4. DISCRIMINAÇÃO GENÉTICA
A história traz a radiografia de um tema quase tão antigo quanto o próprio homem, isto é, a discriminação. Em “A República” de Platão há passagens que demonstram os traços de uma eugenia. Na cidade-estado Espartana, onde o indivíduo era uma propriedade do Estado, é pacífico o entendimento de que deficiências fenotípicas eram sentenciadas com a morte logo após as “boas vindas ao mundo”. Em dimensão paralela estão as sombras da eugenia escritas pela Alemanha nazista de Hitler[5], onde o cidadão era propriedade do Estado. Nos idos de 1916 os Estados Unidos levaram a sério a questão da eugenia e diversos estados instituíram leis eugênicas e milhares foram impedidos de se casar ou foram esterilizados, sem mencionar a discriminação no trabalho. Aliás, o modelo eugênico americano foi a inspiração de Hitler. Nessa mesma época, diversos Estados europeus instituíram leis eugênicas. Em suma, uma pessoa poderia ter o direito de viver, mas não o de casar ou ter filhos. O resultado disso é a forte resistência de países europeus aos avanços da biotecnologia[6] bem como os EUA ter a legislação antidiscriminação genética considerada modelo mundial (Lei do Ato de não Discriminação da Informação Genética), embora tenha sérias falhas, consoante apontamentos em tópico abaixo.
Assustadoramente, todo esse cenário teve escudo legal. Ainda, há que se mencionar o Apartheid na África no período de 1948 a 1990, bem como a vigência atual de uma norma eugênica no Estado chinês.
Atualmente, o tema em tela volta a assombrar a humanidade, todavia, sobre nova faceta, isto é, sobre o alicerce da ciência incrustada no que há de mais íntimo no ser humano, ou seja, seus genes. Anteriormente, mencionou-se que o Projeto Genoma Humano trouxe grandes esperanças de uma vida mais duradoura[7] e sem dor, prometendo inscrever perpetuamente as doenças nos livros de história. Uma promessa louvável, todavia problemas em diversas vertentes, conforme anteriormente salientado, germinam requisitando uma reflexão profunda sobre o caminho que devemos atualmente trilhar e o futuro que queremos nos ditames da genética.
Mas a ameaça imediata é a discriminação genética. Estamos só agora começando a identificar os ‘erros ortográficos’ do código genético associados a doenças, mas vão passar-se anos entre essa descoberta e uma baseada no gene. Nesse ínterim, pessoas diagnosticadas como portadoras do mal podem ser discriminadas por companhias de seguros ou empregadores (VENTER; COHEN, 2000).
Em outros termos, o conhecimento genético gera poder, some-se a isso o fato de que “a humanidade vive na era da informação, razão pela qual se entende que a informação genética a respeito de um indivíduo se constitui num precioso poder nas mãos de terceiros” (ECHTERHOFF, 2010, p.82).
O problema é que
a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferências que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou qualquer outro campo (PIOVESAN, 2010, p.243).
Isso significa dizer que um Estado Democrático de Direito sério tem a obrigação de combater e erradicar todas as formas negativas de discriminação existentes em sua sociedade. Além disso, tal problemática, em quaisquer de suas formas, não significa apenas desigualdade, mas um verdadeiro atentado constitucional ao qual o Estado não deve ser omisso.
O Estado brasileiro é signatário das Convenções Internacionais que buscam riscar de sua atualidade todas as formas discriminatórias, ou seja, o Brasil assumiu um compromisso diante dos demais Estados de que tais práticas sejam lidas apenas nos livros de história. Outrossim, o fato de serem metas a se concretizarem, abalizadas na Carta Suprema, não dá azo para que haja omissão ou até mesmo falta de políticas eficientes de combate às discriminações em todas as suas formas negativas. Ademais, “a eliminação e o combate à discriminação são medidas para que se garanta a todos o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais” (op., cit., p.244).
No que tange à discriminação genética, não há que se falar em grupos socialmente vulneráveis que necessitam de ações afirmativas, pois não se trata de grupo que, ilustrativamente, em face de condição sexual, etnia etc., tenham sido penalizados ao longo da história e, atualmente, clamam por “estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” (ibidem). Isso porque se entende que cada pessoa tenha entre 15 a 20 genes silenciados que podem desencadear doenças dessa natureza atualmente incuráveis. Somem-se a isso as condições ambientais, o hábito de vida como alimentação etc. que devem ser considerados e facilmente se concluirá que todo ser humano se sujeita a tal problemática. “Todos nós somos mutantes com falhas” (COLLINS, 2010, p.32). Porém, não se pode esquecer de que a estigmatização de pessoas em face de sua condição genética poderá dar origem a uma nova classe denominada de “saudáveis doentes”, isto é, que embora sadios sejam portadores de predisposições a determinadas doenças genéticas. Estamos tratando então, não de uma chamada “discriminação positiva” que visa promover uma igualdade material, mas de uma “discriminação negativa” a promover um tratamento desigual sem fundamento.
A questão metodológica permanece a de saber como um discurso bioético, cujos princípios estão em perpétua tensão, pode desempenhar o papel de conciliador social entre posições morais que, ainda que plurais, exigem uma coerência interna e uma compatibilidade com o ideal democrático (ATTLAN; BOTBOL-BAUM, 2009, p.89).
Trata-se de uma questão espinhosa para além de normas jurídicas, é preciso “realinhar o discurso legal com os notáveis imperativos progressos científicos, (...) reconhecer a multiplicidade de interesses em jogo, (...) promover a interação entre decisões políticas mais informadas” (ELTIS, 2007, p.284, traduzimos) e conscientizar a sociedade de que tal debate é de interesse de todos.
Em solo pátrio, qual a situação dessa problemática atualmente? Quanto à possibilidade de uso indevido das informações genéticas, OTLOWSKI (2003, p.3, traduzimos) explana que “preocupações sobre o uso dessas informações no setor de seguro brasileiro focam-se nos seguros de vida e algumas formas de seguro geral para as quais são realizadas avaliação de risco individual”. Ademais, “ainda há poucos relatos sobre o fenômeno da discriminação genética e, no Congresso Nacional, existe um projeto de lei [objeto do próximo tópico] que há anos é debatido entre os parlamentares” (GUEDES, 2010). Todavia, não significa que não existam casos de grande repercussão ou que a questão seja motivo de pouca preocupação. DINIZ, GUEDES (2007, p.503) descrevem dois casos de discriminação genética ocorridos nos anos de 2002 e 2004 com duas atletas da seleção brasileira de voleibol, face ao traço falciforme. Os médicos consideraram ou confundiram traço falciforme com anemia falciforme[8], esta é mais grave ao passo que aquela apenas pode afetar os descentes do portador não apresentando qualquer problema a quem tem apenas o traço falciforme.
Quem tem direito ao controle dos nossos dados genéticos? É justo que empregados sejam selecionados mediante testes de genética? É justo que empregadores paguem pelos problemas genéticos de seus empregados? Há exceção a essa questão? Há situações mediante as quais a discriminação genética é aceitável? Se “A” fornece dados genéticos ao empregador, qual a garantia de que tais dados não comprometerão seus filhos na busca de empregos futuros considerando que ele seja suscetível a uma doença genética? O consentimento do empregado para testes genéticos é suficiente para a sua realização?
Evidentemente, todas as arguições suscitadas não têm uma resposta incontroversa e certamente trazem mais dúvidas que soluções. Entretanto, devem ser enfrentadas.
Insta salientar que a presente problemática sempre irá levantar “questões éticas delicadas como, por exemplo, direito de proteção ao emprego versus direito de proteção à saúde; direito à informação versus direito à privacidade; direito individual versus direito da coletividade” (GATTÁS et. al., 2002, p.166).
A quem hão de serem confiadas as informações genéticas? Conforme Parecer nº. 30/20/2 (2012, p.6) do Conselho Federal de Medicina,
a privacidade de um indivíduo deve ser protegida, particularmente, em razão de condicionamentos ou influências de autoridades, de instituições como empregadores, superiores militares, seguradoras, escolas, penitenciárias, entidades religiosas, comerciais, órgãos governamentais e outros.
Isso esclarece a quem não deve ser confiado o sigilo genômico. Todavia, também não se sabe a quem se deve conceder a guarida desse patrimônio personalíssimo. Ao Estado? Nem tanto, inúmeros são os exemplos na seara internacional de “vazamento” de informações dessa ordem por parte de servidores do Estado, não sendo raras as ações judiciais de indenização contra esse ente. Caminha-se para a possibilidade de “hackers do DNA”?
Quanto a segunda e terceira indagações, se não é justo que empregadores paguem por doenças de ordem genética de seus empregados, também não é justo que estes sejam estigmatizados, percam ou não consigam emprego bem como paguem adicionalmente por conta da loteria genética. Isso se remete à difícil questão prática de se conciliarem interesses econômicos e valores humanos supremos que não devem ser desprezados. Todavia, não se pode esquecer de que se houver possibilidade de utilização de dados genéticos pelas seguradoras e plano de saúde inevitavelmente será desencadeado um “efeito cascata” com reflexos na seara trabalhista. BROWAEYS et. al., (2000) citam Claude Henry do laboratórie d’Économétrie de l’École Polytechinique de Paris, segundo o qual
os próprios planos de saúde estão em perigo. Especificar o risco não adianta, de fato, nem ao cliente, nem ao dono do plano de saúde, pois se chega a um tal aumento de tarifas (para riscos aumentados) que elas se tornam tão exorbitantes e os contratos não são assinados. É preciso excluir toda utilização de dados genéticos para assinar os contratos e, mesmo retroceder nas investigações atuais, por exemplo, às perguntas sobre antecedentes familiares.
Questão mais tormentosa reside em saber se há exceções à discriminação genética nas relações de trabalho, isto é, se há possibilidade de que isso venha ocorrer regulamentado por lei. O fato é que o Texto Constitucional não traz nenhum direito absoluto, esse o entendimento doutrinário majoritário. Nesse sentido, alertam LÉVESQUE, AVARD (2005, p. 83, traduzimos) que “advogados têm dito que nenhum direito é absoluto, ou seja, que nenhum direito tem um escopo que ignora outros direitos existentes”. A literatura científica é imensa nesse sentido, ratificando diversas situações mediante as quais há possibilidade de discriminação via análise genética nas relações de trabalho. ELTIS (2007, p.286, traduzimos) expõe que “o monitoramento genético de efeitos biológicos de substâncias tóxicas no ambiente de trabalho é permitido se o empregado tiver fornecido o consentimento informado, por escrito, e os resultados forem agregados e não se divulgar a identidade de empregados individuais”. NALINI (2001, p. 3) admite que “toda assistência genética, incluindo o rastreamento, aconselhamento e testagem, deve ser voluntária. A exceção é o rastreamento de recém-nascidos para beneficiá-los com tratamento precoce”. OTLOWSKI (2003, p.769, traduzimos) sintetiza o exposto pelo relatório da Comissão de Genética Humana da Austrália (HGCA):
os empregadores devem ser proibidos de buscar ou utilizar informação genética de empregados ou candidatos para emprego, exceto em circunstâncias muito limitadas e cuidadosamente especificadas. Estes incluem circunstâncias onde tais informações são razoavelmente necessárias para determinar a capacidade de uma pessoa realizar o trabalho ou onde pode ser justificada por motivos de segurança e saúde ocupacionais.
GATTÁS et. al., (2002, p.165) acrescem outros exemplos como “os portadores do gene para doenças de Huntington [serem impedidos] de admissão como pilotos de avião ou maquinistas de trem, situações que poderiam colocar em risco a vida de muitas outras pessoas”. Nessa mesma dimensão: (LÉVESQUE, AVARD 2005), (RAWBONE, 1999) dentre outros.
Outro questionamento polêmico reside em saber se o consentimento expresso do empregado seria suficiente para realização de um teste genético. Em solo nacional, a maioria da literatura científica se filia a esse entendimento. Todavia, concordamos com Demócrito Filho citado por DIAS, GARDINI (2006), segundo o qual
mesmo que o empregado voluntariamente participe de programas de monitoramento genético, a sua situação de subordinação diante do patrão pode influenciar em sua decisão. Ele pode consentir por medo de perder o emprego, ou ainda por receio de perder benefícios trabalhistas.
Demócrito ainda enfatiza que
um programa de coleta de informações genéticas no ambiente de trabalho não apenas deve ter o consentimento informado do empregado, mas a participação efetiva de sindicatos e órgãos do governo, para cercar os trabalhadores de todas as garantias legais e jurídicas quanto ao uso dessas informações (ibidem).
Finalmente, mediante o exposto até aqui, nos filiamos à corrente segundo a qual a informação genética deve ter tutela diferenciada das demais, tendo em vista que tais informações expõem todos os membros da árvore genealógica da pessoa analisada, isto é, “o mais forte preditor de risco é a história familiar” (COLLINS, MCKKUSICK, 2001, p. 540). O fato é que “esse tipo de informação requer uma proteção pelo sistema jurídico diversa de qualquer outro tipo de proteção já existente, que deve ser extremamente rigorosa” (DIAS, GARDINI, 2006). Afinal de contas “ao mesmo tempo em que a nova genética aproxima-se de valores humanos, ela também se define como uma disciplina de saúde pública” (DINIZ, GUEDES, 2003, p.1767).
5. ATUAL SITUAÇÃO NORMATIVA BRASILEIRA
Inicialmente, salienta-se que o Brasil não possui norma específica referente ao tema em tela[9]. Isso conduzirá o magistrado, no caso concreto, a buscar solução conforme o Texto Maior, isto é, iniciar sua fundamentação nos princípios constitucionais e posteriormente partir para o Diploma Civil de 2002.
Há quem afirme que a discriminação genética não irá ocorrer em solo brasileiro, pelo menos não nas relações de trabalho. Ocorre que isso não é verdade. Há pouco tempo o Ministério Público do Trabalho travou uma batalha contra as “listas negras” formuladas por empregadores utilizando “dados disponíveis nos sites dos Tribunais do Trabalho para elaborar uma lista negra de empregados que apresentavam mais reclamações trabalhistas” (DIAS, GARDINI, 2006). Isso porque os empregados apenas exigiam seus direitos. Imagine se puderem utilizar informações mais poderosas como as de ordem genética.
Outro caso interessante, que embora não tenha relação direta com o tema, mas trilha por caminhos similares, ocorreu em um concurso público para escrivão da Polícia Federal. O candidato precisou de uma antecipação de tutela para prosseguir no concurso, pois foi desclassificado do certame após apresentar índice glicêmico de 120 e não dentro dos padrões de 70 a 110. A Desembargadora Federal Selena Maria de Almeida decidiu que “não é justificável impedir a contratação de candidato saudável aprovado em concurso público em razão da possibilidade de em algum tempo vir a desenvolver patologia crônica, (...) eis que condicionado a evento incerto e sem qualquer data determinada” (Processo nº. 0015523-62.2006.401.3400/DF)[10]. Igualmente, ainda há que se mencionar o parecer CFM nº. 19/94 bem como a resolução CFM nº. 1931/09.
Na dimensão internacional, mencionam-se a Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética e Genética, Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos e a Declaração Universal sobre os Direitos do Homem. Evidentemente, estes são diplomas norteadores que visam dar aos Estados signatários uma trilha sobre a qual devem caminhar suas edições legislativas. Por tais motivos, FUKUYAMA (2003) e VENTER, COHEN (2000) defendem a criação de uma norma universal para manter os avanços e aplicação do conhecimento genético nos trilhos da ética e da moral.
Acertadamente, ELTIS (2007, p. 288, traduzimos) acresce que “frequentemente, responsáveis políticos sabem muito pouco sobre ciência para fazer uma regulamentação eficaz; o público sabe menos ainda”. Indo além, SURBONE (2004, p.62, traduzimos) leciona que “definir a responsabilidade genética e em que medida ela deve atingir, requer um bom equilíbrio entre ciência e moralidade. A tarefa de encontrar este equilíbrio envolve toda a sociedade e não pode ser deixado apenas à elite política e cientistas”, afinal de contas, “os princípios universais de uma ordem jurídica igualitária apenas admitem aquelas instâncias decisórias que são compatíveis com o respeito mútuo de todo e qualquer cidadão” (HABERMAS, 2001, p.214).
Seja como for, a saúde do trabalhador não pode ser delegada ao segundo plano, de forma que devemos buscar uma saída alicerçada nos mantos da ética, moral e legalidade sem fulminar o princípio da dignidade da pessoa humana e igualdade de oportunidades.