RESUMO: Busca-se neste artigo discorrer sobre a observância da autonomia privada de uma pessoa com mais de 70 anos, principalmente quando a mesma deseja contrair núpcias, pois o ordenamento jurídico pátrio determina que essas pessoas devem se casar no regime da separação obrigatória de bens. Com essa afirmação, chega-se a conclusão que da maneira que se apresenta a norma legal de forma indevida considera-se que os maiores de 70 anos possuem certa incapacidade não prevista por lei, fato esse não acobertado pelo ordenamento civilista. Ao final do estudo se defenderá que os maiores de 70 anos não podem ver sua autonomia privada cerceada, e deveriam ter a possibilidade de escolher o regime de casamento que melhor aprouvessem.
Palavras-chaves: Idade – Incapacidade – Casamento – Separação de Bens.
1.OS REGIMES DE CASAMENTO E SUA APLICAÇÃO PARA MAIORES DE 70 ANOS.
É cediço que a formação de uma família pelo casamento deflagra efeitos sentimentais e materiais, pois homem e mulher assumem compromissos inerentes ao projeto de família, como: sustento do lar, educação e manutenção dos filhos. Dessa forma se reconhece o aspecto econômico representado pela sociedade conjugal, o qual poderá ser representado também pela aquisição patrimonial, mediante esforço comum dos cônjuges uma mútua colaboração.
Dessa maneira, o Direito visa colaborar no regramento do patrimônio familiar, e em alguns casos permite aos futuros consortes a escolha do regramento quanto aos seus bens patrimoniais e em outros casos ocorre a imposição. Segundo Arnoldo Wald “[...] na realidade, o regime de bens é o ponto de contato entre o direito de família e o direito dos contratos.” (WALD, 2000:96). A doutrina conceitua o regime de bens como:
[...] conjunto de regras que disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a terceiros, durante o casamento. Regula especialmente o domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens anteriores e os adquiridos na constância da união conjugal. (GONÇALVES, 2013:440)
E, continuando, Maria Berenice Dias esclarece:
O regime de bens é uma das conseqüências jurídicas do casamento. Ou seja, não existe casamento sem regime de bens. É indispensável alguma espécie de regramento de ordem patrimonial. Quando não há imposição legal do regime da separação, abstendo-se os noivos de eleger um regime de bens, o Estado faz a opção pelo regime da comunhão parcial. (DIAS, 2013:228).
Os regimes de bens previstos no ordenamento civilista vigente são: a) comunhão parcial de bens, b) comunhão universal de bens, c) separação de bens e d) participação final nos aquestos. O Código Civil de 1916 previa a existência do chamado regime dotal. Lembrando que ao trabalho interessa o regime da separação legal de bens, todavia mesmo que em uma apertada síntese analisar-se-á os demais regimes de bens.
A comunhão parcial de bens atualmente é o regime legal de casamento, tal fato se deu com a Lei do Divórcio (lei 6515/77), pois antes da referida norma, o regime que vigorava era da comunhão universal de bens, ou seja, se os nubentes não estipulam nada no momento de se casarem vigora esse regime, mas “[...] para que possa os noivos escolher regime diverso da comunhão parcial, ou seja, qualquer outro dos três será necessário também o pacto antenupcial”. (FIÚZA, 2014:32)
O pacto antenupcial deve ser feito por escritura pública e registrado no Cartório de Registro de Imóveis do domicílio dos futuros cônjuges, para que possa ter validade contra todos.
O regime da comunhão parcial compreende patrimônios distintos: o particular que cada cônjuge possuía ao ingressar na sociedade conjugal, o comum que foi adquirido na constância do casamento e os que ingressaram na propriedade via herança e doação. Os artigos 1658 a 1162 explanam sobre o patrimônio.
Artigo 1658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
Artigo 1.659. Excluem-se da comunhão: I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares; III - as obrigações anteriores ao casamento; IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal; V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
Artigo 1.660. Entram na comunhão: I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges; II - os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior; III - os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges; IV - as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge; V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.
Artigo 1661 São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.
Artigo 1662 No regime da comunhão parcial, presumem-se adquiridos na constância do casamento os bens móveis, quando não se provar que o foram em data anterior. (CAHALI, 2013:466-467)
Lembrando que existe presunção de esforço comum os bens onerosamente adquiridos na constância do casamento, assim como frutos do esforço individual os adquiridos antes.
O regime da comunhão universal de bens “[...] era o regime supletivo até o advento da lei nº 6515/77, sendo que representava basicamente os anseios e os valores do início do século XX, no que tange à constituição da família fundada no casamento”. (GAMA, 2008:205)
Até o advento da lei 615/77 o regime legal de casamento era da comunhão universal, pois, a partir da edição da referida norma o regime legal passa a ser da comunhão parcial.
A comunhão universal tem como finalidade tornar comuns tanto os bens que cada cônjuge trazia em sua propriedade o se casar, como os adquiridos durante o casamento, a título oneroso ou gratuito, o que se chama de mancomunhão, “[...] propriedade de duas mãos, que gera o condomínio de todos os bens, de forma igualitária, não importando a origem do patrimônio e a época de sua aquisição”. (DIAS, 2013:226)
Esse regime se pautava na ideia de indissolubilidade do casamento, refletindo uma comunhão plena de vida e patrimônio. A norma civilista explana sobre o regime da comunhão universal:
Artigo 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.Artigo 1.668. São excluídos da comunhão:I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;II - os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva;III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum;IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade;V - Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.Artigo 1.669. A incomunicabilidade dos bens enumerados no artigo antecedente não se estende aos frutos, quando se percebam ou vençam durante o casamento. (CAHALI, 2013:468)
Sobre a participação final nos aquestos “[...] é o regime pelo qual cada cônjuge possui patrimônio próprio, cabendo-lhe à época da dissolução da sociedade conjugal, metade do patrimônio adquirido a título oneroso, na constância do casamento.” (FIÚZA, 2014:1184).
Os aquestos podem ser considerados os bens adquiridos a título oneroso, na constância do casamento. Segundo Caio Mario Pereira,
Reconstitui-se contabilmente uma comunhão de aquestos. Nesta reconstituição nominal, levanta-se o acréscimo patrimonial de cada um dos cônjuges no período de vigência do casamento. Efetua-se uma espécie de balanço, e aquele que se houver enriquecido menos terá direito à metade do saldo encontrado. O novo regime configura-se sendo um misto de comunhão e separação. A comunhão não se verifica na constância do casamento, mas terá efeito meramente contábil diferido para o momento da dissolução. (PEREIRA, 2004:205)
A ideia nesse regime de bens é que durante o casamento ocorrerá aplicação do regime de separação de bens, e caso ocorra a dissolução abre-se ao um dos cônjuges o direito de participar dos ganhos (maiores) obtidos pelo outro, conforme leciona as normas que regem o instituto.
Artigo 1.672. No regime de participação final nos aqüestos, cada cônjuge possui patrimônio próprio, consoante disposto no artigo seguinte, e lhe cabe, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento.Artigo 1.673. Integram o patrimônio próprio os bens que cada cônjuge possuía ao casar e os por ele adquiridos, a qualquer título, na constância do casamento.Parágrafo único. A administração desses bens é exclusiva de cada cônjuge, que os poderá livremente alienar, se forem móveis.Artigo 1.674. Sobrevindo a dissolução da sociedade conjugal, apurar-se-á o montante dos aqüestos, excluindo-se da soma dos patrimônios próprios:I - os bens anteriores ao casamento e os que em seu lugar se sub-rogaram;II - os que sobrevieram a cada cônjuge por sucessão ou liberalidade;III - as dívidas relativas a esses bens.Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos durante o casamento os bens móveis. (CAHALI, 2013:468-469)
Viu-se assim que não integram o montante partilhável dos aquestos os bens arrolados no artigo 1674 da norma civil e que os bens móveis presumem-se (presunção iuris tantum) adquiridos na constância da sociedade conjugal.
Lembrando que existem algumas regras pontuais nesse regime de bens, ou seja, se um bem for doado por um dos cônjuges sem autorização do outro, integrarão os aquestos, se algum aquesto for alienado em prejuízo a meação o seu valor será incorporado ao monte, respondendo quem alienou, a não ser que seja possível restituir o bem alienado. Quanto às dívidas contraídas após as núpcias serão de responsabilidade de quem a adquiriu, salvo se restar comprovado que o outro dela se aproveitou.
Assim no momento da dissolução da sociedade conjugal ou na separação de fato os aquestos devem ser calculados e fazendo a respectiva partilha. Antes de abordar a separação de bens, não se deve esquecer o regime dotal, que fora contemplado pelo Código Civil de 1916, mas não no Código de 2002.
O regime dotal de bens se notabiliza pela existência de uma porção de bens- denominados bens dotais que era transferida ao marido pela mulher ou terceiro, de modo que o chefe da família, na condição de provedor do lar, com base nos frutos e rendimentos produzidos pelos bens dotais, atendesse às necessidades de sustento e manutenção do lar, sendo que tais bens deveriam ser devolvidos quando da dissolução da sociedade conjugal.(GAMA, 2008:171).
No regime dotal, os bens sempre ficavam com marido, situação esse que se altera no curso do século XX, pois com a lei 4.121/62 a mulher passa a ter sua emancipação jurídica e como mencionado anteriormente em 1977 muda-se o regime legal de casamento de comunhão universal para comunhão parcial, assim a mulher deixa de ser relativamente incapaz e adquire capacidade plena, podendo ter patrimônio próprio.
Quanto ao regime da separação de bens, pode-se destacar a separação convencional e a legal. Na separação convencional os nubentes mediante um pacto antenupcial optam pela incomunicabilidade dos bens.
No regime da separação absoluta os cônjuges unem suas vidas e seu destino, mas ajustam, por meio de pacto antenupcial, a separação no campo patrimonial. Embora sejam marido e mulher, cada qual continua dono do que lhe pertencia e se tornará proprietário exclusivo dos bens que vier a adquirir, recebendo sozinho as rendas produzidas por uns e outros desses bens. (GONÇALVES, 2013:495)
Dessa maneira conclui-se que cada um dos consortes pode alienar ou gravar de ônus reais os seus bens, cada um conserva com exclusividade posse e domínio seja daquilo que trouxe consigo antes da união e daquilo que adquirir no futuro. A previsão legal se encontra nos artigos 1687 e 1688 do Código Civil:
1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.1.688. Ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulação em contrário no pacto antenupcial. (CAHALI, 2013:470)
Quanto a sucessão e interessante destacar que mesmo nesse regime o cônjuge pode se tornar herdeiro “[...] como o cônjuge é herdeiro necessário, faz jus a herança mesmo que tenha sido eleito o regime da separação de bens. Assim na ausência de descendentes e ascendentes, o viúvo torna-se herdeiro.” (DIAS, 2013:256)
Mesmo afirmando que no regime de separação de bens, não haverá comunhão e existirá a livre disposição, o Supremo editou a Súmula 377 para aplicação ao regime de separação legal, a qual também se aplica a separação convencional assim diz o texto: “[...] no regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.” (CAHALI, 2013:1775) Julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, também corrobora o afirmado:
Se o patrimônio do marido ao tempo da separação (isto é, ao tempo em que vigorou o regime da separação de bens), foi formado com esforço comum, resultado de dinheiro destinado pelos dois cônjuges, tem a mulher direito a parte dos bens, ainda que o regime matrimonial seja o da separação absoluta.TJRS, AP. 598.010.791 8ª Câm. Cív., rel.Des Satangler Pereira. (RIO GRANDE DO SUL, 1998)
Assim, para que o enriquecimento ilícito não se verifique, no regime da separação convencional ou separação legal os bens adquiridos na constância do casamento por esforço comum devem ser partilhados em caso de futura dissolução da sociedade conjugal.
A separação legal ou obrigatória é uma exceção onde a vontade dos nubentes não pode ser levada em consideração, nem mesmo pela via do pacto antenupcial, seu regramento legal encontra-se no artigo 1641 do Código Civil de 2002.
É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. (CAHALI, 2013:464)
No caso do inciso I do artigo 1641 da norma civilista, tem-se como exemplo a ausência de partilha dos bens em casamento anterior e o casamento do viúvo enquanto não tiver sido feito o inventário. O Inciso III relata os suprimento judicial para o casamento, assim se um menor de 18 anos que tenha o consentimento negado por qualquer um dos genitores poderá conseguir contrair núpcias via consentimento judicial, logicamente desde que os pais não aprovem por um motivo injustificado, contudo, mesmo obtendo autorização judicial aquele menor somente poderá se casar sob o regime da separação de bens.
E o que nos interessa naquilo que se disserta é a obrigatoriedade do regime de separação de bens para os maiores de 70 anos, conforme leciona o artigo 1641, inciso II. O Código Civil de 1916 trazia que tanto o homem com mais de 60 anos e a mulher com mais de 50 anos, o que fora abandonado pela norma de 2002, igualando a idade tanto para homem ou mulher. Até a edição da lei 12.344/2010 a idade era de 60 anos, assim depois de sua entrada em vigor o artigo 1641, II do Código Civil de 2002, passa a vigorar com a redação em 70 anos.
Tal restrição fora justificada por seu caráter protetivo, ou seja, evitar que os maiores de 70 anos venham ser vítimas de casamento por mero interesse, que sejam sujeitos passivos do popular “golpe do baú”.
No desenvolver do trabalho, serão analisadas essas e outras justificativas que levam o maior de 70 anos teve sua autonomia privada cerceada no que tange a casar sob o regime de bens que melhor aprouver, bem como se demonstrará que essa preocupação patrimonialista leva a uma declaração de incapacidade sem sentença judicial, o que não é permitido pelo ordenamento jurídico.
Lembrando que em todos os casos do artigo 1641 civilista, a Súmula 377 deve ser aplicada, ou seja, os bens adquiridos onerosamente por ambos os cônjuges em enforco comum devem entrar na comunhão.