1. INTRODUÇÃO
O presente artigo trata, em linhas gerais, de aspectos práticos e relevantes da violência contra crianças e adolescentes com ênfase no abuso sexual, abordando os principais equívocos que podem ser cometidos por magistrados na oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual; os benefícios, para o depoente e para a prova, da utilização da técnica do depoimento especial para a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de crime sexual; as medidas que podem ser adotadas por magistrados atuantes em comarcas que não possuem apoio de equipe multidisciplinar; e as soluções para o aprimoramento dos métodos atualmente utilizados no depoimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Criança e adolescente formam um dos segmentos sociais que mais exprimem o estado da cidadania e do tratamento dos direitos humanos no Brasil. São alvos de violência social expressa na falta projetos de vida, no desemprego, na dificuldade de acesso aos serviços públicos de educação, saúde, cultura, esporte, lazer, o que acaba pondo em questão o que está previsto na Constituição, no artigo 227, sobre proteção integral e prioridade absoluta como responsabilidade do Estado, da família e da sociedade. Longe de esgotar tão ampla matéria, busca o estudo reunir informações básicas que são o esteio para uma incursão mais aprofundada no tema.
2. DESENVOLVIMENTO
A condição de sujeito de direitos é uma conquista recente da infância. Vários documentos internacionais alertam para sua relevância, desencadeando a revisão das legislações, condutas e procedimentos adotados com o intuito de garantir direitos àqueles que ainda não atingiram dezoito anos. A Constituição de 1988, em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, é considerada o divisor de águas, seguida em 1990, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Entre as diversas manifestações de violência praticada contra a criança, a sexual intrafamiliar é responsável por sequelas que podem acompanhar a sua vida, com reflexos no campo físico, social e psíquico, justificando o envolvimento de profissionais de diversas áreas na busca de alternativas capazes de minorar os danos.
2.1 Os principais equívocos que podem ser cometidos por magistrados na oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual
No vigente sistema inquisitório, os esforços costumam concentrar-se na investigação do crime e na punição do agressor, despreocupando-se com o sofrimento e as sequelas da vítima.
A comunicação da violência sexual infantil desencadeia uma série de providências, de várias áreas profissionais e por diferentes órgãos: Conselho Tutelar, Ministério Público, rede de saúde assistencial, Delegacia de Polícia, Juízo Criminal. O foco principal dos procedimentos deveria ser, antes, proteger a pequena vítima e, após, castigar o abusador. Não é o que ocorre, entretanto, no atual contexto da nossa sociedade.
O abuso costuma ser informado a um amigo, vizinho, familiar, professor, médico. Em qualquer dos casos, deve-se dirigir primeiramente, ao conselho tutelar e, por tratar-se de um crime, à delegacia de polícia próxima ao local de residência (Art.131: “O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei).
Na fase judicializada, observa-se a falta de preparo dos integrantes do sistema de justiça para enfrentar a questão emocional que está adjacente ao trâmite de um processo que envolve violência sexual infantil, muitas vezes, expondo a criança e o adolescente a uma nova forma de violência.
Incorre, muitas vezes, o magistrado em erro de postura. Ao assumir a posição física do cargo superior a da vítima, ladeado pelo promotor de justiça e pelo defensor, apesar de garantir os direitos constitucionais do denunciado, pode ocasionar danos psicológicos ao inquirido, que resultam ser até mais prejudiciais que o próprio abuso sexual sofrido. Se conduzir a oitiva da vítima-infantil de abuso sexual da mesma forma que procede aos demais crimes, não conseguirá penetrar no universo desta criança. Ocorre, frequentemente, de o juiz se sentir envergonhado em abordar o tema ou mesmo não conhecer a dinâmica do abuso.
Muitos se referem ao ato sexual como "aquilo", "um problema". Diante destas dificuldades, acabam evitando falar sobre o fato ocorrido através de linguagem explícita com a pequena vítima. Além disso, não se deve usar uma linguagem sexual agressiva ou que crie sensação de constrangimento insuperável, ao tratar com as crianças e adolescentes. Além de causar grave consequência emocional, poderá ser impelido a absolver o acusado por falta de provas. Portanto, “[…] nominar o abuso sexual de forma clara e transparente, sem parecer à criança que o profissional que a interroga teme dizer as expressões em seu contexto, e ter a sensibilidade de não fazer colocações desnecessárias e abusivas […]” (BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimização da criança abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apuração do evento delituoso. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/3246 >. Acesso em: 04 abr.2008.) é a postura ideal a ser assumida pelos inquiridores, durante os questionamentos sobre o abuso sexual infantil. Em pior equívoco incide o juiz que dispensa a oitiva da criança abusada, no momento em que ela inicia a chorar. Apesar aparentar assumir postura protetora, não falar sobre a experiência vivida a faz concluir que o juiz está negando sua vivência. Ao deixar de examinar seu relato, mesmo que de forma bem-intencionada, reforça o abuso, corroborando com a síndrome do segredo. Não ouvi-la, portanto, é uma forma de rejeição e gera dano secundário adicional.
Sintetizando, as principais questões relacionadas à oitiva de crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais em juízo podem ser assim pontuadas: (i) risco de revitimização pelo Sistema de Justiça; (ii) relevância da oitiva para assegurar a eficiência da jurisdição criminal; (iii) problemas relacionados à fidedignidade das informações prestadas pela vítima; (iv) necessidade de respeito aos demais princípios relacionados à produção da prova.
2.2 Os benefícios para o depoente e para a prova da utilização da técnica do depoimento especial para a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de crime sexual
O depoimento especial é uma estratégia para não vitimizar pela segunda vez a criança ou o jovem que já sofreu algum tipo de violência sexual.
No sistema de depoimento sem dano, a audiência com a criança ocorre em sala privada, ao invés de inúmeros depoimentos frente ao Juiz, o promotor, o réu e o advogado. A inquirição da criança é realizada por uma psicóloga ou uma assistente social. O juiz e os demais presentes na sala de audiência veem e ouvem o depoimento da criança por um aparelho de TV. Na sala de audiência o Juiz pode fazer perguntas e solicitar esclarecimentos por comunicação em tempo real com o psicólogo. Assim, o depoimento sem dano tem sido implantado para reduzir o dano das inúmeras oitivas às quais a criança é submetida no processo de abuso sexual, inclusive frente ao réu (que geralmente é algum familiar). Também objetiva ser prova judicial, uma vez que a mídia da audiência gravada é anexada ao processo.
O Projeto “Depoimento sem Dano” idealizado pelo Juiz José Antônio Daltoé Cezar, foi inicialmente desenvolvido no ano de 2003, no Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre - RS, sendo destinado à oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de abuso sexual ou maus-tratos.
São objetivos do Projeto, como informa seu precursor: reduzir o dano provocado à criança/adolescente; garantir seus direitos, relativamente a sua condição peculiar de desenvolvimento, valorizando, assim, sua palavra e melhorar a qualidade da prova produzida, muitas vezes a única do processo. Divide-se em 3 (três) etapas: a) Acolhimento inicial – cuidados para que a criança/adolescente não se depare com o agressor ao acessar o prédio (como marcar sua chegada com antecedência de 30 minutos) e prestar esclarecimentos sobre a dinâmica do depoimento, informando que será filmado, além de visualizado por pessoas presentes em uma sala ao lado, e que farão perguntas; b) Depoimento – as perguntas serão feitas à criança/adolescente, por intermédio do entrevistador, que poderá se utilizar de perguntas abertas, fechadas e hipotéticas, conforme entender mais conveniente e menos danoso ao menor. Sendo todo procedimento gravado em vídeo, que, após o término do depoimento, seguirá para transcrição e posterior juntada aos autos; c) Acolhimento final – após o término da audiência, com o sistema de vídeo desligado, serão colhidas as assinaturas no termo de audiência e realizada intervenção no sentido de indicar serviços de atendimento junto à rede de proteção, se necessário, além de poder conversar acerca de alguns conteúdos, como medo, culpa, raiva, vergonha ou até mesmo sobre a forma como a família tem gerenciado a situação (CEZAR, J. A. D. Depoimento sem Dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007).
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 23 de novembro de 2010, publicou a recomendação nº 33 que trata do depoimento especial de crianças e adolescentes. A recomendação aos tribunais de todo o país orienta a forma do depoimento de crianças e adolescentes quando são testemunhas ou vítimas de crimes.
[O CNJ] RESOLVE RECOMENDAR aos tribunais: I – a implantação de sistema de depoimento vídeo gravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática; a) os sistemas de vídeo gravação deverão preferencialmente ser assegurados com a instalação de equipamentos eletrônicos, tela de imagem, painel remoto de controle, mesa de gravação em CD e DVD para registro de áudio e imagem, cabeamento, controle manual para zoom, ar-condicionado para manutenção dos equipamentos eletrônicos e apoio técnico qualificado para uso dos equipamentos tecnológicos instalados nas salas de audiência e de depoimento especial; b) o ambiente deverá ser adequado ao depoimento da criança e do adolescente assegurando-lhes segurança, privacidade, conforto e condições de acolhimento. II – os participantes de escuta judicial deverão ser especificamente capacitados para o emprego da técnica do depoimento especial, usando os princípios básicos da entrevista cognitiva. III – o acolhimento deve contemplar o esclarecimento à criança ou adolescente a respeito do motivo e efeito de sua participação no depoimento especial, com ênfase à sua condição de sujeito em desenvolvimento e do consequente direito de proteção, preferencialmente com o emprego de cartilha previamente preparada para esta finalidade. IV – os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando necessários, durante e após o procedimento judicial. V – devem ser tomadas medidas de controle de tramitação processual que promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição do tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento especial.
O projeto do novo Código de Processo Penal (CPP) também trata do assunto na seção Disposições especiais relativas à inquirição de crianças e adolescentes.
As vantagens da oitiva especial de crianças e adolescentes podem ser assim sintetizadas: (1) ambiente menos hostil (evitar-se revitimização); (2) menor risco de memórias falsas ou repostas induzidas; (3) possibilidade de participação das partes e contato do juiz com a produção da prova; (4) registro rigoroso da entrevista em filmagem, para possível aproveitamento em outros processos; (5) redução do número de entrevistas e rapidez na colheita (no caso de produção antecipada de prova); (6) melhor compreensão do conflito familiar (se precedida de entrevistas preliminares); (7) possibilidade de incremento constante da eficiência pela capacitação dos entrevistadores.
Em outros termos, o que se pretende com esses procedimentos é evitar que a vítima criança seja submetida a diversas oitivas consecutivas, sem o cuidado técnico necessário, o que provocaria mais dano do que benefícios para os infantes e suas famílias, obedecendo, assim, o princípio da Proteção Integral da criança e do adolescente.
2.3 Medidas que podem ser adotadas por magistrados atuantes em comarcas que não possuem apoio de equipe multidisciplinar
As Coordenadorias de Infância e Juventude foram criadas por meio da Resolução nº 94, do CNJ, com o objetivo de elaborar sugestões para o aprimoramento da estrutura do Judiciário na área da infância e da juventude; dar suporte aos magistrados, aos servidores e às equipes multiprofissionais visando à melhoria da prestação jurisdicional e promover a articulação interna e externa da Justiça da Infância e da Juventude com outros órgãos governamentais e não governamentais.
Muitas vezes, as equipes são vinculadas exclusivamente a determinados juízos (infância e juventude, família), deixando o juiz das demais competências numa autêntica posição de “pedinte’, dependente dos “favores” dos colegas das outras varas.
Como alternativas para suprir a inexistência de apoio de equipe multidisciplinar, é interessante que o magistrado utilize da “rede” local, em busca de profissionais de serviço social e psicologia, especialmente que possam auxiliá-lo na produção de pareceres técnicos e – até mesmo – no momento da colheita da prova. Nesse sentido, pode oficiar aos Conselhos Tutelares e aos CRAS (Centros de Referência de Assistência Social). Além disso, a Saúde, a Educação, o Ministério Público, os Centros de Defesa da Criança, a Defensoria Pública devem estar preparados para acolher a criança vítima, evitando que percorra uma via crucis desnecessária, seguindo um fluxograma que a conduza a repetir sua história o menor número de vezes possível, recebendo, de maneira coordenada, atenção profissional nos diferentes níveis a que faz jus. Da mesma forma que deve haver uma articulação entre os órgãos executivos de proteção à criança, também é oportuna a comunicação e a integração entre os diversos juízos, perante os quais uma mesma situação de abuso/violência/exploração seja objeto de análise. Tal procedimento viabiliza a uniformidade das decisões, especialmente aquelas que dizem respeito ao “destino” da criança-vítima: guarda a um dos genitores ou à família extensa, vedação de visitas, acolhimento institucional etc. Ademais, evita-se, com isso, a revitimização, através da repetição, pela criança, das circunstâncias do abuso a um sem-número de profissionais.
2.4 Soluções para o aprimoramento dos métodos atualmente utilizados no depoimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
É tempo de valorizar os danos psíquicos causados nas vítimas de violência sexual, investindo na criação de cargos de peritos psicólogos e psiquiatras, especialistas em crianças e adolescentes, e, quem sabe, criando quesitos (a exemplo do que ocorre com as lesões corporais e o estupro), liberando a criança da reedição do trauma sempre que é chamada a prestar depoimento e a produzir prova de um fato em que figura como vítima e não ré.
Outros elementos de prova que não costumam ser valorizados pelo Judiciário, como o estudo social e a avaliação criteriosa do abusador, devem se aliar, alargando o entendimento dos fatos e contribuindo para a busca da verdade real, respeitando o melhor interesse da criança.
Também é importante repensar procedimentos e investir em ações abraçadas pelo manto da interdisciplinaridade.
3. CONCLUSÃO
A revitimização é um dos principais equívocos praticados por magistrados na oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
O depoimento especial é uma estratégia para não vitimizar pela segunda vez a criança ou o jovem que já sofreu algum tipo de violência sexual.
É importante que o magistrado, na falta de uma equipe interdisciplinar, utilize da “rede” local (v.g. Conselho Tutelar e CRAS), em busca de profissionais de serviço social e psicologia, especialmente que possam auxiliá-lo na produção de pareceres técnicos e – até mesmo – no momento da colheita da prova.
O trabalho interdisciplinar no contexto da violência sexual praticada contra criança e adolescentes torna possível a proteção dos direitos da criança, bem como a preservação de sua integridade psíquica diante da experiência do abuso sexual.
BIBLIOGRAFIA:
BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimização da criança abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apuração do evento delituoso. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3246/o-duplo-processo-de-vitimizacao-da-crianca-abusada-sexualmente>. Acesso em: 04 abr.2008.
CEZAR, J. A. D. Depoimento sem Dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.