A judicialização da saúde e seus impactos no Direito e no orçamento

08/09/2014 às 14:30
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O artigo visa à rediscussão da interpretação mais harmoniosa entre mínimo existencial e reserva do possível, ante balizas mais factíveis com a Constituição e o orçamento público.

Resumo

            O artigo visa à rediscussão de um tema há muito debatido, sem perder todavia o enfoque nos principais problemas e estratégias de solução suscitadas pela academia. É preciso pacificar a interpretação mais harmoniosa com a Constituição entre mínimo existencial e reserva do possível, ante balizas mais factíveis com o orçamento público brasileiro.

Sumário

 

 

1 Introdução; 2 Óptica constitucional e justiça social; 2.1 Questões de hermenêutica e breve divagação teórica; 2.2 Ativismo judicial, orçamento público, ingerência estatal e corrupção; 3 Conclusão; Referências.

1 Introdução

           

O problema atual da judicialização de questões que originariamente seriam atinentes à saúde pública, acaba cada vez mais transpassando a competência do Poder Executivo, e recaindo sobre o Judiciário. Ao mesmo tempo em que isso acontece, numa tentativa de fazer valer o mandamento constitucional, adicionam-se também ingredientes imprevisíveis à mistura que sustenta e engessa o orçamento público, tanto a nível federal, quanto estadual e municipal; resolve-se um problema local, mas gera-se outro, por sua vez, global.

            Segundo estudos da Universidade de Harvard[2], a judicialização apenas seria potencialmente proveitosa se servisse para melhorar de forma geral as condições precárias em que os menos favorecidos são tratados, sem que para isso fosse preciso desviar recursos de outros programas importantes, indispensáveis exatamente à população mais carente. Do contrário, as demandas judiciais produziriam – como de fato produzem –, no máximo, um efeito neutro.

            Ainda segundo a mesma pesquisa acadêmica, haveria outra saída: alterar disposições Constitucionais e legais no intuito de possibilitar um alargamento dos recursos destinados ao orçamento da saúde, ou realocar os já existentes a partir de recursos de programas não fundamentais aos mais carentes – embora seja bastante difícil e até ingênuo apontar que tal programa “dispensável” exista. O que acaba ocorrendo é uma realocação camuflada, na tentativa de mascarar os setores mais prejudicados, ou impossibilitar a identificação dos grupos afetados.[3]

            No Brasil, há uma questão jurídica grave que permeia essa discussão.

De um lado, o Estado aborda a teoria da reserva do possível como principal meio de defesa, afirmando que não é possível executar ordens judiciais nesse sentido sem prejudicar o andamento da máquina pública, podendo ocasionar problemas para a ordem econômica nacional, além de ser impossível fornecer o mesmo medicamento de alto custo, e.g., para todos que dele necessitam – em grave violação reflexa ao princípio da isonomia.

            Por outro lado, destaca-se a idéia, abraçada pela Carta Política, do mínimo existencial, que busca, segundo o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurar direitos básicos do cidadão; e a saúde, por certo, é um deles. Para os seus defensores, o Estado não pode negar o exercício de um direito fundamental, por isso, em caso de negligência da Administração Pública, deve o Poder Judiciário, em sintonia com o sistema de pesos e contrapesos, compeli-la a efetivar tal direito.

            Há também de se reconhecer a dificuldade dos operadores do Direito de buscar argumentos sólidos de outras áreas do conhecimento. Como o Ministro Joaquim Barbosa afirmou em certa ocasião, “o Direito não se basta”; indispensável que seja estabelecido um diálogo no intuito irremediável de conhecer e equacionar melhor os impactos de decisões judiciais travestidas de políticas públicas.

            Um fato relevante que muitas vezes passa despercebido é o de mais de 90% das demandas judiciais sobre o assunto estarem concentradas em localidades ricas.[4] Pessoas de baixa renda, ou de cidades com índices mínimos de desenvolvimento social dificilmente vão ao judiciário reclamar seus direitos. Ou seja, se o nível de judicialização está intimamente ligado ao IDH, e se a busca premente é por medicamentos, muitas vezes sequer existentes na lista do SUS, ou mesmo no país porque não foram aprovados pelo Ministério da Saúde, não se pode negar que há indicadores expressivos de que a judicialização da saúde criou também um ciclo vicioso, onde magistrados indiretamente tiram de quem não tem, para dar a quem – sob uma óptica da disparidade social – “já tem”, quando deveria ser o contrário. Como na maior parte das vezes as demandas são individuais, e não coletivas, almejando um objetivo plural, essa situação se agrava, já que recursos destinados aos mais carentes retroalimentam aqueles que têm maior acesso a um advogado – seja ele público ou privado – e ao judiciário.

De fato a judicialização da saúde impacta gravemente o orçamento público brasileiro, transformando o judiciário em um efetivador de políticas públicas ante a má gerência dos administradores do sistema, mas ainda é para alguns uma política incipiente, inadequada e incongruente a nível social global, precisando, por isso mesmo, ser revista; o que esse grupo frisa é que saneamento, saúde básica e programas de vacinação dão lugar aos medicamentos de alto custo para indivíduos, algumas vezes, já privilegiados.[5]

2 Óptica constitucional e justiça social

Fazer justiça a todo custo talvez seja quase sempre uma injustiça em si.

 

"Para litígios envolvendo a saúde produzir um impacto social positivo no Brasil, esse modelo precisaria ser modificado de várias maneiras. Os juízes teriam de ser mais restritivos na interpretação do direito à saúde. Eles precisam reconhecer que os recursos são limitados e as prioridades precisam ser definidas, e que a facilidade de se acessar o Judiciário não é um critério justo para a alocação de recursos para a saúde. Tribunais também precisariam exigir que as autoridades de saúde fornecessem justificativas claras e racionais para as prioridades que estabeleceram, e deveriam interferir apenas quando falhassem nessa tarefa. Os juízes teriam que prestar especial atenção ao fato de se os programas de saúde do governo pretendem reduzir as sombrias desigualdades na saúde prevalente em todo o país, tal e qual a Constituição promete. O setor jurídico também poderia ajudar. Seria ingênuo pedir advogados privados para parar de representarem seus clientes em melhor situação numa busca por terapias caras e complexas. Mas não seria um exagero exigir que advogados públicos, pelo menos focassem em representar os interesses atinentes à saúde dos menos favorecidos".[6]

            Contudo, sob a óptica Constitucional, ao se negar um tratamento ou um medicamento, seja a quem for, coloca-se em xeque o próprio espírito da Constituição. Negar isso seria o mesmo que afirmar que ela não pretendia cumprir tudo que prometeu, mormente no que tange aos direitos sociais. A mens legis do art. 196 da Carta Magna foi garantir um acesso universal e digno ao cidadão brasileiro.

“A formulação e implementação de políticas públicas pelos Poderes Executivo e Legislativo, notadamente aquelas destinadas a garantir os chamados direitos de segunda dimensão¹ (direitos econômicos, sociais e culturais), depende, em grande parte, de opção política e de disponibilidade orçamentária e financeira do Poder Público, o qual poderá, em tese, se eximir de implementar total ou parcialmente tais políticas em razão de falta ou insuficiência de recursos financeiros. Entretanto, com a força normativa conquistada pela Constituição nos últimos anos, as normas constitucionais passaram a ser dotadas do caráter de imperatividade, com aplicabilidade direta e imediata pelo Poder Judiciário.”[7] (grifo posterior)

            Segundo José Afonso da Silva[8], “A Constituição tentou preordenar meios de tornar eficazes esses direitos, prevendo, p. ex., fonte de recursos para a seguridade social, com aplicação obrigatória nas ações e serviços de saúde [...]”. Afinal, o papel de uma Constituição é garantir a eficácia dos seus direitos fundamentais, e uma Constituição analítica como a nossa, na tentativa de lutar contra uma democracia ainda incipiente, se deu o trabalho de apontar os caminhos para tanto, sob pena de ver seus governantes desrespeitando-os.

Os mandamentos constitucionais insertos no ordenamento jurídico “[...] descrevem, mediante uma tematização consciente ou uma eloquência tácita, a demarcação de uma trégua, o esboço de uma linha demarcatória”.[9] É a divisão lógica que sustenta os pilares da democracia.

“[...] a garantia das garantias consiste na eficácia e aplicabilidade imediata das normas constitucionais. Os direitos, liberdades e prerrogativas consubstanciadas no título II, caracterizados como direitos fundamentais, só cumprem sua finalidade se as normas que os expressem tiverem efetividade. A Constituição se preocupou com a questão em vários momentos. O primeiro em uma norma-síntese em que determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Não é, pois, só a garantia dos direitos políticos, mas de todos os direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos. Essa declaração pura e simplesmente por si não bastaria se outros mecanismos não fossem previstos para torná-la eficiente. [...] Por isso, revela-se, por seu alto sentido político, como eminente garantia política de defesa da eficácia jurídica e social da Constituição.” [10]

            O STF já decidiu que a teoria da reserva do possível não pode ser invocada quando o Estado mantém-se inerte na proteção aos direitos fundamentais, sem justificativa plausível.[11] Também não se desconhece o entendimento de que a prospecção de políticas públicas a partir de decisões judiciais fere o princípio da separação de poderes.

“Embora diversos autores e magistrados considerem que a interferência do Poder Judiciário na formulação e implementação das políticas públicas vai de encontro ao Princípio da Separação dos Poderes, no entendimento da Suprema Corte brasileira se os Poderes Executivo e Legislativo se mostrarem incapazes de cumprir as normas constitucionais destinadas a preservar as condições materiais mínimas de existência do indivíduo e dos cidadãos (princípios-condicão da justiça social, na definição do Ministro Celso de Mello, do STF), caberá ao Poder Judiciário intervir e assegurar o cumprimento do mandamento constitucional pelo Poder Público, de forma a garantir a todos o acesso aos bens e direitos que lhes foram injustamente negados”.[12]

No Brasil, afinal, prevalece a idéia de que todos são iguais perante a lei, ou há sempre alguns que parecem ser mais iguais do que os outros? A dúvida permanece.

Por outro lado, segundo o Ministério da Saúde, só em 2008 o gasto foi de R$ 47,6 milhões com a compra de medicamentos por determinação judicial. “Em 2002, esse valor era de R$ 2,2 milhões, o que revela a trajetória crescente desses gastos, cujo impacto no Orçamento Geral da União não pode ser desprezado”.[13]

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“A partir das considerações acima expostas, verifica-se que o acolhimento pelo Poder Judiciário de ações que visam obrigar o Poder Público a custear prestação de saúde não abrangida pelas políticas públicas tem provocado efeitos que afetam diretamente a programação orçamentária e financeira do Estado, que, por sua vez, prejudicam a formulação de políticas e o provimento de bens e serviços em outras áreas demandadas pela sociedade”. [14]

2.1 Questões de hermenêutica e breve divagação teórica

Mas será que o constituinte originário pretendia mesmo que tudo aquilo que a Carta prometia em 1988 fosse cumprido pelas gerações futuras? Ou teria sido melhor fomentar o que a doutrina constitucionalista chama de constituição suave, que é aquela que reconhece a impossibilidade de garantirem-se todos os direitos sociais, que concretiza só o básico ao qual se propõe. No caso brasileiro, o receio de desrespeito às leis – oriundo de uma histórica cultura arraigada no “jeitinho” – talvez tenha sido o que os forçaram a elaborar o coração de uma nação maior do que poderia ser, com mais garantias que o orçamento, por exemplo, poderia suportar. Talvez já pressupondo que boa parte não seria cumprida, preocuparam-se em pecar pelo excesso.

Entretanto, dizer que se tem um direito assegurado, sem ter, é pior do que não ter. Isso porque a constitucionalização simbólica, ou seja, discursos implícitos insertos com a finalidade de fortalecer laços de confiança da população com o governo, assim como anestesiá-la, sem conferir eficácia e efetividade prática ao que se defende, tem como calcanhar de Aquiles a possibilidade de ganhar justamente o contrário: a desconfiança e o descrédito total da população.[15] Exemplos clássicos podem ser extraídos de dispositivos como os descritos nos incisos XLIX e III do art. 5º da CF, que asseguram, respectivamente, o respeito à integridade física dos presos e a vedação ao tratamento desumano, degradante, tanto quanto a tortura. E na prática está longe de ser o que ocorre.

“Paradoxalmente, portanto, embora a constitucionalização simbólica, presente basicamente nos Estados periféricos [...], tenha a função ideológica de promover a confiança no Estado ou no governo (em sentido amplo), servindo-lhes como fórmula de representação retórica e álibi, ela pode converter-se, nos casos extremos de discrepância entre texto e realidade constitucionais, em um fator de promoção e desconfiança na própria figura do Estado. [...] o próprio direito como sistema de regulação da conduta cai em descrédito; o público sente-se, então, iludido; os atores políticos tornam-se ‘cínicos’.

[...]

A questão dos limites ideológicos da constitucionalização simbólica perante a ‘lealdade das massas’ pode ser relacionada com a noção de ‘regras do silêncio’ (gag rules) como mecanismos através dos quais determinados temas são excluídos da discussão jurídico-política nos sistemas constitucionais democráticos. [...] Em face da ineficiência do ‘aparelho estatal’ diante das necessidades da maioria da população há, nessas circunstâncias, uma tendência à politização dos mais variados temas, incluindo-se a discussão sobre a legitimidade da ordem social como um todo. À proporção que o sistema constitucional perde significado como ordem básica e horizonte da política, ele mesmo torna-se tema da discussão política. Enquanto mediante a ‘lealdade das massas’ o welfare state, caracterizado por ‘Constituições normativas’ põe os conflitos de classe no segundo plano ou ‘domestica-os [...], possibilitando o desenvolvimento das chamadas ‘regras do silêncio’, as experiências da constitucionalização simbólica, presentes sobretudo nos Estados periféricos, são marcadas pela incapacidade de uma superação ou controle satisfatório da questão social [...]”.[16]

Por outro lado, à época, claro, não se podia prever os possíveis desdobramentos futuros, ainda mais no tocante ao orçamento público, que se encontra diretamente atrelado ao crescimento econômico de um país.

           

2.2 Ativismo judicial, orçamento público, ingerência estatal e corrupção

Há quem defenda que a Constituição estatuiu, quanto aos direitos sociais, normas de conteúdo meramente programático, ou seja, uma norma de eficácia limitada, que não produz plenamente seus efeitos, até que haja a implementação por lei infraconstitucional das políticas públicas a serem adotadas. Isso tudo a fim de privilegiar o interesse coletivo em detrimento do particular.

“A judicialização da saúde no modelo brasileiro está criando um SUS de duas portas: uma para aqueles que vão ao Judiciário, para quem "a vida não tem preço" e conseguem assim acesso irrestrito aos recursos estatais para satisfazer suas necessidades em saúde; outra para o resto da população, que, inevitavelmente, tem acesso limitado, e mais limitado ainda pelo redirecionamento de recursos que beneficia aqueles que entraram pela outra porta.

O argumento daqueles que defendem incondicionalmente a judicialização como simples proteção da vida deve portanto ser adaptado para exprimir seu verdadeiro sentido: ‘A vida não tem preço, mas a vida de alguns tem menos preço que a vida de outros’.”[17] (grifo posterior)

É verdade, há um processo cada vez mais expressivo de "judicialização" dos percalços da sociedade. Isso no mundo todo - parece ser um processo inevitável. E que não poucas vezes parece sair pela culatra. Entretanto, o fato é que muitas vezes os magistrados não estão preparados para lidar com tais problemas, nem têm condições de responder a todas essas questões estando sempre cientes de suas consequências. Acaba dando margem ao ativismo judicial ou à autocontenção. Mas mesmo depois de estarem cientes, como nesse caso da judicialização da saúde, que informações sobre o impacto orçamentário estão surgindo mais claramente, é algo ainda muito difícil de decidir. Dizer que um juiz está fazendo o SUS desmoronar, mas estando do lado de fora, parece fácil, pois provavelmente a situação mudaria de figura se o poder e o ônus – ou melhor, o fardo – de decidir tivesse na mão de quem critica. Sem mencionar que decidir se outra pessoa vive ou morre é algo que vai muito além da cruz que qualquer juiz se propôs a carregar.

Para Morton Scheinberg?, a origem do problema está na grande demora na inclusão de novos medicamentos ou procedimentos de auxílio no controle de certas doenças na lista do SUS. Outros procedimentos diagnósticos rapidamente incorporados à prática clínica por sua eficácia também não são absorvidos pelo sistema público com a rapidez necessária. Para o especialista, “a morosidade pública, a meu ver, é o maior estímulo à judicialização, criando-se uma nova indústria entre médicos, laboratórios e advogados”.

O gráfico 4, a seguir, fornece uma dimensão exata e corrobora com a avaliação do Doutor Scheinberg, pois, como se pode verificar, no período 2002–2009 o número de fármacos constantes da lista do Componente Especializado do SUS foi acrescido de apenas 6 novos medicamentos, tendo, inclusive, apresentado variação negativa entre os anos de 2006 e 2007.

[...]

A consequência direta da inércia governamental diante do acelerado desenvolvimento tecnológico da indústria farmacêutica parece apontar para um aumento vertiginoso no número de ações judiciais e o decorrente impacto sobre o orçamento do Ministério da Saúde. Esse quadro pode ser melhor compreendido pela análise dos números apresentados no gráfico 5, em que a quantidade de fármacos incorporados ao Componente Especializado variou apenas 5% no período 2005-2009, enquanto que os valores gastos no pagamento de sentenças judiciais apresentou um crescimento superior a 33 vezes no mesmo período.

Verifica-se assim que a demora do Poder Público em disponibilizar novas formas de tratamento de doenças à população potencializa o recurso ao Poder Judiciário para a garantia do direito constitucional à saúde. ”[18] (grifo posterior)

Pressupor que um juiz está sempre cometendo uma “gafe” – senão uma teratologia jurídica – ao impor ao Estado o custeio de um tratamento médico a alguém que muito dele necessite, é também de certa forma dizer que o Sistema único de Saúde funciona, e transferir ao judiciário o ônus pelo seu caos. É evidente que a corrupção e a ausência de administradores competentes, de médicos sérios, são, de longe, as principais causas. O que ninguém sabe responder é: se não tivessem saído dos cofres públicos quase um bilhão de reais[19], gastos em 2013, para o cumprimento de decisões judiciais, ao fim e ao cabo para tratar uma pequena porcentagem da população, teria mesmo esse dinheiro sido gasto com programas eficientes e duradouros para uma ampla maioria? Há de se considerar a possibilidade de que esse valor acabasse sendo gasto com lápis, papel e caneta, ou outras coisas que nada tem a ver com os fundamentos utilizados pelos críticos de agora.

 

“No que concerne à interferência do Poder Judiciário na política de fornecimento de medicamentos a cargo do Ministério da Saúde, ficou patente um intenso ativismo judicial no período 2005-2009, com impacto orçamentário cujos números saltaram de R$ 2,5 milhões, em 2005, para R$ 83,2 milhões, em 2009. Como ficou demonstrado, o crescimento de ações judiciais no mesmo período coincide com a estagnação do número de medicamentos incorporados ao Componente Especializado, com a introdução de apenas 5 novos fármacos. Neste caso, a inércia governamental frente ao acelerado desenvolvimento científico e tecnológico na produção de medicamentos parece ser o fato motivador da busca por novas formas de tratamento de saúde pela via judicial. Por conseguinte, a questão que se coloca é se essa inércia decorre da complexidade da política de incorporação de medicamentos ou de deliberada escolha do poder público.”[20]

O que seria esse núcleo essencial mínimo que a Constituição quis assegurar ao cidadão? Não é tão simples assim dimensioná-lo. Por isso alguns defendem que a ponderação que pauta a questão do direito à saúde nos corredores do judiciário é mais ou menos a que envolve o direito subjetivo de um, maior ou mais amplo que o de outro. Exatamente porque entra em questão a definição distinta, própria, sui generis, de cada operador do Direito. Portanto, interessante seria dialogar com outras áreas, com a criação de uma assessoria técnica ao poder judiciário nesse tipo de demanda, por exemplo, conforme defendido pelo Ministro da Saúde, em audiência pública no STF, assim como também:

“[...] a maior celeridade na atualização e elaboração de novos protocolos do SUS; a ampliação da Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (CITEC/MS), de forma a conferir maior agilidade às suas recomendações; o aperfeiçoamento da organização da pesquisa clínica em rede de centros de referência para que os resultados sejam estabelecidos nacionalmente; a criação de Centros Estaduais de Referência para a prescrição de medicamentos, especialmente os de alto custo, e o adequado manejo dos pacientes.

 

[...] a via judicial bem educa o gestor omisso que não provê dentro da sua competência e responsabilidade os bens e serviços de saúde, mas também acho que ela não pode se constituir em meio de quebrar os limites técnicos e éticos que sustentam o Sistema Único de Saúde, impondo o uso de tecnologias, insumos ou medicamentos, ou sua incorporação à crítica, desorganizando a administração, deslocando recursos de destinações planejadas e prioritárias e o que mais surpreende, muitas vezes, colocando em risco e trazendo prejuízo à vida das pessoas. ”[21]

De 2003 até 2009 houve um crescimento liquido superior a 100% dos gastos com medicamentos, sendo que o orçamento do Ministério da Saúde aumentou cerca de 17% no mesmo período. Visto de outro ângulo, no entanto, observa-se que a incorporação de medicamentos ao SUS é demasiadamente lenta, burocrática e instigadora de demandas judiciais. Afinal, quem está doente, tem pressa.

            Outro importante fator, como já dito, é o lobbie da indústria farmacêutica, que impulsiona o crescimento de demandas judiciais individuais, com o fim de indiretamente compelir o poder público a financiar seus medicamentos.

            Tendo como escopo restringir essa obrigatoriedade face as decisões judiciais, tramita no legislativo o Projeto de Lei n. 219/2007, que acrescenta o art. 6-A ao disposto na Lei nº 8.080/90, com a seguinte redação:

“Art. 6º-A. A integralidade da assistência terapêutica, inclusive farmacêutica, de que trata a alínea d do inciso I do art. 6º consiste em:

I – oferta de procedimentos terapêuticos ambulatoriais e hospitalares constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do SUS, realizados no território nacional em serviço próprio, conveniado ou contratado;

II – dispensação de medicamento prescrito em serviço próprio, conveniado ou contratado, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas instituídas pelo gestor federal do SUS em protocolo clínico para o agravo à saúde a ser tratado.

§ 1º Na falta do protocolo a que se refere o inciso II do caput, a dispensação limitar-se-á aos produtos constantes de relações de medicamentos essenciais e de medicamentos de dispensação excepcional elaboradas pelo gestor federal do SUS.

§ 2º São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:

I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de procedimento clínico ou cirúrgico experimental;

II – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de procedimento clínico ou cirúrgico para fins estéticos ou embelezadores, bem como de órteses e próteses para os mesmos fins;

III – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, nacional ou importado, sem registro no órgão público brasileiro competente.

§ 3º Para os efeitos desta lei, procedimento clínico ou cirúrgico para fins estéticos ou embelezadores é aquele realizado com o objetivo de corrigir alterações de partes do corpo decorrentes do processo normal de envelhecimento ou de alterar variações anatômicas que não causem disfunções orgânicas, físicas ou psíquicas.”

Interessante destacar alguns dos fundamentos utilizados:

 

“[...] os tribunais brasileiros expediram, nos últimos anos, várias decisões liminares que obrigaram os gestores do SUS a fornecer medicamentos não ofertados ou não disponíveis nas farmácias das unidades públicas de saúde, sob pena de prisão do gestor e multa, em caso de descumprimento. Algumas das decisões obrigaram o fornecimento até mesmo de medicamentos ainda não registrados no País.

A maioria dessas liminares tem como objetivo atender à prescrição de produtos de alto custo, muitos deles recém-lançados em outros países e ainda não disponíveis no Brasil. O lobby da indústria e do comércio de produtos farmacêuticos junto a associações de portadores de certas doenças e o intenso trabalho de marketing junto aos médicos fazem com que tanto os usuários quanto os prescritores passem a considerar imprescindível o uso de medicamentos novos. Em regra esses produtos são de altíssimo custo, como já mencionado, mas nem sempre são mais eficazes que outros de custo inferior, indicados para a mesma doença.

[...] o representante do Conass informou que, em 2003, os gastos com apenas quatorze medicamentos de dispensação excepcional consumiram 63,7% das receitas do Ministério da Saúde para aquisição de medicamentos. Citou, ainda, o mal de Gaucher como exemplo, dado que o tratamento de um só portador dessa doença, com sessenta quilogramas de peso corporal, representa um custo de mais de oitocentos mil reais por ano.

O mesmo representante cita a ex-editora do New England Journal of Medicine, Drª. Marcia Engell, considerada uma das vinte e cinco personalidades mais influentes dos Estados Unidos. Em um dos seus livros, a Drª. Engell defende duas teses: 1) a indústria [farmacêutica] detém controle sobre a avaliação dos próprios produtos e publica o que quer; e 2) um controle governamental desse comportamento é fundamental.

A garantia de acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de saúde é tão importante quanto o atendimento integral. Essa garantia só será possível se os parcos recursos destinados à saúde forem criteriosamente aplicados.

[...]

O que proponho não viola os preceitos constitucionais relativos à assistência à saúde. Ao contrário, respeita-os ao permitir que um maior número de cidadãos e cidadãs seja beneficiado com a racionalização dos gastos.”[22] (grifo posterior)

3 Conclusão

Claro que, se por um lado, não incumbe ao Juiz suprir as deficiências da saúde no Brasil, de outra parte, cabe a ele, sim, ao proferir suas decisões, zelar para que o sistema não seja atingido em seu todo, em sua concepção, sob pena de aniquilá-lo, e, aí sim, prejudicar a generalidade da população assistida.

Enfim, Juiz não é médico, administrador de plano de saúde, gestor do sistema público de saúde, tampouco Deus para decidir quem  irá sobreviver nesse caos e, portanto, diante dessa tal “judicialização”, deve, em caso concreto a ele submetido, esforçar-se para identificar com qual dos envolvidos está a razão e proferir a decisão adequada, seja com uma posição ativista ou de autocontenção, mas tendo em mira, sempre, a preservação do sistema de saúde de uma coletividade. Porque essa questão em verdade tem como pano de fundo o equacionamento entre o direito à vida, à saúde, de uns, e o direito à vida, à saúde, de outros; embora decidir algo dessa magnitude não possa ter uma solução juridicamente fácil, nem moralmente simples, porque decidir quem vai viver ou morrer extrapola, e muito, o fardo que qualquer juiz ou administrador se propôs – proporia – a carregar.

Enquanto o debate para reavaliar tanto a questão constitucional quanto orçamentária não acontece onde deveria – leia-se, poder legislativo e executivo –, o judiciário deverá esforçar-se ao máximo para suprir suas lacunas, em defesa do cidadão como indivíduo único, com direitos e garantias assegurados pela Carta Política, e também da própria sociedade, já indefesa por natureza, infelizmente.

Referências

- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2012. Acesso em: 19 de junho de 2014.

- CONJUR. Judicialização da Saúde tem criado SUS de Duas Portas. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-22/judicializacao-saude-criado-sus-duas-portas. Acesso em: 30 de junho de 2014.

- FERRAZ, Octavio L. Motta. Health Inequalities, Rights, and Courts: The Social Impact of the Judicialization of Health. Litigating Health Rights: Can Courts Bring More Justice to Health?.  Harvard University Press, 2010.

- LEAL, Saul Tourinho. Controle de Constitucionalidade Moderno. Niterói: Impetus, 2012.

- MULLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e Metódica Estruturantes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

- NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

- PEREIRA, Delvechio de Souza. O Orçamento Público e o Processo de Judicialização da Saúde. TCU, 2010. Disponível em: http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2055752.PDF. Acesso em: 18 de junho de 2014.

- SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo: Garantias dos Direitos Coletivos, Sociais e Políticos. Malheiros: São Paulo, 2010.


 

[2] FERRAZ, Octavio L. Motta, Health Inequalities, Rights, and Courts: The Social Impact of the Judicialization of Health - Litigating Health Rights: Can Courts Bring More Justice to Health?,  Harvard University Press, 2010.

[3] FERRAZ, Octavio L. Motta, op. cit.

[4] FERRAZ, Octavio L. Motta, op. cit.

[5] FERRAZ, Octavio L. Motta, op. cit.

[6] FERRAZ, Octavio L. Motta, op. cit., pag. 100, tradução minha. “For health litigation to produce a positive social impact in Brazil, this model would need to change in several ways. Judges would need to be more restrictive in their interpretation of the right to health. They would need to recognize that resources are limited and priorities need to be set, and that ability to access the judiciary is not a fair criterion for the allocation of health resources. Courts would also need to demand that health authorities provide clear and rational justification for the priorities they set, and should interfere only when they fail to do so. Judges would have to pay particular attention to whether the government’s health programs aim to reduce the dismal health inequalities prevalent throughout the country, as the Constitution pledges. The legal profession could also help. It would be naive to ask private lawyers to stop representing better-off clients in their pursuit of expensive and complex therapies. But it is not outlandish to demand that public attorneys at least focus on representing the health interests of the most disadvantaged”.

[7] PEREIRA, Delvechio de Souza. O Orçamento Público e o Processo de Judicialização da Saúde, TCU: 2010. <http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2055752.PDF>.

[8] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo: Garantias dos Direitos Coletivos, Sociais e Políticos, Malheiros, São Paulo, 2010, pág. 466.

[9] MULLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e Metódica Estruturantes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 191.

[10] SILVA, José Afonso, op. cit., pág. 467.

[11] Supremo Tribunal Federal, ADPF 45/DF.

[12] FERRAZ, Octavio L. Motta, op. cit., pag. 8.

[13] FERRAZ, Octavio L. Motta, op. cit., pag. 9.

[14] Idem.

[15] LEAL, Saul Tourinho. Controle de Constitucionalidade Moderno. Niterói: Impetus, 2012.

[16] NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, pags. 123-125

[17] CONJUR. Judicialização da Saúde tem criado SUS de Duas Portas. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-22/judicializacao-saude-criado-sus-duas-portas

[18] Op. Cit., pág. 24-25.

[19] Idem.

[20] Op. Cit., pág. 28.

[21] Op. cit., pág 26-27.

[22] PL n. 219/2007, Exposição de Motivos.

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Sobre o autor
Carlos Alencastro

Advogado. Pós-graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo elaborado inicialmente como requisito de aprovação em disciplina do curso de especialização em Direito Tributário e Finanças Públicas do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.

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