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Progressão por salto:

uma análise à luz da dignidade da pessoa humana e das finalidades da pena no direito brasileiro

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19/08/2014 às 15:15
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5 DA PROGRESSÃO POR SALTO

A progressão por salto seria a hipótese daquele que, cumprindo pena em regime fechado, progrediria para o regime aberto, sem passar pelo intermediário, ou seja, sem cumprir pena no regime semiaberto. Esta possibilidade é vedada pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro. Renato Marcão (2012, p. 71) corroborando com o anteriormente exposto, nos ensina que “Não se admite progressão por salto, com a passagem de regime mais rigoroso para o mais brando, sem estágio no regime intermediário, mesmo na hipótese de já ter cumprido o condenado tempo de pena suficiente no regime fechado”.

Foi visto anteriormente, na análise dos dados sobre os estabelecimentos penais no Brasil, que é ínfima a quantidade de colônias agrícolas, industriais ou similares destinadas ao cumprimento de pena em regime semiaberto, o que faz com que muitas vezes não haja vaga nesses locais para os custodiados provenientes do regime fechado. Este fato fez com que fossem criadas pela jurisprudência e pela doutrina duas possibilidades de progressão por salto: para parte da doutrina e jurisprudência, quando não houver vaga em estabelecimento agrícola destinado à custódia de regime semiaberto, o preso deverá cumprir mais 1/6 da pena em regime fechado, como se no semiaberto estivesse, progredindo, posteriormente, para o regime aberto. Nos ensina Fernando Capez o seguinte:

Só há um caso em que a jurisprudência admite a progressão de regime com salto: quando o condenado já cumpriu 1/6 da pena no regime fechado, não consegue a passagem para o semi-aberto por falta de vaga, permanece mais 1/6 no fechado e acaba por cumprir esse 1/6 pela segunda vez. Nesse caso, entende-se que, ao cumprir o segundo 1/6 no fechado, embora estivesse de fato nesse regime, juridicamente se encontrava no semi-aberto, não podendo alegar que houve, verdadeiramente um salto (CAPEZ, 2009, p. 383 e 384).

Contudo, é correto que o preso, mesmo tendo cumprido todos os requisitos legais para a concessão da progressão de regime, deva continuar no regime fechado, suportando a ineficiência do próprio Estado? Diante desta inquirição, outra parte da doutrina e da jurisprudência também prevê uma progressão por salto para casos de ausência de vagas no estabelecimento agrícola, mas da seguinte maneira: o condenado deverá ser posto no regime mais benéfico, ou seja, no regime aberto, sem a necessidade de aguardar no regime mais gravoso. É esse o entendimento já pacificado pelo STJ. Vejamos:

O C. STJ, entretanto, pacificou jurisprudência no sentido de que, excepcionalmente, não havendo vagas em local compatível com o regime semiaberto, pode o paciente aguardar a vaga em regime aberto domiciliar.

É exatamente essa a situação dos presentes autos. Assim, diante do exposto é de ser concedida da presente ordem no sentido de ser autorizado o paciente a aguardar no regime aberto domiciliar a existência de vaga em regime semiaberto. A liminar foi deferida a fls. 78/80 (STJ, Habeas Corpus 170925, relator Min. Celso Limongi, julgado em 03/03/2011).

Resta-nos, agora, analisar qual dos dois posicionamentos supra expostos mais se coaduna com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Com os direitos e garantias fundamentais, previstos constitucionalmente, e com a função ressocializante da progressão de regime.

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental da República Federativa do Brasil, de acordo com o art. 1.º, III, da CRFB/88. Tal princípio pode ser considerado como o fundamento de todos os direitos humanos e fundamentais da pessoa humana, de modo que todo o ordenamento jurídico brasileiro deve ser inspirado, interpretado e aplicado à luz desse princípio. A relevância do princípio da dignidade da pessoa humana é tão ampla nos dias atuais, que muitos o consideram como um direito absoluto. É assim que entende Alice Acioli Teixeira Baracho (2009, p. 1): “casos há em que a dignidade da pessoa humana deve ser encarada como um direito absoluto, devendo ser deste modo exercida irrestritamente. À guisa de exemplo podemos citar a proibição à tortura, de ser escravizado, ao tratamento desumano e degradante” (grifo nosso).

A realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros é estarrecedora. Conforme pudemos concluir pela exposição dos dados oferecidos pelo Ministério da Justiça, o número de custodiados é quase que o dobro do número de vagas das penitenciárias. Esta situação de superlotação carcerária, aliada ao descaso do Poder Público e da sociedade, faz com que a vida no cárcere seja uma questão de verdadeira sobrevivência, em que o indivíduo é submetido a inimagináveis abusos, sejam eles sexuais, morais, materiais etc.

Diante da constatação acima exposta, não podemos aceitar o discurso de que o preso deve esperar em regime fechado o surgimento de uma vaga no estabelecimento destinado ao regime semiaberto, quando o mesmo já tenha cumprido todos os requisitos para a progressão, pois, nos dias atuais, a observância da dignidade da pessoa humana se faz imperativa, tanto no plano interno do Estado, quanto no plano internacional. O preso, antes de mais nada, é uma pessoa humana que precisa ter a sua dignidade resguardada, sendo assim, deixa-lo em regime fechado, quando da ausência de vagas no semiaberto, afetaria negativamente uma enorme gama de direitos fundamentais, principalmente no que se refere ao caráter individualizador e humanitário da pena. Vale aqui transcrever as palavras de Cezar Roberto Bitencourt, ao tratar sobre a crise do sistema prisional:

Nos últimos tempos houve significativo aumento da sensibilidade social em relação aos direitos humanos e à dignidade do ser humano. A consciência moral está mais exigente nesses temas. Essas maior conscientização social não tem ignorado os problemas que a prisão apresenta e o respeito que merece a dignidade dos que, antes de serem criminosos, são seres humanos (BITENCOURT, 2010, p. 155 e 156).

Imaginemos o seguinte: é justo que o indivíduo enfermo suporte, sozinho, a ineficiência do Estado em promover um sistema de saúde eficiente? Ou melhor seria que o Estado arcasse com o seu tratamento, cumprindo o seu dever de prestação efetiva do serviço de saúde? Acreditamos que a segunda situação é a que mais se compatibiliza com os imperativos de justiça, pois a primeira fere frontalmente os direitos fundamentais e a própria dignidade daquele adoentado. Sem mais delongas, o mesmo raciocínio deve ser aplicado ao preso: ele não pode suportar, individualmente, a ineficiência do Estado. Se não há vaga no regime semiaberto, que o mesmo seja colocado em regime aberto. Sendo assim, defendemos o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, na aplicação da progressão por salto, já anteriormente explicitada.

Por fim, não podemos deixar de analisar tal problemática sob o enfoque da finalidade de ressocialização do apenado. A progressão do regime é um instrumento utilizado para readaptar, aos poucos, o apenado ao convívio social, sem desprezar o caráter punitivo da pena que lhe foi imposta. Quando o indivíduo salto do regime fechado diretamente para o aberto, prejudica-se simultaneamente as duas finalidades da pena: no que toca a punição do agente criminoso, o sentimento de castigo imposto ao mesmo não será eficiente, visto que receberá um benefício que ainda não teria o mérito de receber. Também, no que se refere a prevenção, individual e coletiva, a readaptação do apenado não passará de mera utopia, visto que, de súbito, sairá de um regime de privação total de liberdade, para outro cuja liberdade é quase que total. Além disso, a coletividade terá a percepção de que nenhuma medida eficaz de punibilidade foi imposta ao criminoso.

Portanto, a progressão por salto não passa de um paliativo aplicado pelo Poder Judiciário para suprir a ineficiência do Estado-Administrador. Contudo, tal solução frustra explicitamente as finalidades da pena privativa de liberdade, principalmente no que concerne a ressocialização do apenado.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o breve estudo aqui apresentado, mostra-se necessário fazer algumas considerações acerca dos principais temas abordados. Foi apresentado neste trabalho o conceito de pena, do qual se conclui que é a resposta estatal, aplicada em sentença condenatória transitada em julgado, àquele que comete fato tipificado como crime.

Também, foram apresentadas as duas finalidades da pena, visto que se adotou, no Brasil, a teoria mista ou eclética. Assim, vimos que aquela possui uma finalidade punitiva e outra preventiva, sendo esta subdividida em prevenção individual, que ocorre através da ressocialização do apenado, e prevenção coletiva, que se dá pelo temor infligido à sociedade. Destarte, restou claro que a pena possui  um caráter ressocializador e que vários instrumentos são utilizados para a concretização de tal finalidade, como, por exemplo, a progressão de regime de pena privativa de liberdade.

Posteriormente, tratamos da proposta ressocializador da Lei de Execuções Penais, visto que a mesma traz em seu bojo normativo diversos direitos e garantias ao apenado, além de instrumentos de readaptação social, como a remição pelo trabalho e a progressão de regime. Contudo, ao analisarmos os dados quantitativos referentes aos estabelecimentos prisionais e aos acusados, concluímos que a ressocialização pretendida pela LEP não passa de mera utopia, devido à superlotação nos presídios, cumulada com o descaso do Poder Público e da sociedade. A realidade nestes locais é terrível, pois os apenados vivem submetidos a uma truculenta violação dos seus direitos fundamentais e, consequentemente, da sua própria dignidade.

Sem embargo, apresentamos de forma sucinta o instituo da progressão de regime, utilizado na busca da readaptação social do condenado, em que o mesmo, aos poucos, é realocado ao convívio social, quando cumpre os requisitos objetivos e subjetivos previstos em lei. Atualmente, nenhum condenado pode ser submetido a um regime de cumprimento de pena privativa de liberdade integralmente fechado.

Ainda sobre a progressão de regime, vimos que é vedada a chamada progressão por salto, em que o apenado passa do regime mais gravoso para o regime mais benéfico, sem passar pelo intermediário (semiaberto). Todavia, diante da ínfima quantidade de colônias agrícolas, industriais ou similares destinadas ao regime semiaberto, a doutrina e a jurisprudência foram obrigadas a admitir uma possibilidade de progressão por salto, visto que é constante a ausência de vagas em estabelecimentos agrícolas de regime semiaberto. Assim, admite-se que, diante da inexistência de vagas naquele regime intermediário, passe o apenado do regime fechado diretamente para o aberto. Vale salientar que o STJ, em jurisprudência já pacificada, não admite que o condenado espere em regime fechado o surgimento de vagas em regime semiaberto, devendo o mesmo passar, de imediato, para o aberto. Este posicionamento nos parece o mais acertado, de acordo com os reclames constitucionais e com o princípio da dignidade da pessoa humana. É inconcebível admitir que o apenado suporte o desdém e a negligência do Estado. Além disso, o cárcere, nas condições em que se encontra hodiernamente, não abriga as condições mínimas de uma vida digna de indivíduo, por isso, não se pode admitir que o mesmo deva permanecer neste local, depois de cumpridos todos os requisitos para a concessão do regime mais benéfico.

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Outrossim, entendemos que a progressão por salto, mesmo diante das louváveis intenções da jurisprudência, acaba por frustrar ambas as finalidades da pena, pois o agente criminoso não será punido da forma devida, a readaptação social através da progressão gradativa do regime não se concretizará, visto que, de súbito, o apenado é posto em regime de quase total liberdade e, por fim, a coletividade vivenciará o mais desprezível sentimento de impunidade, o que, segundo nossa opinião, ocasiona efeitos desastrosos nas relações sociais.

Finalmente, concluímos que a progressão por salto, nos moldes do entendimento do STJ, é a solução mais acertada no que se refere ao respeito à dignidade dos apenados, diante da realidade estarrecedora dos estabelecimentos prisionais hodiernos, que, longe de recuperar, deterioram o mínimo de dignidade e humanidade dos que a eles estão submetidos. Todavia, tal medida não é a ideal, pois anula todas as finalidades propostas pela aplicação da pena. O correto, na verdade, seria que o Estado, em todas as suas esferas de poder, oferecesse a esta problemática a atenção que ela merece.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, L. A. D.; JUNIOR, V. S. N. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Verbatim, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 01 jul. 2013.

______. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ, 7 dez. de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 24 ago. 2013.

______. Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF, 11 jul. 1984. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 24 ago. 2013.

______. Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Brasília, DF, 25 jul. 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em: 24 ago. 2013.

BARACHO, A. A. T. A dignidade da pessoa humana pode ser considerado um direito absoluto? Disponível em: < http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20091030101016767&mode=print> Acesso em: 25 ago. 2013.

BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CAMARGO, V. Realidade do Sistema Prisional no Brasil. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, IX, n. 33, set 2006. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1299>. Acesso em: 24 ago. 2013.

CAPEZ, F. Curso de Direito Penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARCÃO, R. Curso de Execução Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

VIEIRA, L. M.M. A efetividade da função ressocializador da pena privativa de liberdade em face da lei de execução penal. Disponível em: <http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=1663&idAreaSel=4&seeArt=yes>. Acesso em: 24 ago. 2013.


Nota

[1] http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D

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Sobre o autor
Jimmy Matias Nunes

Advogado graduado pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB e pós - graduando em Direito Processual Civil pela UNINTER.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Jimmy Matias. Progressão por salto:: uma análise à luz da dignidade da pessoa humana e das finalidades da pena no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4066, 19 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31087. Acesso em: 27 abr. 2024.

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