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De quem é essa terra?

Uma análise histórico-constitucional da propriedade dos terrenos marginais (margens de rios)

14/09/2014 às 12:55
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O artigo faz uma análise histórico-constitucional da propriedade das terras marginais dos Estados-membros e da União frente a todas as normas incidentes na matéria, inclusive nas Constituições anteriores.

Introdução

Normalmente, sem grandes discussões, a União exige para si a propriedade das margens dos mares, rios e lagos, cobrando vultosas indenizações por sua ocupação de particulares, Estados-Membros e Municípios, quando, em verdade, na maior parte dos casos, caberia à União indenizar tais pessoas por ocupar áreas que nitidamente não são de sua propriedade.

O entendimento aqui demonstrado revela uma sistemática cobrança indevida por parte da União, que vem penalizando Estados, Cidadãos e Municípios desde o século retrasado. E, o que talvez seja mais grave, em patente afronta ao devido processo legal e aos direitos fundamentais.

Em suma, trata-se de expropriação abusiva e injustificável de terras alheias, bem como a exigência de indenizações que não lhe são devidas, nem tem legitimidade a União para exigir.  Enquanto, noutro sentido, a União, sem qualquer tipo de indenização, goza de bens que não são de sua propriedade, sem nunca pagar seus verdadeiros proprietários.


Delimitação e Explicação do Tema

Desde o século passado, há uma perene preocupação do Constituinte e do Legislador em definir claramente quais áreas pertencem à União, aos Estados Membros, aos Municípios e aos Territórios. Quando a cadeia dominial é estabelecida normalmente, por meio de relações de compra e venda, não existem grandes discussões. No entanto, quando tais entes adquirem a propriedade por meio de expropriação ou aquisição legal, algumas confusões são estabelecidas.

No presente artigo, visa-se esclarecer definitivamente as dúvidas por uma espécie de terreno específica, a saber, os terrenos marginais. Isto é, aquelas terras que se encontram às margens dos fluxos de água, diferindo-se dos Terrenos de Marinha por não submeterem-se à influência das marés.

Por mais improvável que pareça, atualmente, mesmo após de 6 (seis) Constituições Republicanas e pelo menos duas normas gerais, a questão ainda tem uma nebulosa interpretação. 

No intento de se estabelecer quais objetos jurídicos serão estudados, imperioso apresentar uma definição jurídica de cada um destes. A princípios, não existe grande necessidade de verificação de suas especificidades legais, mas tão somente uma conceituação genérica.

Legalmente, são denominados Terras ou Terrenos de Marinha aquelas áreas que se encontram às margens dos cursos d’água que sofrem influência das marés. São chamados de Terras ou Terrenos Marginais as margens de cursos de água que não se submetem à mare e suas mudanças.

Grosseira e suficientemente, pode-se considerar Terras de Marinha como a margem dos mares e Terrenos Marginais como a margem dos demais cursos d’água.

Especificidades à parte, então qual o imbróglio jurídico acerca desses institutos? Em primeiro lugar, tem-se que, ao contrário do que muitas vezes se apregoa, tratam-se de espécies distintas de bens, razão pela qual uma vez que a Constituição de 1988, expropriou tão somente[1] os Terrenos de Marinha, não há de se falar em propriedade automática da União sobre as margens dos rios e lagos.


Desancamento do Tema

A totalidade das questões possíveis de serem enfrentadas no presente estudo, perpassa, necessariamente, pela propriedade ou não da União acerca dos Territórios Marginais, razão pela qual se faz necessário descobrir, primeiramente, se é desta pessoa jurídica a propriedade dos bens ou de outrem.

A primeira norma a ser verificada é a exposta na atual Constituição da República, acerca dos bens da União. Observe-se assim os dispositivos capazes de solucionar a questão, especificamente, o art. 20, incisos I e VII da Constituição:

Art. 20. São bens da União:

I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;

(...)

VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;

Então, acerca das Terras Marginais, importa verificar que os bens da União seriam aqueles que eram de sua propriedade quando da promulgação da Constituição e as Terras de Marinha.

Em primeiro lugar, deverá então ser analisado, a qual patrimônio pertenciam, no momento em que foi promulgada a atual Constituição da República, os Terrenos Marginais, vez que, em relação aos Terrenos de Marinha, há óbvia expropriação de tais áreas em favor da União, por força do art. 20, VII da Constituição da República.  Não obstante, tal posicionamento não é feito em relação aos Terrenos Marginais, isto é, as margens dos rios e cursos navegáveis.

Dessa maneira, resta afastada a aquisição da propriedade pela União por força da nova Constituição, cabendo ser analisado então se houve, na nova Ordem Jurídica estabelecida, a manutenção da propriedade anterior.

Portanto, passa-se a verificar todo caminho legal acerca da propriedade dos Terrenos Marginais desde a Constituição de 1891, uma vez que nesta Constituição (norma contra qual, relembro, nenhuma pessoa possui direito adquirido, incluindo-se as pessoas jurídicas de direito público interno, União, Estados-Membros e Municípios), a propriedade destes terrenos é outorgada aos Estados-Membros, veja-se o art. 64 daquela Constituição:

Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.

Como se verifica, clara é a redação do artigo 64 da Constituição de 1984, serão de propriedade dos Estados-Membros: as minas e terras devolutas em seu território, cabendo à União somente o quinhão destas que for indispensável à defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Em que pese não se tratar especificamente dos Terrenos de Marinha e Terrenos Marginais, tendo em vista que tais institutos ainda não existiam, estabelece-se a primeira divisão acerca das terras sem propriedade definida.  

O conceito de Terras ou Terreno de Marinha é incluso em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto 26.643 de 10 de julho de 1934, denominado Código de Águas.

Em que pese a criação do conceito de Terrenos de Marinha (art. 11, §1º) não foi estabelecido no Código de Águas, ao menos não com este nome, o instituto dos Terrenos Marginais, sendo estas porções de terra denominadas no art. 11, §2º como “terrenos reservados às margens das correntes e lagos navegáveis”, cuja propriedade é dos Estados-Membros, conforme estabeleceu o art. 31:

Art. 31. Pertencem aos Estados os terrenos reservados as margens das correntes e lagos navegáveis, si, por algum título, não forem do domínio federal, municipal ou particular.

E ao contrário do pensamento comum, os Terrenos de Marinha foram instituídos como bens públicos dominicais, sendo passíveis de comercialização, de acordo com o art. 11, caput do Código de Águas, sendo que sua venda e aquisição tornou-se proibida unicamente com o advento da Constituição de 1988, não existindo, anteriormente, qualquer proibição.

Há de ser percebido ainda, que o Decreto 26.643, não expropriou qualquer pessoa, uma vez que estabeleceu a propriedade dos terrenos que por qualquer título legítimo pertencessem aos particulares continuaria em seu patrimônio, conforme o caput do art. 11, veja-se:

Art. 11. São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular;

1º, os terrenos de marinha;

 2º, os terrenos reservados nas margens das correntes públicas de uso comum, bem como dos canais, lagos e lagoas da mesma espécie. Salvo quanto as correntes que, não sendo navegáveis nem flutuáveis, concorrem apenas para formar outras simplesmente flutuáveis, e não navegáveis.

Desta forma, verifica-se que o Código de Águas, não toma a propriedade de qualquer pessoa, conforme observa-se nas ressalvas de seus diversos artigos, aqui interessando a manutenção dos direitos reais dos proprietários estabelecidas pelo art. 11 e 31, por tratarem especificamente dos Terrenos Reservados, isto é, aquelas margens de cursos d’água atualmente conhecidos como Terrenos Marginais.

Posteriormente, institui-se nova Ordem Jurídica com a Constituição da República de 1934, a qual estabeleceu em seu art. estabeleceu em seu art. 21 os bens dos Estados-Membros:

Art. 21 - São do domínio dos Estados: 

I - os bens da propriedade destes pela legislação atualmente em vigor, com as restrições do artigo antecedente; 

II - as margens dos rios e lagos navegáveis, destinadas ao uso público, se por algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular. 

Igual teor encontra-se na Constituição seguinte, inclusive com o mesmo texto, observe-se o art. 37 da Constituição de 1937:

Art. 37 - São do domínio dos Estados:

a) os bens de propriedade destes, nos termos da legislação em vigor, com as restrições cio artigo antecedente;

b) as margens dos rios e lagos navegáveis destinadas ao uso público, se por algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular.

Ressalta-se que para que os demais possuam Terrenos Marginais, é necessário que o tenham adquiridos legitimamente. Assim, poderiam ser de propriedade da União, dos Municípios e dos Particulares se estes tivessem, por qualquer meio lícito, adquirido sua propriedade.

Dessa maneira, no período de 1891 à 1946, não existe qualquer dúvida de que os Terrenos Marginais pertencessem originariamente aos Estados-Membros, por disposição expressa da Constituição da República então vigente e de toda a legislação anterior.

A clareza do ordenamento analisado até o presente momento é patente: a propriedade dos Terrenos Marginais é, originariamente, do Estados-Membros, os quais poderiam tê-la transferido à União, aos Municípios ou aos Particulares, conforme bem entendessem. 

A primeira dúvida sobre o tema, poderia ter surgido justamente com o Decreto-Lei 9.760/46, norma que até hoje é utilizada para justificar eventuais pretensões da União, ainda que, assustadoramente, de seu texto não se depreenda qualquer transferência da propriedade dos Estados-Membros à União.

É também esta a norma a estabelecer a definição atual dos institutos conhecidos como Terrenos Marginais e Terrenos de Marinha, de acordo disposto nos artigos 2º e 4º do Decreto-Lei 9.760/46.

Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:

a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;

b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

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Obviamente, as margens dos rios, lagos, etc., não se enquadram na definição de Terreno de Marinha. Obviedade que, infelizmente, se faz necessária de ser repetida, haja vista que por vezes a União tenta alegar que seriam institutos análogos e idênticos.

Resta então saber qual a natureza jurídica destas margens, questionamento esclarecido de modo cabal pelo art. 4º do Decreto-Lei 9.760/46, quando apresenta a regulamentação e exposição do que é o “Terreno Marginal”:

Art. 4º São terrenos marginais os que banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 (quinze) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, contados dêsde a linha média das enchentes ordinárias.

Pois bem, excetuando-se os casos excepcionais nos quais lagoas e rios sofram influência das marés, clara é a definição da natureza jurídica de suas margens como Terrenos Marginais, anteriormente denominados Terrenos Reservados.

Por conseguinte, passa-se investigar de quem seria a propriedade os Terrenos Marginais. A legislação anterior, bem como o próprio Decreto-Lei 9.760/46, partem do mesmo critério em seu estabelecimento: os Terrenos Marginais serão de propriedade daquela pessoa jurídica de direito público cujo território se localizar ou os daquele que a tenha adquirido.

Nesse ponto é necessária muita atenção, pois reiteradas vezes é aqui que a legislação é distorcida no intento de expropriar os Terrenos Marginais em favor da União. 

Argumenta a União que o art. 1º do Decreto-Lei 9.760/46 estabeleceu a propriedade da União sobre os bens imóveis, dentre os quais os Terrenos de Marinha, alínea a, e Terrenos Marginais, alínea b. Veja-se o dispositivo:

Art. 1º Incluem-se entre os bens imóveis da União:

a) os terrenos de marinha e seus acréscidos ;

b) os terrenos marginais dos rios navegáveis, em Territórios Federais, se, por qualquer título legítimo, não pertencerem a particular;

c) os terrenos marginais de rios e as ilhas nestes situadas na faixa da fronteira do território nacional e nas zonas onde se faça sentir a influência das marés;

d) as ilhas situadas nos mares territoriais ou não, se por qualquer título legítimo não pertencerem aos Estados, Municípios ou particulares;

e) a porção de terras devolutas que fôr indispensável para a defesa da fronteira, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais;

f) as terras devolutas situadas nos Territórios Federais;

g) as estradas de ferro, instalações portuárias, telégrafos, telefones, fábricas oficinas e fazendas nacionais;

h) os terrenos dos extintos aldeamentos de índios e das colônias militares, que não tenham passado, legalmente, para o domínio dos Estados, Municípios ou particulares;

i) os arsenais com todo o material de marinha, exército e aviação, as fortalezas, fortificações e construções militares, bem como os terrenos adjacentes, reservados por ato imperial;

j) os que foram do domínio da Coroa;

k) os bens perdidos pelo criminoso condenado por sentença proferida em processo judiciário federal;

l) os que tenham sido a algum título, ou em virtude de lei, incorporados ao seu patrimônio.

Pois bem, acerca dos Terrenos de Marinha, não existe grande discussão, até mesmo porque o Decreto-Lei 9.760/46, tão somente repetiu literalmente o que já havia sido estabelecido no art. 30 do Código de Águas.

Em relação aos Terrenos Marginais, também não deveriam existir questionamentos, uma vez que apenas deu-se continuidade à lógica empregada nas legislações anteriores: o Terreno Marginal pertence à pessoa, União ou Estado-Membro, na qual o mesmo se localiza, caso não pertença anteriormente à particular, fazendo-se apenas o aparte expresso acerca dos Terrenos Marginais no interior dos Territórios Federais.

A simples leitura dos dispositivos, demonstra, sem grande esforço que a norma não incluiu no patrimônio público da União todas as espécies de Terrenos Marginais, mas tão somente aqueles que se enquadrem nas exigências das alíneas b e c.

Por conseguinte, conclui-se que os únicos Terrenos Marginais cuja propriedade é da União são aqueles que, conforme o art. 1º, b e c do Decreto-Lei 9.760/46, isto é, que estejam em Territórios Federais e áreas de fronteira.

Há de ser ressaltado que não existe qualquer conflito entre as normas que estabelecem a propriedade dos Estados Membros e a da União. Simplesmente, a União nunca teve qualquer propriedade sobre as margens de rios fora de seus territórios e áreas de fronteira.

Pois bem, o Decreto-Lei utilizado pelo autor data de 05/09/1946, sendo que a Constituição de 1946 foi promulgada 14 dias depois, em 19/09/1946 e poderia, ao menos em tese ter modificado a regulamentação de bens da União e dos Estados Membros, imperioso então analisa-la, cita-se, em específico, os artigos 34 e 35 que abordam o tema: 

Art. 34 - incluem-se entre os bens da União:

I - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro, e bem assim as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;

II - a porção de terras devolutas indispensável à defesa das fronteiras, às fortificações, construções militares e estradas de ferro.

Art. 35 - incluem-se este os bens do Estado os lagos e rios em terrenos do seu domínio e os que têm nascente e fez no território estadual.

Como visto, a Constituição de 1946 não criou qualquer propriedade da União sobre as áreas denominadas como Terrenos Marginais que não estivessem em fronteira ou no interior de Territórios Federais, mantendo-se assim a propriedade dos Estados-Membros sobre tais áreas.

A mesma linha foi seguida pela Constituição de 1967 que, ao dispor sobre o tema, em seus artigos 4º e 5º, não estabeleceu qualquer propriedade da União para terras à margem dos rios, mas ao Contrário, estabeleceu que tais bens seriam de propriedade do Estados-Membros (art. 5º).

Apenas para destacar, veja-se a Constituição de 1967:

Art 4º - Incluem-se entre os bens da União:

I - a porção de terras devolutas indispensável à defesa nacional ou essencial ao seu desenvolvimento econômico;

II - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, que sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro, as ilhas oceânicas, assim como as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;

III - a plataforma submarina;

IV - as terras ocupadas pelos silvícolas;

V - os que atualmente lhe pertencem.

Art 5º - Incluem-se entre os bens dos Estados os lagos e rios em terrenos de seu domínio e os que têm nascente e foz no território estadual, as ilhas fluviais e lacustres e as terras devolutas não compreendidas no artigo anterior.

Desta feita, não se verifica qualquer propriedade da União sobre aquelas Terras Marginais que encontrem-se foram de seus territórios ou das áreas de fronteira.

Não por outro motivo tais áreas, em diversos casos, foram adquiridas por particulares dos Estados-Membros, fato que, conforme acima se demonstrou, era legal até o advento da Constituição de 1988.  Não havendo falar em qualquer sorte de propriedade ou direito à indenização da União, mas sim em cobrança indevida e tentativa de enriquecimento indevido caso a União pretenda receber seja lá o que for ou impor qualquer medida em relação a tais bens.

A bem da verdade, a situação é justamente a inversa, devendo a União indenizar os Estados-Membros e Particulares que tenha impedido de utilizar suas propriedades ou, o que é ainda mais grave e enseja indenização por danos morais somada a eventuais perdas e danos, tenha imposto qualquer tipo de sanção pela ocupação.

A última Ordem Jurídica instituída, a Constituição de 1988, estabelece em seu artigo 20, incisos I e VII, dentre outros bens, a propriedade da União sobre os bens que já lhe pertenciam e sobre as Terras de Marinha.

Por conseguinte, apenas no caso de haver Terreno de Marinha determinado é que se poderia requerer qualquer sorte de propriedade da União, tendo em vista não haver direito adquirido contra a Constituição da República e, por conseguinte, ainda que o Estado-Membro ou particular fosse o legítimo proprietário tais bens seriam de propriedade da União.

Nunca existiu propriedade da União sobre os Terrenos Marginais que não se encontravam no interior de seu território ou em áreas de fronteira. Tampouco são considerados Terrenos de Marinha aqueles que não sofrem a influência do mar.

Portanto, resta questionar, após a Constituição de 1988 de quem seria a propriedade dos Terrenos Marginais? Sem qualquer dúvida, claro está que a propriedade original pertencerá, salvo a exceção de fronteira e segurança nacional, ao Estado-Membro. Contudo, deste proprietário a mesma poderá ser transferida ao particular ou a qualquer ente público que possa adquirir imóveis no Brasil.

Consequentemente, a União apenas poderá requerer qualquer direito de propriedade sobre os Terrenos Marginais que se localizem onde outrora foram Territórios Federais, áreas de fronteira, áreas essenciais à segurança nacional (devendo nessas hipóteses verificar qual era a norma vigente quando da aquisição) e dos quais tenha adquirido a propriedade (exigindo-se, inclusive, o registro).

 Este entendimento está fundado na atual Constituição:

Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;

III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;

IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União

Observe-se, por fim, para que se espanque preventivamente qualquer confusão sobre o tema, que além das margens dos rios jamais terem sido de propriedade da União na categoria de Terras de Marinha (porque não se enquadra nas características deste instituto) ou de Terras Marginais (se nunca foram área de fronteira ou tampouco integrava qualquer território federal), também não é terra devoluta da União, ainda que, com o silêncio da Constituição de 1988, se argumente que as Terras Marginais tenham se transformado nessa espécie, uma vez que apenas seriam Terras Devolutas da União se adequadas ao exposto no art. 1º, f do Decreto-Lei 9.760/46, veja-se:

Art. 1º Incluem-se entre os bens imóveis da União:

(...)

f) as terras devolutas situadas nos Territórios Federais;

Ora, se as Terras Marginais localizarem-se num Estado-Membro e não num Território Federal, ainda que pudessem ser consideradas como Terras Devolutas, não se enquadrariam naquelas que pertencem à União.

Assim sendo, também a Constituição de 1988 estabelece que a propriedade destes bens seria do Estado-Membro, conforme exposto no art. 26, IV.

Destaca-se que a explicação acima, especificamente acerca das Constituições das República, seria a ÚNICA maneiras da União ter adquirido as propriedade dos Terrenos Marginais, porquanto, apenas contra a Constituição da República há de se falar na inexistência de Direito Adquirido, o que não acontece em face de leis infraconstitucionais.


Conclusão

A União, por meio de sua procuradorias, tem se servido há mais de um século de normas obscuras e interpretadas em apartado da sistemática jurídica, ignorando por completo a marcha Constitucional da propriedade das terras marginais aos rios e lagos, para, ilícita e inconstitucionalmente cobrar de particulares, Estados-Membros e Municípios, vultosas quantias a título de indenização, bem como impor multas e outras sanções para ocupação.

Pior cenário existe quando se pretende imputar crimes, improbidade, etc., aos particulares que nada mais fizeram do que se utilizar de seu direito de propriedade em conformidade com a lei, ações que além de contarem com o apoio do Ministério Público na quase totalidade dos casos, também são propostas por estas instituições.

Contudo, o exame das Constituições e normas aplicáveis demonstra claramente que o cenário jurídico é absoluta e diametralmente oposto. Tais bens são, na quase totalidade das vezes, de legítima e incontestável propriedade dos Estados-Membros e das pessoas, de direito público ou privado, que eventualmente os adquiriram.

A correta adequação constitucional da matéria é paradigmática, uma vez que, além de demonstrar patente cobrança indevida, abuso de autoridade, expropriação, enriquecimento indevido, apropriação indébita e dano, material e moral, causados pela União, põe em xeque quase todas as decisões jurídicas acerca do tema, uma vez que, em muitos dos casos a União era parte ilegítima, não podendo jamais ter ajuizado estas demandas, bem como não possuía o Ministério Público Federal para atuar nestas causas e a justiça federal era absolutamente incompetente para processar e julgar os feitos.

As modificações na interpretação na matéria, demonstram ainda patentes injustiças, mormente no caso de imposição de sanções e violações graves à direitos humanos e fundamentais dos cidadãos, bem como aponta para uma sistemática apropriação pela União de bens e eventuais indenizações que se alguém forem devidas o são aos Estados-Membros.


Notas

[1] Em que pese não haver direito adquirido contra a Constituição da República, tal aquisição de propriedade, em detrimento de seus antigos proprietários, a meu sentir, não pode ser automática e por meio de força, muito menos sem a devida indenização, mesmo se decorrente de revolução constitucional, tendo em vista que, a despeito da Constituição da República, gerar uma nova Ordem Jurídica e um novo Estado, este se encontra sempre adstrito a seu quarto elemento de formação, a finalidade, o qual sempre derivará do povo, ou o conjunto de seres humanos que ocupam determinado território.  Ora, se a existência de indivíduos impõe a obediência dos direitos humanos, não tenho como concebível, ao menos após os tratados sobre o tema, o entendimento que qualquer Estado possa ser formado em desacordo com o bem de seu povo, isto é, sem o resguardo e obediência aos Direitos Humanos. Talvez este entendimento não se aplique a todas as espécies de Estados, contudo, pelo menos em relação ao Estado de Direito, o tenho como inseparável, sendo ainda pungente, completa e absolutamente indistinguível e indissociável da formação da subespécie dos Estados de Direito denominadas de Estados Democráticos de Direito, porém tais digressões devem ser aprofundadas noutro artigo.  

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

D'AVILLA, Diego. De quem é essa terra?: Uma análise histórico-constitucional da propriedade dos terrenos marginais (margens de rios). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4092, 14 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31894. Acesso em: 28 mar. 2024.

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