O exercício da posse constitui um tema clássico na doutrina. Nossa dogmática jurídica sofreu fortes abalos no decorrer do século XX com a crise no positivismo que pregava um direito engessado e imune às transformações sociais.
Hoje, a ciência jurídica volta o olhar para a perspectiva da finalidade dos modelos jurídicos, direcionando seu papel e missão perante a coletividade. Deste modo, a função social não só se dirige à propriedade, aos contratos e à família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo.
Os momentos históricos de Savigny e Jhering são insuficientes para exprimir a densidade dos direitos fundamentais nas relações privadas. A posse, hoje, é edificada no Livro Direito das Coisas como um escudo a eventuais ataques à propriedade imobiliária.
Precisa ser considerada como fenômeno de relevante densidade social, com autonomia em relação à propriedade e aos direitos reais. Deve-se descobrir na própria posse a razão de seu reconhecimento.
Necessita ser vista como o direito que mais se aproxima da realidade social. Ao passo que muitos são possuidores e nem tantos são proprietários.
O instituto da posse não pode deixar de receber essa influência civil constitucional de forma a adequar suas regras à ordem constitucional como forma de cumprir a sua função de instituto jurídico, fruto do fato social em si e por isso comprometido com o próprio fundamento do Estado Democrático de Direito e a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana.
Para que ocorra essa visão, necessário despatrimonializar e repersonalizar a posse.
Na função social da posse o possuidor adquire individualidade e busca acesso aos bens que assegurem a si e a sua família o passaporte ao mínimo essencial. Tratam-se de casos em que a propriedade recebe função social, mas quem a concede não é o proprietário e sim um possuidor.
A função social da propriedade recebeu positivação expressa no CC (art. 1228, § 1º), mas o mesmo não ocorreu com a função social da posse; todavia nada impede que se faça a filtragem constitucional e estenda-se tal entendimento para a posse. Esse é o entendimento doutrinário atual.
A busca por moradia é antiga, sempre considerada como uma necessidade fundamental entre os seres humanos. Neste viés, verifica-se que a própria Carta Magna garante tais direitos, entretanto necessita-se de uma materialização desses direitos concedidos e, acima de tudo, visando ao atendimento dos princípios da dignidade da pessoa humana e função social, mesmo que para isso importe em criação de novas leis para efetivamente alcançar e garantir o direito à moradia.
Entendendo a moradia como um direito social fundamental, surge a concessão de uso especial para fins de moradia direcionada aos imóveis públicos, pois é sabida a impossibilidade de usucapir bens públicos.
A concessão de uso para fins de moradia é, portanto, um dos instrumentos utilizados para realização da regularização fundiária, diferenciando-se por se aplicar a imóveis públicos, cujo domínio não pode ser adquirido por particular, garantindo, assim, o direito à moradia às pessoas que residem nestes imóveis insuscetíveis de usucapião. (SOUSA, 2011)
Essa solução foi proposta no Estatuto da Cidade para regularizar a situação de bens públicos situados em zona urbana, entretanto, os artigos referentes a tal tema foram vetados pelo Presidente da República na mensagem nº 730 de 10 de julho de 2001.
Logo após restou editada a Medida Provisória nº 2.220/2001 regulamentando tal questão, entretanto delimitou prazos a fim de solucionar e organizar situações de pessoas que já se encontravam nessa condição (FARIAS, ROSENVALD, 2010)
Importante salientar que somente se transfere posse e jamais propriedade (tal como ocorre nos casos de usucapião em bens privados), contudo, mesmo assim já se consegue resolver e garantir o direito fundamental e constitucional de moradia.
Vale ressaltar que o direito à moradia não é necessariamente a casa própria, mas, sim, um teto onde se viva uma família de modo “permanente” e de forma “digna”.
Resta claro que a concessão de uso especial para fins de moradia resolveria a situação de inúmeros brasileiros que se encontram em situações extremas, que não têm alternativa outra que se apossarem de bens de terceiros para garantia da vida digna. Entretanto, a referida Medida Provisória trava essa solução para casos posteriores à data previamente estabelecida, pois, de acordo com o art. 1º da referida MP, somente será aplicável o direito a concessão de uso àquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição o imóvel para fins de moradia.
Ora, se a concessão de uso especial para fins de moradia é um direito subjetivo definido constitucionalmente, como aceitar a possibilidade de uma Medida Provisória restringir a aplicação deste direito?
Percebe-se assim uma necessidade urgente de alterar o referido texto de modo que tal benefício atinja todos aqueles que necessitem de tal artifício para ter seus direitos sociais garantidos.
Leonardo Sousa aduz:
Portanto, na conversão desta MP em lei, é necessário retirar a data limite para aquisição da concessão de uso especial para fins de moradia, contida no art. 1º da referida MP, só assim será possível a igualdade jurídica àqueles moradores que possuem os requisitos contidos no art. 183, mesmo depois de 30 de junho de 2001, garantido a segurança jurídica de sua posse, independentemente se sua moradia está localizada em imóveis públicos ou privados, pois este instrumento é de suma importância para “propiciar – segurança da posse – fundamento do direito à moradia – a milhões de moradores de favelas e loteamentos irregulares. (SOUSA, 2011)
Adriano Ferriani complementa:
Não se pode dar tratamento distinto a cidadãos que estão em posição fática idêntica. A situação do país não mudou. Os problemas fundiários que afligem o Brasil resultam de causas passadas e presentes. (FERRIANI, 2011)
Retirando por completo qualquer lapso temporal, tal instituto será de extrema valia para efetivar a função social da posse e a garantia do direito constitucional de moradia digna a todos os seres humanos inseridos na atual sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIAS; Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
SOUSA, Leonardo da Silva Carneiro. A constitucionalidade do aspecto temporal na regulamentação da concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM). Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3716, 3 set. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25213>. Acesso em: 23 set. 2014.
FERRIANI, Adriano. Brevíssimas considerações sobre a concessão especial para fins de moradia. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Civilizalhas/94,MI147158,31047- Brevissimas+consideracoes+sobre+a+concessao+especial+para+fins+de>. Acesso em: 24 set. 2014