1. Acórdão
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. (STF – ADPF 54 – Rel. Min. Marco Aurélio – DJE nº 80, divulgado em 29/04/2013 ).
2. A ADPF n. 54
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, em 17 de junho de 2004, propôs perante o Supremo Tribunal Federal Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, distribuída sob o n. 54, indicando como preceitos vulnerados o art. 1º, inc. III (princípio da dignidade da pessoa humana); o art. 5º, inc. II, (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); art. 6º, caput e art. 196 (direito à saúde), todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pelo Poder Público ao se proibir, através da atuação do Poder Judiciário – por meio de juízes e tribunais -, a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos. Tal proibição calcava-se no conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Distribuída a ação, o Ministro Relator Marco Aurélio concedeu, em 01 de julho de 2004, medida liminar para autorizar a antecipação de parto de fetos anencéfalos. Todavia, em 20 de outubro de 2004, o pleno do Supremo Tribunal Federal não a referendou.
Contra o referendo, cassando a liminar, votaram os ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Carlos Velloso e Nelson Jobim. Além do relator, votaram pelo referendo da liminar os ministros Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Após a admissão de várias entidades de âmbito nacional na qualidade de amicus curiae, dentre elas a CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil; Conectas Direitos Humanos; Centro de Direitos Humanos; Instituto de Bioética, Direitos e Gênero; e da realização de audiências públicas em 26 e 28 de agosto, 04 e 16 de setembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal, por maioria (8x2), nos termos do voto do Ministro Relator Marco Aurélio, julgou procedente o pedido formulado na ADPF 54 para decidir inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo caracteriza a conduta tipificada nos artigos 124 ou 126 do Código Penal.
Foram vencidos os ministros Cezar Peluzo e Ricardo Lewandowski. Acompanharam o relator os ministros Celso de Mello, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Carmen Lúcia, Ayres Britto e Gilmar Mendes.
Desta feita, tem-se por objetivo analisar os efeitos do julgamento da ADPF 54 à luz da nova summa divisio prevista na Constituição da República do Brasil de 1988, especificamente a interpretação do direito à vida conferida pelo Supremo Tribunal Federal e sua dimensão individual e coletiva.
3. O direito à vida e sua concepção individual e coletiva
A Constituição brasileira de 1988 assegura a inviolabilidade do direito à vida e sua existência com dignidade, conforme disposições expressas insertas no art. 5º, caput, combinado com o art. 1º, inciso III.
Todavia, o direito fundamental à vida deve ser compreendido numa tríplice concepção, ou seja, como direito de nascer, de permanecer vivo e de existir com dignidade2.
Nesse diapasão, cumpre estabelecer o marco inicial da vida humana, a partir do qual o ordenamento jurídico deve protegê-la, eis que a Constituição não tratou de estabelecê-lo expressamente. Nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, em seu voto proferido no bojo da ADPF n. 54, sobre o início da vida, a Constituição é de um silêncio de morte; ou seja, nada diz.
Ocorreram três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida desde a concepção, o que importava em proibir toda e qualquer hipótese de aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intrauterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira, a qual restou aprovada, entedia que a Constituição não deveria estabelecer o marco inicial da vida humana3.
Portanto, coube à doutrina e à jurisprudência a missão de estabelecer o marco inicial da vida humana.
Certo é que não há consenso sobre esta questão, nem biológico ou mesmo filosófico. O que se tem são posições sobre o tema:
a) a vida tem início a partir da concepção;
Segundo Alexandre de Moraes o início da vida humana deve ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista dar-lhe enquadramento legal, e, do ponto de vista biológico, a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto4. A vida viável começa, porém, com a nidação, quando se inicia a gravidez. Tem-se, então, que o embrião (óvulo fecundado pelo espermatozoide) representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela mãe5.
b) a vida tem início a partir da nidação;
Essa posição lança mão do argumento de que há potencial de vida quando o embrião se fixa no útero materno, já que o embrião não pode se desenvolver fora dele6. Isso ocorre, em regra, no prazo de sete a dez dias após a fecundação. Com isso o zigoto é fixado no útero materno e a vida se torna viável7.
c) a vida tem origem com a formação do sistema nervoso central;
O dado fundamental para essa perspectiva é a capacidade neurológica de sentir dor ou prazer8. Ocorre a partir do décimo quarto dia de concepção. Trata-se de uma leitura inversa do marco legal que determina a morte humana. A Lei n. 9.434/97, estabelece, em seu art. 3º, que “a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”. Portanto, a morte humana é caracterizada pela morte encefálica. Lado outro, o início da vida humana seria marcado pela formação do sistema nervoso central.
d) a vida tem início quando o feto pode existir independentemente da mãe.
Por fim, essa teoria defende que a vida só teria início a partir da vigésima terceira semana de gestação, quando a vida do feto seria independente em relação à da mãe9.
A questão submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal no bojo da ADPF n. 54, mostra-se ainda mais complexa do que delimitar o início da vida humana. Trata-se de decidir se o feto portador de anencefalia é titular de vida humana ou não e se antecipação terapêutica do parto, quando do diagnóstico, tipifica as condutas insertas no art. 124 e 126 do Código Penal.
A anencefalia é definida pela literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico10. Todavia, os anencéfalos não são natimortos cerebrais, tanto que o Conselho Federal de Medicina revogou a Resolução CFM n. 1752/200411, que assim os tratava, editando a Resolução CFM n. 1949/2010. Importante frisar que a anencefalia não é incompatível com a vida extrauterina12.
Desta feita, a decisão proferida pelo STF, ao entender que se mostra inconstitucional interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124 e 126 do Código Penal, provoca repercussões de ordem individual e coletiva.
Atem-se a essa análise porque se defende que a summa divisio clássica Direito Público e Direito Privado não foi recepcionada pela Constituição brasileira de 198813.
A nova summa divisio proposta pela Constituição brasileira de 1988 é Direito Individual e Direito Coletivo. Chega-se a essa conclusão, com espeque na doutrina de Gregório Assagra de Almeida, a partir da análise do texto constitucional:
O Capítulo I do Título II da CF/88 explicita o fundamento da nova summa divisio ao fazer constar do texto constitucional, em cláusula expressa, as seguintes expressões: Dos Direitos e dos Deveres Individuais e Coletivos. Outros argumentos existem, cabendo destacar a incompatibilidade do dualismo clássico, que separa Estado da Sociedade, com o Estado Democrático de Direito e a necessidade de se estabelecer o enquadramento metodológico dos direitos, levando-se em conta os planos da titularidade e, especialmente, o plano da proteção e da efetivação do direito, para os quais se volta a ciência jurídica, de dimensão prática estabelecida, em tempos atuais, pelo pós-positivismo jurídico14.
A partir dessa nova summa divisio constitucionalizada, torna-se possível a construção de novos paradigmas da relação entre sociedade e Estado ou entre indivíduos e Estado. Permite-se, assim, a reconstrução de novos princípios e diretrizes para a administração pública, impondo-se uma atuação vinculada ao atendimento dos direitos e garantias fundamentais individuais ou coletivos. Muitos privilégios do Poder Público resultam de uma visão autoritária e distorcida do Estado e do seu papel na sociedade. A própria atuação descomprometida de determinados administradores, que banalizam vários dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, tem amparo em um direito público elaborado com base em parâmetros inconciliáveis com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Supremacia do interesse público sobre o particular, insindicabilidade do mérito dos atos administrativos discricionários, presunção de legitimidade dos atos administrativos, entre outras diretrizes que regem a atuação do Poder Público, precisam ser revisitados à luz dessa nova summa divisio constitucionalizada15.
Para a concretização dos direitos fundamentais, in casu, o direito fundamental à vida, torna-se imprescindível o estudo das implicações jurídicas e efeitos das decisões judiciais a partir da adoção e exploração metodológica da summa divisio constitucionalizada Direito Coletivo e Individual.
Portanto, a partir da decisão prolatada, por maioria, pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 54, torna-se possível a antecipação terapêutica de fetos anencéfalos, sem que tal constitua os crimes insertos nos artigos 124 e 126 do Código Penal.
Como dito alhures, essa decisão produz efeitos numa perspectiva individual e coletiva, ao assentar o STF que a vida humana que merece proteção é somente aquela considerada viável.
Produz efeitos numa perspectiva individual uma vez que possibilita que toda mulher quando grávida, eis que constatada a anencefalia de seu feto, tem a prerrogativa de abortar.
Não se olvide que a decisão do STF também produz efeitos no plano coletivo, ao assentar que a vida humana inviável não merece guarida jurídica.
A anencefalia é uma doença congênita letal, mas não é a única. Existem outras como, por exemplo: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holoprosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. São todas afecções congênitas letais16.
Destarte, a decisão da ADPF n. 54 erige-se em precedente capaz de possibilitar a interrupção da gestação de inúmeros outros fetos também portadores de doenças congênitas letais, o que se afigura demasiadamente indesejável.
Não bastasse, agiu o STF como legislador positivo, ao criar, através de uma interpretação conforme a constituição, uma terceira hipótese legítima da prática de aborto, qual seja, quando diagnosticada a anencefalia.
Tem-se que tal decisão representa um ativismo judicial, consequência de uma judicialização da política e das relações sociais que experimenta o Brasil, sobretudo, pela atuação do STF.
Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo18.
Explica Luís Roberto Barroso que há causas para a ocorrência do fenômeno. A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente como elemento essencial para as democracias modernas. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. A terceira diz respeito ao fato de que agentes políticos preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais haja desacordo razoável na sociedade, evitando o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos19.
No Brasil, a judicialização da política e das relações sociais, decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado e o sistema de controle de constitucionalidade vigente (difuso-concreto e concentrado-abstrato). Essa fórmula foi maximizada no sistema brasileiro pela admissão de uma variedade de ações do sistema abstrato20 e pela previsão de amplo rol de legitimados a propô-las21. Nesse contexto, a judicialização constitui fato inevitável, uma circunstância decorrente do modelo institucional constitucional vigente e não uma opção política do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Entretanto, o modo como venham a exercer esse mister é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial22.
O ativismo judicial está associado a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação do Legislativo e Executivo. Há um distanciamento dos juízes e tribunais de sua função típica de aplicação do direito vigente e uma aproximação de uma função atípica de criação do próprio direito aplicado23.
Nesse diapasão, a judicialização é uma circunstância do desenho institucional constitucional brasileiro. Lado outro, o ativismo é uma atitude24, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance25.
Registre-se que o ativismo judicial, diferentemente da judicialização, pode representar um entrave à consolidação da democracia, uma vez que juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. A investidura no exercício da jurisdição não possui legitimidade popular.
Quando o Judiciário invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, desempenha um papel que é político. Essa possibilidade das instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos caracteriza a denominada dificuldade contramajoritária26.
Quando o Supremo Tribunal Federal declara inconstitucional um ato normativo editado pelo Legislativo ou um ato emanado do Presidente da República, ele se opõe à vontade de representantes do povo. Exerce, então, um controle não em nome da maioria dominante, mas contra ela.
Não bastasse, cabe aos três Poderes interpretar e aplicar a Constituição. Entretanto, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Para evitar que este se transforme em um superpoder, se sobrepondo aos demais, prejudicando o princípio dos freios e contrapesos, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos27.
Capacidade institucional envolve a determinação de qual poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em certa matéria. O risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis pode recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente, está preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público28.
Por fim, a primeira consequência drástica do ativismo judicial é a eletização do debate, eis que o Judiciário tem métodos, linguagem, categorias e discurso próprios. Por conseguinte, aqueles que não dominam tal linguagem estão excluídos da discussão jurídica. O uso de argumentos jurídicos para resolver problemas sociais complexos pode dar a impressão de que a solução para muitos problemas políticos não exige engajamento democrático, mas em vez disso juízes e agentes públicos providenciais29.
Desta feita, não tem o Judiciário o condão de avocar a vontade popular e criar o direito ao decidir ao invés de aplica-lo.
Especificamente acerca da antecipação terapêutica de fetos anencéfalos tramitavam no Congresso Nacional projetos de lei com o intuito de regulamentar, com legitimidade popular, tal prática. Tratam-se do PL nº 4403/2994, de autoria da Deputada Jandira Feghali, que acrescenta um inciso ao art. 128 do Código Penal para, segundo a ementa, “isentar de pena a prática de ‘aborto terapêutico’ em caso de anomalia do feto, incluindo o feto anencéfalo, que implique a impossibilidade de vida extrauterina”; do PL nº 50, de iniciativa do Senador Mozarildo Cavalcanti, também incluindo um inciso no citado dispositivo do referido código, para possibilitar o aborto se o feto apresentar anencefalia, desde que precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal; PL nº 183 do Senador Duciomar Costa.
Recentemente, o anteprojeto ao Código Penal prevê, em seu artigo 128, inciso III, a possibilidade da prática do aborto se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina. Todavia, em ambos os casos, tal anomalia deverá ser atestada por dois médicos.