1 PRIMEIRAS PALAVRAS
Diante de uma sociedade plenamente desacreditada em seus agentes políticos, a figura da ação por improbidade administrativa se apresenta como indispensável, caracterizando-se como instrumento hábil a se reestabelecer a confiança em uma administração verdadeiramente preocupada com o bem comum. Contudo, visando à manutenção da ordem constitucional, a aplicação das penalidades previstas para o agente praticante de atos de improbidade não pode ocorrer de qualquer forma. Independentemente de quem seja, há que se garantir o devido processo legal.
Por isso, apresenta-se como objeto deste estudo a possibilidade de aplicação do foro por prerrogativa de função, a exemplo da seara criminal, em sede de improbidade administrativa, haja vista a suma necessidade de se resguardar a imparcialidade, face às inexoráveis questões políticas (em sentido informal) envolvidas nas ações de improbidade.
Visando contextualizar o conteúdo em análise, far-se-á uma abordagem analítica, conceituando o instituto da Improbidade Administrativa, a partir de breve exposição dos princípios que regem a Administração Pública, de modo a evidenciar o vínculo essencial deste instituto com o princípio da moralidade, e esclarecendo alguns tópicos acerca da elencada prerrogativa, que, como se verá, nem sempre se caracteriza como uma vantagem, mas sim como uma garantia.
Por fim, adentrando-se finalmente à discussão proposta, serão explanados alguns argumentos a favor da aplicação da prerrogativa de foro e discutidos alguns posicionamentos da jurisprudência pátria, que, já tendo apontando para ambos os lados, hoje ainda não se encontra plenamente pacífica.
Deste modo, nota-se que a importância deste tema justifica a discussão, posto que qualquer avanço na matéria, mesmo que ainda pequeno frente à necessidade, já contribuirá, em prol da justa e correta aplicação da norma constitucional.
Assim, passemos ao estudo.
2 APONTAMENTOS TEÓRICOS PRELIMINARES
Haja vista a grande complexidade envolvendo o tema, faz-se mister compreender a teoria fundamental, para uma análise verdadeiramente inteirada, não embasada em mero senso comum, vez que, neste caso, o conhecimento científico se faz indispensável, para, em ato seguinte, realizar-se a transposição aos fatos sociais, interpretando e aplicando o estudo feito.
2.1 Princípios norteadores da Administração Pública e a figura da Improbidade Administrativa
O instituto da Improbidade Administrativa, sem dúvidas, decorre diretamente dos princípios da Administração Pública, por isso, vale trazer a este estudo uma breve análise, geral e com fim somente norteador.
2.1.1 Princípios Gerais da Administração Pública
No tocante aos princípios gerais da Administração Pública, tratam-se dos princípios que regem o nosso país, surgindo da necessidade de observância obrigatória para um bom administrador.
Em outras palavras, sabendo que a Administração, enquanto figura abstrata, não pode agir per si, é preciso que pessoas atuem em nome dela. Assim, faz-se fundamental que parâmetros sejam definidos, de modo que a atuação não possua grandes disparidades, de agente para agente. Daí surgem os princípios, como elementos de interpretação, orientação e normatização.
Complementando, para Hely Lopes Meirelles (2008, p.), Administração Pública é, formalmente, “o conjunto de órgãos instituídos para a consecução dos objetivos do Governo; em sentido material é o conjunto das funções necessárias aos serviços públicos em geral".
Por fim, adentrando ao estudo em espécie, vale ressaltar o que a Constituição Federal de 1998 determina em seu artigo 37, caput:
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”.
2.1.2 Princípio da Legalidade
O principio da legalidade, talvez um dos mais importantes, dispõe que o administrador público poderá fazer apenas o que está expressamente determinado por lei, sendo assim não poderá agir contra ou além da lei, restrito, portanto, aos seus limites. Logo, se for editado ato sem lei anterior, a consequência é a ilegalidade, que pode ser inclusive controlada pela via judicial.
Conforme Hely Lopes Meirelles (2008, p.) explana, “diferentemente do individuo, que é livre para agir, podendo fazer tudo o que a lei não proíbe, a administração somente poderá fazer o que a lei manda ou permite”. Mais do que isso, inclusive. Não basta que a lei permita, só estará o administrador autorizado a agir se a determinação for expressa. Enquanto, nos termos de Beccaria (2000, p. 72), “cada cidadão pode fazer tudo o que não contrarie as leis, sem temer outros inconvenientes senão os que podem advir de sua ação em si mesma”.
De certa forma, a maioria das normas de Direito Administrativo podem ser obtidas a partir da interpretação teleológica e sistemática deste princípio.
2.1.3 Princípio da Impessoalidade
Tal princípio pode ser estudado sob duas perspectivas: ativa e passiva. Contudo, em ambos os casos, a finalidade pública da administração, enquanto figura abstrata, fica evidente.
A partir da ótica ativa, Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 114) nos ensina que o princípio da impessoalidade
traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. (grifo nosso)
Desta análise, já é possível uma primeira menção ao tema em estudo, conforme grifado.
Por outro lado, quanto ao viés passivo da impessoalidade, Hely Lopes Meirelles (1998, p. 88) explana que “esse princípio também deve ser entendido para excluir a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos sobre suas realizações administrativas”, o que também está sacramentado no artigo 37, § 1º, da Constituição de 1988.
2.1.4 Princípio da Publicidade
É o princípio da administração pública que determina que todo ato administrativo deve ser público. Com isso, presume-se que todos os interessados em relação aos atos praticados pela administração, ao serem lesados ou não, possam ter acesso a tais informações, constituindo-se, assim, a publicidade como requisito de validade do ato.
Ademais, ganhou instrumentalização com a Lei 12.527/11 – Lei de Acesso a Informações Públicas, garantindo aos administrados uma administração transparente em relação a todos os seus atos e informações armazenadas em seus bancos de dados, de interesse particular, coletivo e geral.
Contudo, em determinados casos, o princípio pode ser relativizado. Em geral, a relativização se dá quando o sigilo das informações for de interesse público, como em questões de segurança, preservando-se a soberania.
Nesta senda, a Constituição Federal de 88 prevê diversas importantes regras acerca da publicidade, em seu art. 5º:
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
LXXII - conceder-se-á “habeas data”:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo
2.1.5 Princípio da Eficiência
Conforme Alexandre de Moraes (1999, p. 294), o princípio da eficiência, incluído pela Emenda Constitucional n. 19,
é aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social.
Sendo assim, é imprescindível para que haja um bom funcionamento da administração, para produzir resultados positivos com o menor tempo e melhor qualidade nos serviços prestados à sociedade.
Aqui, encontra-se a eficiência para contratar servidor (escolher o melhor) e a eficiência para contratar serviços (a melhor proposta).
2.1.6 Princípio da Moralidade
Por fim, pelo principio da moralidade, podemos extrair que não basta o administrador cumprir o que determina a lei, mas sim deve ele no seu exercício de função pública respeitar os ditames éticos e morais, ou seja, ser honesto com a sociedade. Visando a preservação do interesse público, ao administrador é vedada a prática de atos imorais.
Em verdade, segundo Ferraz e Dallari (2001, p. 66), “os teóricos do Direito sempre procuraram estabelecer uma distinção entre os preceitos éticos e os preceitos jurídicos”, com a tradicional figura dos dois círculos, a Moral e o Direito, e uma parcial área comum. No entanto, como dito alhures, no Direito Administrativo, essa relação com a moralidade se faz imprescindível à preservação do interesse público.
Contudo, não é tão simples. Para Marçal Justen Filho (apud FERRAZ e DALLARI, 2001, p. 67), “o princípio da moralidade pública é, por assim dizer, um princípio jurídico ‘em branco’, o que significa que seu conteúdo não se exaure em comandos concretos e definidos, explícita ou implicitamente previstos no Direito legislado”. Assim, é preciso, para se aplicar tal princípio, observar “preceitos éticos produzidos pela sociedade, variáveis segundo as circunstâncias de cada caso”.
Portanto, sempre foi um problema essa imprecisão, e ainda é, tratando-se da imoralidade propriamente dita, restando demasiado difícil o ato de caracterizá-la no caso concreto. Contudo, caracterizando-se como uma forma qualificada da imoralidade, surge a Improbidade Administrativa, objetivamente prevista, com hipóteses de cabimento devidamente estabelecidas em Lei, conforme se verá a seguir.
2.1.7 A Improbidade Administrativa
A figura da Improbidade Administrativa é regida pela Lei Federal n. 8.429, de 2 de junho de 1992, mais conhecida como LIA, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.
Nesta senda, de acordo com Ferraz e Dallari (2001, p. 69), “a prática de ato de improbidade configura grave violação ao princípio da moralidade, justificando a aplicação da sanção”. Mas quais são, afinal, estes atos de improbidade? Felizmente, a LIA não foi “econômica”, e definiu com presteza as hipóteses.
No artigo 9º, a referida lei prevê os atos que importam enriquecimento ilícito, como, por exemplo, receber vantagem econômica para facilitar a aquisição de bem por preço superior ao valor de mercado ou utilizar, em obra particular, máquinas de entidade pública. Em seguida, no artigo 10, os atos que causam prejuízo ao erário, realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou dispensar indevidamente processo licitatório. Por fim, no artigo seguinte, os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, como negar publicidade aos atos oficiais ou frustrar a licitude de concurso público.
No tocante às penalidades aplicáveis, o artigo 12 da LIA estabelece diversas possibilidades, gradualmente à gravidade e à espécie do ato, podendo, portanto, a prática gerar perda de bens ou valores, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, multa civil, entre outras sanções. Porém, vale destacar que as sanções decorrentes da Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa não excluem as demais sanções penais, civis ou administrativas cabíveis.
Portanto, Ferraz e Dallari (2001, p. 69) foram felizes em afirmar que, por serem severas as sanções, “é preciso especial cuidado para não adentrar o mérito da decisão administrativa, nem deixar-se levar por concepções pessoais de ordem puramente ética, ou religiosa ou política, atropelando outros princípios constitucionais”. E é exatamente daí que surge o fundamento para a análise que será feita neste estudo, mais a frente, de modo a justificar a suma necessidade da aplicação equiparada do instituto da Prerrogativa de Foro aos casos de Improbidade Administrativa.
2.2 O instituto da Prerrogativa de Foro
Em se tratando do foro por prerrogativa de função, sabendo que é uma imunidade relativa, lato sensu, Mirabete (2000, p. 67) é categórico ao afirmar que consiste “no direito de determinadas pessoas de serem julgadas, em virtude dos cargos ou funções que exercem, pelos Órgãos Superiores da Jurisdição, em competência atribuída pela Constituição Federal ou constituições estaduais”. Como se nota, a competência para atribuição é da Constituição, ponto importante para a discussão a ser realizada adiante.
No mais, para esclarecer, segundo Rodrigues (2012, s.p.),
Nos casos de prerrogativa de função a jurisdição será de competência de órgãos superiores ou colegiados do judiciário de acordo com as constituições Estaduais e Federal. O Poder Constituinte Originário pensou que deveria privilegiar àqueles que exercem atividades no topo da hierarquia dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário) dando-lhes a prerrogativa de função, ou seja, um foro de julgamento diferenciado dos outros cidadãos.
Contudo, Tourinho Filho (2002, p. 126) nos alerta: enquanto o privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Logo, o instituto existe em razão da função, e não da pessoa, restando intocável o aclamado princípio constitucional da isonomia, aplicando-se a prerrogativa por ser realmente necessária, em um Estado de Direito, em razão da função exercida pela pessoa.
Não há que se falar, portanto, em privilégio ou vantagem. Resguarda-se a prerrogativa por questões alheias à pessoa. Além disso, há casos em que a prerrogativa se apresenta com certa desvantagem, inclusive. Basta lembrar-se do caso Mensalão (Ação Penal 470, processada e julgada originariamente pelo Supremo Tribunal Federal). Sem dúvidas, há um prejuízo inevitável: a possibilidade de se recorrer da decisão é consideravelmente menor, relativizando-se até direitos constitucionais da pessoa.
Porém, ainda assim, faz-se necessária. Por isso, traz-se à baila, a partir de agora, uma importante discussão, ainda não pacífica na doutrina e na jurisprudência pátria: a possibilidade de se aplicar a prerrogativa aludida em sede de Improbidade Administrativa, tendo em vista a natureza da ação e suas graves consequências.