No presente artigo pretende-se analisar, com base na legislação e na jurisprudência, a possibilidade inclusão de encargos nas faturas vencidas e emitidas pela Companhia fornecedora de energia elétrica em desfavor de entes públicos, em caso de mora.
Preliminarmente, há que se fazer a distinção entre a natureza dos serviços prestados pela concessionária de energia elétrica:
Existem aqueles serviços de natureza continuada, que decorrem do fornecimento e distribuição de energia elétrica aos seus usuários, faturados regular e mensalmente com base no seu consumo diário. Por outro lado, existem aqueles serviços de natureza singular, decorrente de uma necessidade específica da Administração para o fornecimento de energia elétrica e de meios para a sua disponibilização, faturados ao final da prestação dos serviços, com base em contrato previamente pactuado pelos órgãos ou entidade do Governo.
No caso dos serviços de natureza continuada, a Administração adere contratualmente aos termos e condições pré-estabelecidos pela concessionária de energia elétrica, submetendo-se, assim como os demais usuários particulares, ao regime próprio de sua execução, regulamentado por legislação específica. Trata-se de mero contrato de adesão.
Já nos serviços de natureza singular, a Administração contrata os serviços baseado na sua necessidade específica, devidamente estabelecida contratualmente, como, a exemplo, a iluminação de espaço para promoção de evento público ou a iluminação provisória de local de obra, visando possibilitar a sua execução no período noturno.
No primeiro caso, isto é, para os serviços de natureza continuada, é pacífico o entendimento de que a Administração põe-se em condição contratual similar ao do particular ao utilizar os referidos serviços, ou seja, em condições devidamente regulamentadas pelo direito privado.
Nesses casos, há de se ponderar que a influência da Lei 8.666/93, denominada Lei Geral de Licitações e Contratos, que tem como foco os contratos administrativos típicos, isto é, aqueles em que a Administração figura exercendo o summa potestas, fica mitigada em função à relação jurídica que se estabelece nos contratos de adesão.
Em tais contratos, não estão presentes as cláusulas exorbitantes da Administração, que são as prerrogativas de direito público conferidas ao contratante, como condição inerente à salvaguarda do interesse público contido na atuação do ente estatal.
Desse modo, nem todos os contratos celebrados pela Administração possuem natureza pública, existem os denominados contratos privados da administração, regidos predominantemente por normas de direito privado, como acontece no caso em questão, que se encontra, inclusive, previsto no próprio inciso II, § 3º, do art. 62 da Lei n.º 8.666/93.
A despeito do que instituía a Sumula n.º 226 do TCU, atualmente é consenso relativo da doutrina e da jurisprudência que os contratos de fornecimento de energia elétrica, ainda que firmados entre entidades públicas, são regidos predominantemente por normas de direito privado, e por isso, a Administração estaria submetida, assim como os particulares, a pagar por encargos decorrentes do atraso de pagamento, nos termos do previsto, como regra, no Código Civil Brasileiro, independente de norma legal autorizativa.
O entendimento explícito na mencionada Súmula sofreu alteração com o advento das Decisões TCU nº 537/1999-Plenário5 e nº 975/2002-Plenário e, a partir de então, suas disposições já não mais atingem as concessionárias de serviço público.
Não bastasse a natureza jurídica privada desse tipo de relação, cabe aqui também a regra da especialidade, isto é, existindo norma específica que regule tais contratos, neste caso, a Lei 8.987/95 e a Resolução Normativa ANEEL n.º 414/2010, afasta-se a aplicação da norma geral, como é o caso da Lei 8.666/93.
Para esse caso, portanto, a Administração não poderá invocar prerrogativas especiais, tais como deixar de pagar as faturas e seus encargos legais (correção monetária, juros e multa), oriundas, em tese, de contrato de adesão, a não ser que não esteja efetivamente comprovado a prestação dos serviços pela Concessionária ou que o direito de cobrança esteja prescrito, nos termos do que dispõe o §5º do art. 206 e o art. 2.028 do Novo Código Civil.
Apenas a título exemplificativo do entendimento jurisprudencial, no sentido de corroborar o que foi dito acima, cita-se a ementa da Apelação Civel: AC 192803 RN 0057674-91.1999.4.05.0000, do TRF 5ª Região:
“ADMINISTRATIVO. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. COBRANÇA DE MULTA E JUROS DE MORA DE ENTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA MORALIDADE. - DISCIPLINAMENTO DA COBRANÇA DE MULTA PELO ATRASO NO PAGAMENTO DE CONTAS DE ENERGIA ELÉTRICA, QUANDO A UNIÃO SEJA O PODER CONCEDENTE. AUTORIZAÇÃO GENÉRICA PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO, DO ART. 4º, DO DECRETO-LEI Nº 2432, DE 17.05.88, RECEPCIONADO PELA CARTA MAGNA ATUAL, NÃO SE FAZENDO QUALQUER RESSALVA QUANTO A NÃO SER APLICÁVEL ÀS ENTIDADES INTEGRANTES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA QUE ESTEJAM INADIMPLENTES. - O TRIBUNAL DE CONTAS DE UNIÃO, ATRAVÉS DA DECISÃO Nº 537/1999 - PLENÁRIO, POSICIONOU-SE PELA LEGALIDADE DA COBRANÇA DE MULTA MORATÓRIA POR CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇOS DE ENERGIA ELÉTRICA EM CASO DE ATRASO NO PAGAMENTO, MESMO QUANDO A ENTIDADE EM MORA SEJA INTEGRANTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. MUDANÇA DO ENTENDIMENTO ANTERIOR QUE HAVIA ENSEJADO A EDIÇÃO DA SÚMULA Nº 226, HOJE SUPERADA. - QUANDO O PODER CONCEDENTE FIGURA COMO USUÁRIO DE SERVIÇO PÚBLICO, A TEORIA DA PREVALÊNCIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR NÃO TEM APLICABILIDADE, POIS O PODER PÚBLICO, NESTE MOMENTO, DESPE-SE DE SUAS PRERROGATIVAS DE CONCEDENTE DE SERVIÇO PÚBLICO PARA SE IGUALAR AOS DEMAIS USUÁRIOS, ESTABELECENDO COM A EMPRESA CONCESSIONÁRIA UMA RELAÇÃO DE CONSUMO, REGULADA PELO CÓDIGO DE PROTEÇÂO E DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA E DA MORALIDADE, OS QUAIS SE TRADUZEM PELA IGUALDADE DE TRATAMENTO A TODOS OS QUE SE ENCONTREM NA MESMA SITUAÇÃO. - APELAÇÃO PROVIDA.”
Além disso, há que se ressalvar que, para legitimar o direito de cobrança pela concessionária de serviço público, esta deverá comprovar a certeza, a liquidez e a exigibilidade das dívidas apuradas junto aos órgãos e entidades do Governo, para que, só então, possam ser cobrados os valores vencidos e seus encargos legais decorrentes.
Ponto importante a ser destacado, ainda, é que a continuidade da inadimplência, desde que proveniente de regular contratação e de serviços efetivamente prestados pela concessionária de fornecimento de energia elétrica, poderá trazer para a Administração, além dos enormes prejuízos com a cobrança de correção monetária, multas e juros, o pagamento de honorários advocatícios, no caso de cobrança judicial, e a interrupção da prestação do serviço, causando evidentes transtornos aos órgãos e entidades públicos.
Quanto ao segundo caso mencionado, ou seja, para serviços de natureza singular, não parece coerente obedecer à mesma lógica alcançada para os serviços de natureza contínua, que derivam de um contrato de adesão.
Nesse caso, a ótica se inverte, pois a necessidade advém de uma necessidade singular da Administração, fora de alcance do fornecimento regular dos serviços já prestados e regulados pela concessionária de energia. A Administração, nesses casos, não perde a sua supremacia concedida pelo Direito Público e, portanto, cabe ao prestador de serviço obedecer às normas estabelecidas contratualmente, ou seja, aquelas advindas e embasadas na Lei n.º 8.666/93.
Ressalte-se que, nesses casos, a Administração não aderiu a um fornecimento de energia previamente concebido pela concessionária dos serviços, regulamentado por legislação própria, pelo contrário; coube à Administração especificar, a partir de uma necessidade singular sua, o que queria, com seus próprios termos e condições. Se houvesse concorrência de mercado, caberia, inclusive, a licitação dos referidos serviços, cujo vencedor sagrar-se-ia aquele que ofertasse a proposta mais vantajosa para a Administração, de acordo com os critérios previamente estipulados no Projeto Básico e no instrumento editalício.
Para os referidos casos, caberá à concessionária contratada, pleitear seu direito ao recebimento das faturas vencidas a partir da comprovação efetiva dos serviços prestados e com base nas cláusulas de pagamento estipuladas contratualmente.
Conclui-se, portanto, que a forma de contratação de fornecimento da energia elétrica é que vai determinar se é ou não possível a inclusão de encargos nas faturas vencidas e não pagas pela Administração Pública, só sendo possível tal cobrança no caso de contratação, pela Administração, para fornecimento de natureza continuada, haja vista a natureza privada de tal contrato.