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Análise introdutória da teoria da actio libera in causa no Direito brasileiro

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31/01/2015 às 22:00

Resumo:


  • A teoria da actio libera in causa é aplicada para imputar responsabilidade penal a indivíduos que cometeram crimes enquanto estavam em estado de embriaguez, mesmo que estivessem inimputáveis no momento da ação.

  • O Código Penal Brasileiro adota a teoria da actio libera in causa, permitindo a responsabilização penal em casos de embriaguez voluntária ou culposa, exceto quando proveniente de caso fortuito ou força maior.

  • A jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros (STJ e STF) tem aplicado a teoria da actio libera in causa, considerando a possibilidade de imputar o crime a quem, mesmo embriagado, deu causa ao resultado ilícito, desde que a embriaguez não seja fruto de caso fortuito ou força maior.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. LIMITES E CRÍTICAS

As principais críticas e limites impostos a teoria da actio libera in causa condizem com a colisão da mesma com a teoria do delito. A ficção jurídica criada para se punir o agente delituoso é empregado de forma desfavorável ao réu (CONTI, 2013), em detrimento que de acordo com a teoria do delito não seria possível responsabilizar esses agentes.

O artifício da actio libera in causa depende mais de uma política criminal porque aumenta o poder punitivo do estado. Segundo CONTI,

“À luz de um Estado Democrático de Direito, intui-se que o emprego de tal artifício deve se dar de maneira estrita, racional e proporcional, em conformidade com o núcleo essencial dos direitos fundamentais e sem afrontar os princípios constitucionais penais, sob pena de arbitrariedade e ilegitimidade da ingerência estatal”.

CONTI em sua dissertação separa esses limites em alguns quesitos: voluntariedade do ato antecedente; nexo de causalidade; previsibilidade objetiva do resultado; inaplicabilidade da teoria da vontade residual. E logo após traça algumas críticas: do apego à realidade como garantia do indivíduo; responsabilidade penal objetiva e culpa versari in re illicita.

3.1. Limites

3.1.1. VOLUNTARIEDADE DO ATO ANTECEDENTE

Aqui o limite se impõe na vontade do agente em se embriagar. Os casos fortuitos ou de força maior são eliminados da possibilidade de se imputarem responsabilidades a alguém. Contudo resta lembrar que não é crime colocar-se em estado de embriaguez, sem que haja o resultado, sendo impossível punir alguém por um resultado que não ocorreu.

Aqui, “[...] somente as ações que efetivamente tenham sido livres em sua causa (isto é, no ato antecedente) poderão ser punidas através da teoria ora em estudo. (CONTI, 2013)” Isso significa que não haverá punição para os casos fortuitos ou de força maior em que seja inevitável o estado de ebriez. Então, ainda com CONTI, a teoria da actio libera in causa “[...] fica restrita ao contexto da embriaguez preordenada e da embriaguez não acidental, seja esta última culposa ou voluntária (dolosa)”.

3.1.2. NEXO DE CAUSALI DADE

É necessário um vínculo de causa-efeito entre o ato de embriagar-se e os resultados supervenientes. A causa antecedente tem que ser de fato a causa da causa subsequente que resultou no crime.

Conclui-se com CONTI,

“Não sendo possível estabelecer tal liame de consequencialidade, não será possível responsabilizar o agente pelo ato antecedente, ainda que ele o tenha praticado dolosamente e mesmo que ele quisesse que com isso o posterior resultado fosse implementado (preordenação). Nesse caso, não há que se falar sequer em tentativa, uma vez que o ato antecedente, em si mesmo considerado, pode no máximo configurar ato preparatório e, portanto, impunível”.

3.1.3. PREVISIBILIDADE OBJETIVA DO RESULTADO

Aqui se depreende que o resultado não basta ter ocorrido após o agente se colocar em estado de inimputabilidade, é fundamental que esse resultado seja previsível na esfera de possibilidades do agente de se precaver da ocorrência do evento delituoso. A previsibilidade objetiva do resultado torna-se conditio sine qua non para se fundamentar a actio libera in causa. E é através desse argumento que se contraria a tão repudiada responsabilidade penal objetiva.

CONTI concordando com QUEIRÓS, diz que

“[...] somente poderá ser imputado ao agente aquele resultado cuja ocorrência derive naturalmente da colocação em estado de inconsciência, em conformidade com as regras de experiência. Deve o agente enquanto ainda está consciente, ter possibilidade de realizar a representação mental das prováveis consequências do ato antecedente”.

Então, o agente deve inexoravelmente deter a possibilidade de antever a ocorrência do resultado específico e determinado, não bastando apenas a previsão genérica que seria possível ocorrer o fato subsequente ao ato de embriagar-se. Se não houver essa ligação, o agente poderia ser punido por quaisquer ações que cometesse em estado de torpor, sendo punido apenas por estar simplesmente neste estado de ebriez, dispensando o dolo e a culpa. Haveria assim, uma espécie de presunção do dolo ou da culpa.

De acordo com a doutrina majoritária, não se depende da voluntariedade do ato de se colocar em estado de inimputabilidade, sendo fundamental que o agente deseje o resultado do ilícito superveniente, ao menos que o mesmo seja previsível no momento da prática do primeiro ato, são os casos de dolo ou culpa no antecedente momento de embriagar-se.

Contudo, o CP atual no art. 28, II diz que “Não excluem a imputabilidade penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”. Sendo que a exposição de motivos de 1940 da parte geral admite a teoria do actio libera in causa. Para NORONHA apud CONTI, “ao se contentar com o simples fato de o agente ter se embriagado de maneira livre para possibilitar sua imputação, nosso legislador acabou consagrando inadmissível hipótese de responsabilidade objetiva”.

3.1.4. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA VONTADE RESIDUAL

Aqui alguns doutrinadores dizem que resta uma vontade mínima quando o agente delinque. Isto quer dizer que subsistiria no estado de inconsciência um agir mínimo do agente que o conduz à prática delituosa. A embriaguez para esses adeptos nunca geraria absoluta ausência de vontade.

Para HUNGRIA apud CONTI,

“Diante de todas essas considerações, o legislador brasileiro não podia ter hesitado em equiparar a vontade do ébrio à vontade condicionante da responsabilidade e, consequentemente, da punibilidade. No caso da embriaguez preordenada, o agente responderá sempre a título de dolo (e com a pena agravada); no caso da embriaguez culposa, responderá por crime doloso ou culposo, segundo as indicarem as circunstâncias ou, seja, segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe no estado de ebriedade. Não é necessária uma relação finalística entre a embriaguez e a conduta aberrante: basta o nexo de causalidade entre aquela e esta, de par com a previsão ou possibilidade de previsão dos anarquizantes efeitos da ingestão do álcool ou substância análoga.”

Aqui a teoria do actio libera in causa tornar-se-ia ilimitada. Não haveria qualquer impedimento em se punir um agente por eventos antijurídicos após a embriaguez voluntária ou culposa, mesmo que não fosse possível prever os resultados supervenientes, restando apenas que fosse possível prever que poderia infringir alguma lei.

NORONHA apud CONTI, argumenta que se a vontade residual realmente existisse, não precisaríamos da tal teoria da actio libera in causa já que todo agente atuaria de forma volitiva ao praticar os crimes, podendo ser aplicada a teoria clássica do delito sobre dolo ou culpa.

Segundo BITENCOURT (2014, p. 493), “Hungria confundia o sentido da actio libera in causa, com a arbitrária política criminal adotada do Código Penal de 1940 relativamente aos efeitos da embriaguez, que consagrava odiosa reponsabilidade penal objetiva”.

Conclui-se que esta vontade residual remonta a tempos lombrosianos, sendo uma aberração lógica para os ditames atuais das ciências em geral. Além do que, com CONTI,

“[...] mesmo que se admita a existência de alguma vontade a reger o comportamento do indivíduo inconsciente, o injusto eventualmente praticado nessa condição não poderá ser considerado culpável, já que ainda que houvesse voluntariedade quanto ao ato subsequente, evidente que o agente tem capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Assim, quer em sede de tipicidade, quer em sede de culpabilidade, impõe-se a absolvição”.

3.2. Críticas

3.2.1. DO APEGO À REALIDADE COMO GARANTIA DO INDIVÍDUO

Ao agente só pode ser atribuído os fatos cometidos com dolo ou culpa. Nullum crimem sine conducta (não há crime sem conduta). Segundo ZAFFARONI apud CONTI,

“O princípio nullum crimem sine conducta é uma garantia jurídica elementar. Se fosse eliminado, o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc. Neste momento de nossa cultura isso parece suficientemente óbvio, mas, apesar disto, não faltam tentativas de suprimir ou de obstacularizar este princípio elementar”.

A partir dessas premissas então seria impossível imputar culpa a alguém enquanto está privado de sua consciência, não haveria sequer crime, porque não haveria vontade. No entanto a actio libera in causa desloca a imputabilidade para o momento anterior ao estado de inimputabilidade em que o agente atua volitivamente para se colocar em estado de embriaguez.

Infere-se então que a actio libera in causa atua como uma ficção jurídica para transformar o que não seria possível de punir em punível. Resta entender que a teoria em questão depende de política criminal para existir e delimitar seus parâmetros, e que essa política deve se ater ao restrito entendimento que deva ser utilizada a teoria para casos mais gravosos para, assim, evitar punições indevidas a lesões de bens jurídicos de menor valor social interferindo em malefício do réu.

3.2.2. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA E CULPA VERSARI IN RE ILLICITA

Em tempos passados o simples resultado já era motivo para alguém ser punido, dependendo apenas de um nexo de causalidade para tanto. Atualmente, com o acréscimo do princípio da culpabilidade, o agente só pode ser punido se agir com culpa ou dolo. Quando esse princípio é violado, entende-se que houve uma responsabilização objetiva.

O versari in re illicita corresponde a possibilidade de “[...] responsabilizar o agente pelo simples fato de a conduta que causou o resultado ter sido voluntariamente praticada” (CONTI, 2013). A aplicação desse princípio pode ampliar, segundo ZAFFARONI E PIERANGELI, o poder estatal de punição. Pareceria uma espécie de culpabilização infinita, com uma série de responsáveis. Isto é, responsável não é só quem mata, mas também quem fabricou a arma.

Para a doutrina, quando o agente que não se colocou em estado de embriaguez de forma preordenada é passível de responsabilização, existe um caso de versari in re illicita. No caso seriam a embriaguez voluntária e a embriaguez culposa. Argumentando que se não há consciência não há crime.

Ao se respeitar o princípio da culpabilidade, restam apenas duas alternativas ao legislador, segundo CONTI: a primeira em responsabilizar o autor a título de culpa pelo crime em situação de inconsciência (desde que haja previsão legal para tanto); ou criar um tipo penal para o agente que se colocar em tal estado de inimputabilidade e que cometa um resultado danoso supervenientemente.

TELES apud CONTI entende que a segunda opção seria mais plausível, buscando a tipificação da reprovabilidade de se colocar em estado de embriaguez preordenadamente, voluntariamente ou culposamente e que assim cometa um fato tipificado no código.

O Código Penal Português, citado por RIBEIRO, traz a seguinte redação, atendendo à segunda opção segundo CONTI (2013):

“quem, pela ingestão de voluntária ou por negligência, de bebidas alcoólicas ou outras substâncias tóxicas, colocar-se em estado de completa inimputabilidade e, nesse estado, praticar acto criminalmente ilícito, será punido com prisão de até um ano e multa de 100 dias.

Aqui o código português não se importou em “[...] conciliar a actio libera in causa com o princípio da culpabilidade na embriaguez voluntária e culposa” (CONTI, 2013). Aqui, os lusitanos apenas adotaram uma política criminal em que como exceção, essa conduta seria punida objetivamente.

O Código alemão, segundo CONTI, trás solução mais adequada:

“No direito penal alemão, pretendendo contornar o aspecto de quem bebe, voluntariamente, mas sem a intenção de cometer crimes, nem assumindo o risco de fazê-lo, criou-se figura típica específica: ‘Quem se coloque em um estado de embriaguez premeditada ou negligentemente por meio de bebidas alcoólicas ou de outras substâncias estimulantes, será punido com pena privativa de liberdade de até cinco anos ou com multa quando se cometa neste estado um fato ilícito e por esta causa não possa ser punido, porque como consequência da embriaguez seja inimputável’ (art. 323a, CP alemão). A pena não poderá ser superior àquela que seria imposta pelo fato cometido no estado de embriaguez (art. 323a, II, CP alemão).”

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ZAFFARONI apud CONTI prefere a primeira alternativa em responsabilizar os agentes da actio libera in causa apenas por culpa, se esta estiver prevista no ordenamento. Para ele seria atípico o dolo, porque este não seria atual no momento de torpor em que o crime é cometido, caindo sobre a responsabilidade penal objetiva. Já para a tipicidade culposa, seria inútil utilizar a teoria em discussão, porque ao tipo culposo não é exigido que a culpa seja concomitante ao resultado.

Não precisaria então utilizar a referida teoria na situação culposa porque bastaria a violação do dever de cuidado que tenha causado um resultado danoso para que o agente seja responsabilizado, caso isso possa ser previsto. Somente nos casos dolosos que seria necessária a antecipação da análise da imputabilidade e a vontade subjetiva para poder se punir alguém.

No entanto ZAFFARONI apud CONTI entende que “Não havendo tipicidade objetiva [...], não esse pode conceber o dolo”. Isso porque nesse momento apenas há a vontade de embriagar-se e o desejo enquanto embriagado de cometer o crime. Para o autor não é possível atribuir dolo ao desejo porque não há tipificação para tanto.

Para o mestre, segundo as palavras de CONTI,

“[...] não seria possível, dentro da tipicidade dolosa, antecipar o juízo de imputabilidade para o momento do ato antecedente de se colocar em estado de inconsciência, pois o sujeito sóbrio não sabe do que será capaz de fazer quando totalmente entorpecido”.

Para Zaffaroni o indivíduo inconsciente não teria domínio final do fato delituoso. Isto é, não possuiria controle sobre si mesmo enquanto embriagado.

CONTI ousa refutar essa ideia a partir da tese do instrumento de si mesmo, quando o agente de forma mediata embriaga-se para enquanto embriagado execute os crimes antes premeditados de forma imediata. O autor sóbrio seria o mentor do crime cometido enquanto embriagado. Assim perfeitamente o agente poderia ser culpado a título de dolo.

CONTI conclui seu pensamento:

“Em suma, nosso entendimento é no sentido de que a actio libera in causa deveria ficar restrita aos delitos preordenados. Fora disso, concordamos com Zaffaroni quanto à desnecessidade de se recorrer à teoria nos casos em que o agente induz em si a inconsciência de maneira voluntária ou culposa, sem visar à prática de delito, hipótese em que responderá normalmente por crime culposo, desde que haja previsi-bilidade objetiva do resultado porquanto já caracterizada a quebra do dever de cuidado”.

3.2.3. ATENTADO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

É bom considerar que críticos dessa teoria atribuem que a partir da Constituição Federal de 1988 este instituto da actio libera in causa resta desatualizado. Devendo este estar subordinado aos preceitos da dignidade humana, respeitar o princípio da anterioridade, da culpabilidade, etc.

Segundo RIBEIRO, “Cabe ao legislador brasileiro a tarefa de atualizar o diploma penal à luz da Constituição Federal de 1988, a fim de tornar legítima uma punição merecida”. O legislador brasileiro deve buscar soluções em nível de política criminal para colocar o instituto da actio libera in causa de acordo com as leis constitucionais vigentes respeitando os direitos fundamentais atribuídos às pessoas no Brasil.

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Sobre o autor
André Porto

Bacharel em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Servidor Público do Estado do Espírito Santo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, André. Análise introdutória da teoria da actio libera in causa no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4231, 31 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30884. Acesso em: 19 dez. 2024.

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