O voto é o penúltimo refúgio da impotência política; os últimos, o lamento e a apatia.
Em «Brave New World», Aldous Huxley advertiu que não seremos vencidos pelo engano e a opressão impostos exteriormente e que, tal como pensava George Orwell, não se requer um «Irmão Maior» para privar as pessoas de sua autonomia, de sua madurez política e da capacidade e motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar alternativas. Huxley profetizou que as pessoas chegarão a amar sua opressão, a adorar todos os meios que lhes reduzem à passividade e à inércia, e a admirar aqueles que anulem sua capacidade de pensar com sensatez (“a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais”, para dizer com Adam Smith).
É perturbador ver que para a «maioria vencedora» do dia 26 de outubro as evidências de corrupção e desgoverno passem indefinidamente inadvertidas, e que o mundo lúdico e falaz que se construiu entorno dela já não lhe pareça sequer estranho. Uma forma de pensar tão profundamente enraizada na consciência dessa maioria que se torna invisível, normal. Pois a perda do sentido do estranho, de que “algo vai mal”, é um signo de adaptação, e a extensão com que nos adaptamos é um indício de até que ponto cambiamos. Aceitamos tão plenamente a definição da verdade e da realidade que nos vendem, que o desgoverno parece estar colmado de justificativas e que a corrupção é algo natural. Como disse em certa ocasião Jean Paul Sartre, “lo más aburrido del mal es que uno se acostumbra.”
Uma resposta que provisoriamente me vem à cabeça é que resulta sumamente significativa essa espécie de sadomasoquista tolerância ao mal e de renúncia à indignação, toda vez que parecem revelar um turvo mundo de insolvência moral e alienação, de interesses e dominações, cumplicidades múltiples e ganâncias colaterais, impotências aprendidas e insensibilidades voluntárias. Intitulo esse tipo de fenômeno de banalidade da indiferença ou passividade dos triviais.
E uma vez que desde 1755 o modo de atuação de Deus no mundo desapareceu do debate público geral como causa dos males experimentados (J. Shklar), parece que a essa maioria insensata, desinteressada e alheia a todo cuidado ético lhe falta isso que se denomina de referência ou bússola moral. Não exercem nenhuma crítica, nem se opõem jamais a nada e nem por nada lutam que não lhes afete diretamente, porque carecem de pautas morais e normativas sobre o que está bem ou mal. São perfeitamente apáticos em seu diário acontecer e fazem da indiferença e do conformismo uma virtude pública. Não se vêem cúmplices descuidados da cidadania e nem tão pouco são conscientes do bloqueio de seus sistemas morais em todos os sentidos; simplesmente não se entusiasmam nem se rebelam quando tudo está se derrubando ao redor. São os passivamente injustos que não se indignam, que não reagem ou informam de delitos, os que miram a outro lado ante a desonestidade e o enriquecimento injusto, ou bem os que toleram a corrupção e aceitam, com gesto bovino, situações a sabendas de que são injustas, torpes e/ou oportunistas. (J. Shklar)
Estou falando de uma perigosa categoria de seres humanos que pertencem à «maioria vencedora» («o segundo, aquele que em seu dia foi terceiro, já não importa»): a dos que não são nem bons nem maus, senão banais, moralmente inertes, obedientes e planos, silenciosos porque não sabem o que dizer nem, portanto, o que se poderia e deveria fazer; dos que sua principal versão é a indiferença e, com ela, a irresponsabilidade de negar-se a aquilatar responsabilidades próprias e alheias; dos que são incapazes de buscar mecanismos adequados, honrados e inteligentes que coincidam com os fins éticos buscados pelas normas de uma sociedade decente; daqueles que, por crerem que ainda vivem «no melhor dos mundos possíveis», não podem suportar que a luz da virtude brilhe com demasiada força no fascinante mundo da imoralidade. É totalmente possível, por certo, que ao final todos nos comportemos assim e que decidamos (também) pelo descontrole e a inutilidade da cidadania. Isso é exatamente o que Aldous Huxley temia que ocorrera.
E os «indignados derrotados»? O que fazer? Esperar os próximos quatro anos para a aparição messiânica e contingente de algum espectro de «candidato da esperança» ou da «mudança»? Nem por assomo. Temo que já não há tempo para lamúrias, a perplexidade ou a ira passiva. Saber perder (com algo de dignidade) também é uma virtude e a vida é demasiado curta para perder tempo com lamentos inúteis. Há que seguir adiante, porque o “ontem não volta e o amanhã não espera” [nota bene: reconheço que tenho uma peculiar debilidade pela música sertaneja]. Quero dizer, de se falhamos ou não como cidadãos, porque se a democracia significa algo moralmente é necessária e urgente uma incessante «intolerância radical» com relação a esses monstros talhados pelas circunstâncias de uma «maioria» que parece tolerar, incentivar e respaldar o desgoverno e o desbarate egoísta e malicioso da usurpação dos recursos públicos.
Perguntar-se como combater um mau governo é, em boa medida e especialmente, considerar a possibilidade de «dizer não» a um tipo de conduta política e administrativa deplorável, de dissimulação, de diálogo e de promessas vazias. É exigir a disposição, o compromisso e a valentia dos que efetivamente dispõem das condições institucionais favoráveis para tanto. É reclamar que as instituições não sejam indiferentes ao cinismo político que trata de despolitizar e/ou não priorizar o combate ao fenômeno da corrupção pela via da banalização inespecífica. É recordar que não há um problema de corrupção política, distinto do problema da corrupção administrativa e judicial, distinto do problema da corrupção econômica privada, etc. É, depois de tudo, adotar a célebre exclamação de Lutero: “não posso mais, aqui me detenho!”.
A contundente mensagem que se deve enviar continuamente àqueles que permanecem no poder é a de que não é insignificante ou «sem sentido» o que está sucedendo: que a indiferença e a falta de uma adequada, constante e comprometida atuação estatal não é (e não deve ser) a regra. Que o comportamento corrupto já não é uma exceção em um universo de moralidade e que, se assim for, as exceções servem precisamente para confirmar que a regra é errônea (R. Feynman). Que a simples suspeita de que algo vai realmente mal já constitui razão suficiente para atuar e castigar sem piedade os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites da degradação moral e política.
Ademais, trata-se, apenas, de uma questão de não esquecer uma «lei de ferro» que rege a experiência humana: «se procuramos o que está errado, encontraremos muita coisa». Recordemos que tanto os atuais modelos teóricos como as provas experimentais indicam que, à falta de controle e castigo, a solidariedade mútua e o significado social de uma vida digna não se sustentam em presença de aproveitadores, e decaem. Com o fim de que sobreviva a cooperação social, é imprescindível e iniludível controlar, condenar e punir os desonestos. Se o controle, a responsabilidade e o castigo se eliminam, a sociedade se desmorona (M. Gazzaniga). A mera possibilidade de aplicar uma penalização não só favorece atuações morais senão que funciona como uma forma eficaz de incrementar a cooperação: a moral e a cooperação prosperam se o controle e o castigo são possíveis e deixam de funcionar se são eliminados (P. Churchland). Dito de outro modo, a virtude unifica, os vícios dispersam e o castigo corrige.
Este é o verdadeiro custo que, a partir de hoje, há que assumir e pagar para vigiar e denunciar o desgoverno e as práticas corruptas, e o motivo de que tenhamos («vendedores» e «vencidos») que estar constantemente alerta em nossos esforços por combater as infrações aparentemente mais insignificantes, mas que geram (simultaneamente) um sem-número de «injusto enriquecimento» e «injusto empobrecimento».
Em cada uma de nossas pequenas atitudes (de diligência e controle) se expressa a necessidade de que os abusos e os desgovernos cometidos sejam evitados e sancionados, porquanto comprometem e enfraquecem a confiança dos cidadãos não somente na Administração Pública, senão também no próprio conjunto do Estado de Direito. A corrupção não entende de cores e quando se cumula dentro de uma sociedade, uma pessoa, em muitos indivíduos ou em determinados grupos, acabam por transmitir o sinal de que é aceitável comportar-se mal a grande escala. E não se trata somente do legítimo direito de vigiar, denunciar e punir, mas de toda uma «declaração de princípios». Porque, como disse Edmund Burke, “lo único que se necesita para que triunfe el mal es que los hombres buenos no hagan nada”.
Mas, se depois de tudo, o resultado de nossa indignação e de todos os esforços não for suficiente para controlar, perseguir e castigar os que não conseguiram o que Platão considerava como o mais difícil do mundo (“experimentar e abandonar a vida pública com as mãos limpas”), creio que o melhor que podemos fazer é tomar um bom vinho, pôr os pés em alto e ler um bom livro sobre a moralidade humana.
Apaga tudo e vamos embora.