4), no transporte de aluguer: táxi (artigo 27.º, n.º 1, alínea e)), no transporte de aluguer de veículo pesado de passageiros (artigo 39.º, n.º 1, alínea e)), no transporte de mercadorias em automóveis pesados (artigo 84.º, n.º 1, alínea d)), no aluguer de veículo sem condutor (artigo 95.º, n.º 1, alínea c)), no aluguer de veículo escolar (artigo 96.º, n.º 2, alínea e)), no aluguer de veículo pronto-socorro (artigo 97.º, n.º 1, alínea e)) e no transporte internacional (artigo 101.º, alínea c)). São igualmente obrigatórios o seguro de responsabilidade civil sobre danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros por uma transportadora no exercício de transporte turístico (artigo 32.º do Regulamento de Transporte Turístico, aprovado pelo Decreto n.º 41/2007, de 24 de Agosto); o seguro de responsabilidade civil profissional resultante da actividade de agência de viagens e turismo, devendo cobrir os danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, por acções ou omissões dos representantes ou das pessoas ao serviço das agências de viagens e turismo, pelos quais estes sejam civilmente responsáveis e, cobrindo todos os países visados se respeitar a viagens e turismo para o estrangeiro (artigo 42.º do Regulamento das Agências de Viagens e Turismo e de Profissionais de Informação Turística, aprovado pelo Decreto n.º 41/2005, de 30 de Agosto); o seguro de responsabilidade civil sobre terceiros e passageiros, carga e correio na exploração de serviços de transporte aéreo (artigo 9.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Regulamento do Exercício das Actividades de Transporte Aéreo e Trabalho Aéreo, aprovado pelo Decreto n.º 39/2011, de 2 de Setembro); o seguro sobre terceiros, carga e correio na exploração de aeródromos, de serviços de tráfego aéreo, de terminais e de outros serviços auxiliares (artigo 9.º, n.º 2 do Regulamento do Exercício das Actividades de Transporte Aéreo e Trabalho Aéreo, aprovado pelo Decreto n.º 39/2011, de 2 de Setembro); o seguro de responsabilidade civil sobre terceiros e tripulantes na exploração de serviços de transporte aéreo particulares (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Regulamento sobre o Licenciamento de Operadores Aéreos Particulares, aprovado pelo Decreto n.º 38/2011, de 2 de Setembro); o seguro de responsabilidade civil sobre passageiros, terceiros e danos ambientais para o exercício de transporte marítimo particular e de transporte marítimo comercial (artigo 5.º do Regulamento do Transporte Marítimo Comercial, aprovado pelo Decreto n.º 35/2007, de 14 de Agosto); o seguro de responsabilidade civil sobre danos materiais e corporais causados a terceiros e ao ambiente resultantes da construção e da exploração da rede de distribuição de gás natural (artigo 9.º, n.º 1 do Regulamento da Distribuição e Comercialização de Gás Natural, aprovado pelo Decreto n.º 44/2005, de 29 de Novembro); o seguro de responsabilidade civil sobre danos humanos e materiais causados a terceiros e resultantes do exercício de instalações eléctricas por empresas particulares (artigo 13.º, n.º 1 do Decreto n.º 45/98, de 22 de Setembro, que regulamenta a gestão das instalações eléctricas construídas ou reabilitadas com fundos públicos nos distritos, cuja gestão não tenha sido atribuída a uma empresa pública); e o seguro desportivo enquadrado para os profissionais do desporto formal, o qual com o objectivo de cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos, protege, em termos especiais, o praticante de alta competição (artigo 57.º da Lei de Desportos, aprovada pela Lei n.º 11/2002, de 12 de Março e artigo 35.º, n.º 2 do Regulamento da Lei do Desporto, aprovado pelo Decreto n.º 3/2004, de 29 de Março).

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No domínio da legislação do ambiente, a obrigatoriedade do seguro é bastante assertiva. O artigo 25.º da LAmb estabelece que “todas as pessoas que exerçam actividades que envolvam elevado risco de degradação do ambiente e assim classificadas pela legislação sobre a avaliação do impacto ambiental, devem segurar a sua responsabilidade civil.” O n.º 4 do artigo 12.º do Regulamento sobre a Gestão das Substâncias que Destroem a Camada de Ozono, aprovado pelo Decreto n.º 24/2008, de 1 de Julho, para as operações de trânsito das substâncias controladas obriga à constituição de seguro nos seguintes termos “O proponente deve exibir o certificado de trânsito aduaneiro (...) e o certificado de seguro de risco (...)” e o n.º 1 do artigo 16.º do mesmo diploma preceitua que “a movimentação de equipamentos ou substâncias controladas (...) obedece às disposições do Código da Estrada (...). A alínea c) do artigo 15.º do Regulamento sobre a Biossegurança Relativa à Gestão de Organismos Geneticamente Modificados, aprovado pelo Decreto n.º 6/2007, de 25 de Abril, para o trânsito de alimentos destinados a países da região em situação de emergência, impõe como um dos requisitos a apresentação à Autoridade Nacional de Biossegurança de certificados de trânsito e de seguro de risco. O n.º 1 do artigo 21.º do Regulamento sobre a Gestão de Resíduos, aprovado pelo Decreto n.º 13/2006, de 15 de Junho, impõe que “a movimentação de resíduos perigosos por vias públicas será efectuada com as necessárias adaptações, obedecendo às disposições do Código da Estrada, sobre o trânsito de veículos que efectuem transportes especiais.”

Em contraposição aos seguros obrigatórios, destacam-se os denominados seguros “facultativos”, “não obrigatórios” ou “voluntários”. Nestes, governa o princípio da autonomia da vontade (artigo 87.º do RJS), pois não há qualquer dispositivo legal que obrigue a sua contratação. As partes são livres para estabelecer o conteúdo e a abrangência do contrato, nomeadamente no que se refere aos riscos que serão garantidos e ao montante indemnizatório, dentre outros. É importante que delimitem o âmbito de abrangência do contrato. A regra é que os seguros são facultativos, a não ser que a lei se refira expressamente à sua obrigatoriedade.

 


 

2. Legitimidade processual da seguradora em caso de responsabilidade civil

No domínio da responsabilidade civil (artigos 483.º e segs. do C. Civil), a noção de seguro gira em torno da garantia que a seguradora assume, mediante o pagamento de um prémio, relativamente às consequências desfavoráveis ou danosas, no âmbito económico-financeiro, que possam recair sobre o património do segurado, em razão do risco de responsabilização civil deste último por danos causados a um terceiro.

Na doutrina francesa, Maurice Picard e André Besson, Traité Général des Assurances Terrestres en Droit Français, Tome III, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1938, p. 285, referem que “dans un sens courant, l’assurance de responsabilité est um contrat par lequel l’assureur garantit l’assuré contre les réclamations pécuniaires des tiers au regard desquels sa responsabilité se trouve engagée à raison d’un fait dommageable déterminé”. Ou seja, no seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de o segurado ter de vir a indemnizar terceiro por danos que lhe cause.

Com a institucionalização do seguro de responsabilidade civil em Moçambique (artigos 194.º e segs. do RJS), pretende-se fazer despertar a consciência, no sentido de que, toda a pessoa, que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos, sejam eles patrimoniais ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiro, transfira o consequente dever de indemnizar a uma seguradora.

O objecto deste contrato não é, contudo, o acto ilícito e culposo pelo qual responde o segurado, mas o reflexo patrimonial que representará a indemnização por esse acto. Pelo contrato de seguro apenas se transfere o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento.

A questão que se coloca e é objecto das presentes notas é apurar se pode um terceiro lesado, estranho a um determinado contrato de seguro, demandar directamente a seguradora, pedindo que esta o indemnize de um dano que sofreu no âmbito de um risco coberto pelo seguro.

Quanto a esta hipótese pouco foi escrito na nossa doutrina.

No direito comparado não há unanimidade.

No direito brasileiro é dominante o entendimento de que, embora o terceiro seja beneficiário indirecto, não é parte legítima para demandar a seguradora. Viterbo, apud. José Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, Vol. II, Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 834, não aceita a ideia da acção directa da vítima do dano contra a seguradora, já que o seguro de responsabilidade civil garante a indemnização ao responsável e não ao prejudicado, que não é parte do contrato. Além disso, acrescenta que não se trata de seguro a favor de terceiro, uma vez que é convencionado em benefício do segurado, e não de terceiro. Na mesma orientação segue Ricardo Bechara Santos, Direito de Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria, 2ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2006, p. 505, para quem o terceiro não tem acção directa contra a seguradora, assente no esteio de que a proposição esbarra no próprio fundamento de que não sendo o terceiro parte do contrato de seguro, não seria aceitável poder ele accionar a seguradora que, junto com o segurado, formam as únicas partes desse negócio jurídico bilateral, facto que, por si só, afasta, sem qualquer margem para dúvidas, qualquer legitimatio activa, ad causam ou ad processum, desse terceiro, como também faz da seguradora parte ilegítima para ser demandada por ele (terceiro), posto que res inter alios acta.

Outros argumentos da tese negativista fundam-se na própria razão das acções de responsabilidade civil. Por se tratar de demanda de reparação de danos causados por acto ilícito, e certo sendo que a seguradora não é a autora desse acto ilícito não será então parte legítima para ser demandada. Tão pouco teria legitimidade activa o terceiro para demandar a seguradora. Há quem ainda advoga que a possibilidade de o terceiro accionar directamente a seguradora representaria uma inconcebível comodidade ao segurado, incentivando o seu relaxamento no que diz respeito às preocupações rotineiras. Do ponto de vista legislativo, o Código de Seguros alemão (Versicherungsvertragsgesetz – VVG) exclui qualquer possibilidade de acção directa contra a seguradora. Esta é igualmente a posição extraída do Código Civil Italiano.

Entretanto, não é esta a posição hodiernamente dominante no direito comparado. A acção directa do lesado contra a seguradora de responsabilidade civil do civilmente responsável é, no geral, admitida, mesmo nos seguros facultativos. O artigo 76.º da Lei de Seguro da Espanha, de 8 de Outubro de 1980, dispõe expressamente que o lesado ou os seus herdeiros terá acção directa contra o segurador para exigir o cumprimento da obrigação de indemnizar. Esta construção está igualmente prevista no Third Parties Act inglês (Rights against Insurers), na Bélgica e no Luxemburgo (respectivamente, artigos 86.° e 89.° das leis sobre o contrato de seguro) e, na França, imposta pela jurisprudência com a natureza de norma de aplicação imediata, ou seja, prevalece mesmo quando a lei que regula a obrigação extracontratual ou o contrato de seguro a afastem.

Em Portugal, conforme expende Moitinho de Almeida, Contrato de Seguros, Estudo, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 22-26, durante muito tempo, a orientação jurisprudencial dominante assegurou a acção directa para o lesado. O contrato de seguro de responsabilidade civil, mesmo facultativo, era tido como um contrato a favor de terceiro (artigo 444.º, n.º 2 do C. Civil). Entretanto, o novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, expressamente passou a admitir a acção directa contra a seguradora para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel ou para o seguro de acidentes de trabalho. O novo regime veio adoptar essa mesma solução para todos os seguros obrigatórios. Quanto aos seguros facultativos, a acção directa só é admitida em dois casos: quando o contrato de seguro assim o preveja ou quando o segurado tenha informado o lesado da existência do seguro com o consequente início de negociações directas entre este e o segurador.

E no nosso direito?

Esta questão tem particular acuidade no âmbito dos contratos de seguro facultativo de responsabilidade civil, já que por norma, nos que são obrigatórios a possibilidade de o lesado demandar directamente a seguradora resulta da própria lei, de que é exemplo o seguro de responsabilidade civil automóvel.

Em matéria de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de contrato de seguro, a lei admite expressamente a responsabilidade directa da seguradora, individualmente, quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, em regime de litisconsórcio com o segurado, quando o pedido formulado ultrapassar esse limite (artigo 19.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Decreto n.º 47/2005, de 22 de Novembro), o que nos reconduz à figura da legitimidade a título de parte principal.

Nesta modalidade de seguro, a acção directa do lesado em face da seguradora, mais do que uma faculdade, representa um dever. O civilmente responsável somente poderá ser accionado na hipótese do pedido formulado exceder os limites do seguro obrigatório.

A seguradora, por sua vez, detém o direito de regresso em face do responsável pelos danos nas hipóteses taxativamente previstas pela lei (artigo 5.º da Lei n.º 2/2003, de 21 de Janeiro), dentre as quais se inclui uma postura, ao menos, reprovável do lesante, bem como situações em que o condutor agiu dolosamente, não estava legalmente habilitado ou agiu sob a influência de álcool ou outras substâncias estupefacientes. No mesmo sentido situa-se o artigo 199.º do RJS. Para maiores detalhes a respeito das discussões doutrinárias, vid. Pedro Ribeiro Silva, Regresso e Condução sob a Influência de Álcool na Actividade Seguradora, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 201-214.

O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela lei do seguro obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização.

E nos outros tipos de seguros?

Pode um terceiro lesado, que não seja parte de certo contrato de seguro, demandar directamente a seguradora, pedindo que esta o indemnize de um dano que sofreu no âmbito de um risco coberto pelo seguro?

Resulta do artigo 195.º do RJS que, no geral, “a seguradora, na sequência da assunção do risco de responsabilidade civil, pode intervir em qualquer processo administrativo ou judicial, onde se discuta a obrigação de indemnizar com referência a esse risco, suportando os custos daí decorrentes”.

Embora se admita a intervenção da seguradora em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco assumiu, a sua demanda directa não resulta clara do regime do RJS. Além disso, pode intervir em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnização, o que nos reconduz à figura do assistente em relação ao segurado ou ao tomador, tendo tal intervenção como objectivo auxiliá-lo na sua defesa, nos termos do artigo 335.º do CPC, acautelando, por esta via, os interesses decorrentes da transferência do risco.

Mas, considerando que o segurado poderá exercer o direito de regresso se vier a ser reconhecida a sua responsabilidade pelo sinistro, a intervenção da seguradora pode ser alcançada através do incidente de chamamento à autoria, nos termos dos artigos 325.º e segs. do CPC, permitindo estender-lhe, desde logo, os efeitos do caso julgado que se formar com a eventual sentença condenatória.

Neste último caso, se a seguradora não tiver sido inicialmente demandada, nomeadamente por se ignorar a existência de contrato de seguro, o lesado ou mesmo o segurado pode requerer a sua intervenção principal provocada, nos termos dos artigos 351.º e segs. do CPC.

E sobre a possibilidade da demanda directa à seguradora?

Como sabemos, no domínio das relações negociais vigora entre nós o regime da relatividade (artigo 406.º, n.º 2 do C. Civil), por oposição aos direitos absolutos ou subjectivos que já são dotados de eficácia erga omnes. A natureza relativa das obrigações prende-se com o seu aspecto estrutural e significa que os contratos apenas produzem efeitos entre as partes, que apenas o credor tem o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação e que o devedor só está vinculado a esse cumprimento perante o credor – res inter alios acta Nec nocet Nec prodest.

A consequência lógica da relatividade da obrigação é a de que o devedor só responde pelas consequências do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso da prestação causadas ao credor e só este lhe pode exigir a reparação das consequências danosas.

A nossa ordem jurídica prevê, no entanto, várias excepções ao princípio da relatividade dos contratos. Desde logo, os contratos com eficácia real (artigo 408.º do C. Civil), nos quais exactamente porque a relação obrigacional tem efeitos reais e os direitos reais são oponíveis a terceiros, o direito de crédito é oponível mesmo a terceiros não intervenientes no contrato. Também a impugnação pauliana (artigos 610.º e segs. do C. Civil), na qual uma obrigação é imputada a um terceiro que através da aquisição de bens do devedor lesou o credor, permitindo o instituto que apesar dessa aquisição o bem adquirido por terceiro continue a responder pelo cumprimento da obrigação (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, op. cit., Vol. I, pp. 374-375 e 425 e segs.).

Podem ainda apontar-se como excepções ao princípio da relatividade dos contratos o instituto do abuso do direito e a proibição da concorrência desleal (artigos 334.º do C. Civil e 174.º do CPI, respectivamente), os quais ainda que visando a lisura de comportamentos e o respeito pelas regras da boa fé, conferem a terceiros protecção em relação a contratos em que não intervieram, mas cujos efeitos os prejudicariam intoleravelmente.

E pode ainda citar-se o n.º 2 do artigo 111.º do C. Comercial que faculta aos credores da sociedade acção directa contra os membros dos órgãos sociais para obter pagamento dos seus créditos.

A principal excepção é, no entanto, constituída pela figura dos contratos a favor de terceiro. O contrato a favor de terceiro é aquele em que uma das partes assume perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio, o qual adquire direito à prestação, independentemente da aceitação (artigos 443.º e 444.º do C. Civil). Como assinala Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, Coimbra, p. 279, neste tipo de contratos “o que se exige é que o promitente e o promissário actuem com intenção de o contrato produzir os efeitos de uma atribuição imediata, e não apenas reflexa, relativamente ao terceiro”.

No contrato a favor de terceiro, portanto, as partes estipulam um efeito positivo para um terceiro e este pode invocar directamente essa estipulação, cujos efeitos se produzem de imediato na sua esfera jurídica (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, op. cit., Vol. I, pp. 426-427).

Nos contratos de seguro de responsabilidade civil, o objecto do seguro é a responsabilidade que pode vir a onerar o património do segurado, nos casos em que em virtude da verificação do risco coberto pelo contrato o segurado fica incurso na obrigação de reparar os danos causados a terceiro. Este retira do contrato uma vantagem que sem ele não teria, qual seja a vantagem de pelo ressarcimento dos seus danos responder também o património da seguradora.

A questão que se coloca é se a posição jurídica de terceiro lhe confere a faculdade de demandar directamente a seguradora para obter daquela a indemnização ou se ele apenas pode exigir a indemnização do segurado, cabendo a este a faculdade de posteriormente, em acção de regresso, exigir da seguradora o pagamento da indemnização que haja satisfeito ao terceiro.

É certo, porém, que para que o contrato de seguro possa ter a qualificação de contrato a favor de terceiro é indispensável a existência de um terceiro que tenha direito próprio a um benefício, nos termos do respectivo contrato. Não será, pois, todo e qualquer contrato de seguro qualificado como contrato a favor de terceiro (Teodoro Andrade Waty, Direito dos Seguros, op. cit., pp. 19-20).

Para quem vê no contrato de seguro de responsabilidade civil um contrato a favor de terceiro a resposta àquela questão é simples. O terceiro é o beneficiário da promessa feita pela seguradora e, por isso, como adquiriu o direito à prestação, pode exigir directamente da seguradora promitente o cumprimento da sua promessa, entenda-se o pagamento da indemnização dos seus danos. Na doutrina, postulam nesse sentido, Leite de Campos, Contrato a Favor de Terceiro, Almedina, Coimbra, 1991, pp. 13-16 e José Vasques, Contrato de Seguro: Notas para uma Teoria Geral, op. cit., pp. 258-259.

Porém, em sentido contrário, assente na ideia de que a seguradora e o tomador do seguro não celebram o contrato com a intenção de atribuir direito a um terceiro, posicionou-se Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, op. cit., pp. 291-292.

Qualquer que seja a posição a adoptar, trata-se de interpretar o regime jurídico do contrato ou o escopo das declarações negociais que o constituem, tentando descortinar nas mesmas uma intenção de protecção de determinadas pessoas alheias à relação negocial e, eventualmente, de proceder à integração das lacunas do programa negocial estabelecido em função da vontade presumível das partes se tivessem previsto a situação.

Através da interpretação e integração da vontade negocial dos contraentes, real ou conjecturável, não é difícil de aceitar que se as partes tivessem previsto esta situação teriam optado pela via da indemnização directa aos lesados. Da parte do segurado essa opção é óbvia, na medida em que com a celebração do seguro a sua intenção primeira é não ter de suportar qualquer indemnização a terceiro lesado, pelo que se a seguradora resolver directamente a questão da indemnização com o lesado melhor para si, sendo certo que em circunstância alguma poderia obter para si um proveito com a situação oposta. Da parte da seguradora também parece a opção mais razoável, uma vez que a discussão do valor da indemnização directamente com o lesado lhe permitirá controlar melhor o apuramento desse valor e a verificação dos respectivos pressupostos.

Podemos ainda retirar do disposto nos artigos 741.º e 692.º, n.º 2 ex vi do artigo 753.º, todos do C. Civil, apoio para sustentar a figura dos contratos a favor de terceiro e as ilações que a mesma permite. De facto, se o terceiro credor tem privilégio sobre a indemnização devida pela seguradora da responsabilidade do lesante e se a seguradora não se liberta da obrigação de pagamento da indemnização directamente ao segurado se não tiver assegurado o pagamento privilegiado ao credor, podemos certificar como José Vasques, Contrato de Seguro: Notas para uma Teoria Geral, op. cit., p. 259, que “parece decorrer do próprio regime legal a intenção de proteger o terceiro alheio ao contrato de seguro e de assegurar que o pagamento lhe seja feito directamente”.

Com esta solução são acolhidos vários interesses: i) dos lesados, que confrontam logo as seguradoras cuja solvabilidade lhes permite responder pelos danos causados; ii) dos segurados ou dos tomadores dos seguros, que são substituídos (em casos de demanda exclusiva da seguradora) ou acompanhados (em caso de demanda litisconsorcial) pela respectiva seguradora, ficando, assim, imediata e substancialmente aliviados da carga de responsabilidade decorrente do sinistro e do ónus que implica a defesa judicial; e iii) também das próprias seguradoras, que, desta forma, podem assumir logo a direcção do litígio, na medida em que muito frequentemente estão em melhor posição no que concerne ao exercício de uma efectiva defesa quanto a pretensões fraudulentas, injustificadas ou excessivas. Esta é, de resto, a posição propagada por Abrantes Geraldes, O Novo Regime do Contrato de Seguro: Antigas e Novas Questões, Intervenção no Colóquio organizado pela AIDA-PORTUGAL (Secção Portuguesa da Associação Internacional de Direito dos Seguros), em 10 de Março de 2010.

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Sobre o autor
Carlos Pedro Mondlane

Juiz de Direito e docente universitário. Presidente do Tribunal de Polìcia da Cidade de Maputo. Presidente da União Internacional dos Juízes da CPLP. Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Formador no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ). Pós Doutorando em Direitos Humanos, Saúde e Justiça pela Universidade de Coimbra. Doutorado em Direito Privado pela Universidade Católica de Moçambique e Universidade Nova de Lisboa. Mestrado em Direito pela Universidade Católica de Moçambique. Licenciado em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane. Prelector e autor de livros e artigos jurídicos publicados em revistas de especialidade. Autor, entre outros, de:- Comentário da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Coord. Pinto de Albuquerque), Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança, Anotada e Comentada- Código de Processo Civil, Anotado e Comentado- Colectânea dos 15 Anos da Lei de Terras: Venda de Terra em Moçambique: Mito ou Realidade?- Manual Prático dos Direitos Humanos - Constituição de Moçambique Anotada (no prelo)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONDLANE, Carlos Pedro. A legitimidade processual das seguradoras no domínio da responsabilidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4054, 7 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30733. Acesso em: 22 dez. 2024.

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