8. Noções de Contrato
Segundo a doutrina, para que o contrato tenha validade e possa ter seu cumprimento exigido, é necessária a observância dos princípios como autonomia da vontade, consensualismo, obrigatoriedade da convenção, relatividade dos efeitos do negócio jurídico e boa-fé.
Autonomia da vontade é caracterizada pela faculdade que as partes possuem de contratar livremente, escolhendo a outra pessoa, o tipo e negócio a ser realizado, o conteúdo das cláusulas com suas respectivas obrigações, utilizando-se de seu arbítrio para concluir livremente suas vontades.
Deve-se ressaltar que tal princípio não é absoluto posto que as partes, ao contratarem, devem observar a ordem pública, os bons costumes e o dirigismo contratual. O conceito desses três limitadores é amplo e varia de acordo com o contexto social da época, não sendo possível enumerar taxativamente seus significados.
Já o consensualismo parte da idéia de que o contrato nasce do puro consenso dos interessados, sendo uma conseqüência das manifestações de vontade dos contratantes.
A obrigatoriedade da convenção tem como uma de suas funções a de conciliar interesse entre as partes e, uma vez pactuados os objetivos, os contratantes se obrigam por suas palavras, que também são limitados pelos mesmos fatores citados anteriormente.
Quanto aos efeitos eles são relativos por obrigar apenas as partes. Entretanto, não se pode deixar de observar a possibilidade, diante do fato concreto, de manifestações de oponibilidade de terceiros interessados.
E por fim, a boa-fé que traduz a idéia de fidelidade ao que foi pactuado, na expectativa recíproca de honradez e confiança da outra parte.
Entretanto, conforme exposto, o contrato de adesão, característico do cartão de crédito não se enquadra em tais princípios. Nele, não se discutem as cláusulas, elas são impostas normalmente por aqueles que detém superioridade econômica. O outro contratante apenas adere ou não à proposta oferecida pelo primeiro, não sendo possível àquele negociar ou alterar o conteúdo de qualquer um dos itens insertos no texto contratual.
9. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor
Como não há lei específica que regulamente o cartão de crédito, e por tratar-se de uma relação de consumo e a doutrina viu amparo no Código de Defesa do Consumidor. Assim, o contrato de cartão de crédito deve ser interpretado à luz de tal dispositivo, observando-se todos seus objetivos e princípios.
Cláudia Lima Marques14, afirma que o Código de Defesa do Consumidor “é aplicável a todas as relações de consumo, contratuais e extracontratuais no mercado brasileiro, que tenham como partes um consumidor e um fornecedor de serviços ou produtos”.
O Código de Defesa do Consumidor aborda em seu artigo 54 o referido contrato, in verbis:
“Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.
A estrutura do Código referido visa proteger quem ocupa o pólo mais fraco das relações contratuais, que normalmente é o consumidor, no caso o titular do cartão, contrapondo-se ao ofertante do produto, que pode ser a emissora de cartões, uma instituição financeira ou mesmo um estabelecimento comercial.
Devido ao visível desequilíbrio entre as partes, as cláusulas devem ser claras, de fácil entendimento e passível de conhecimento do consumidor antes da formalização da relação de consumo. Caso não sejam observadas essas formalidades, o consumidor não se obriga perante o outro contratante.
E, mais especificamente, o § 3º do art. 54, do Código de Defesa do Consumidor, dispõe que os mesmos “serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor”. E havendo dúvidas quanto à aplicação de cláusulas contratuais, as mesmas devem ser interpretadas de maneira favorável ao consumidor conforme prescreve o art. 47. do mesmo diploma legal.
Assim, o titular o cartão de crédito é equiparado ao consumidor e quanto à emissora, as instituições financeiras e o estabelecimento comercial a doutrina cita o parágrafo 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, para caracterizá-los como fornecedores, in verbis: “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo decorrentes de caráter trabalhista”.
Este é o entendimento do Tribunal de Alçada de Minas Gerais:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRÇÃO DE CARTÃO DE CRÉDITO. INCIDÊNCIA DAS NORMAS DO CDC (Art. 2º e 3º, § 2º). INVERSÀO DO ÔNUS DA PROVA. – As relações entre as administradoras de cartões de crédito e os usuários enquadram-se no amplo conceito de prestação de serviços, trazido pelo Código de defesa do Consumidor, consoante os art. 2º e 3º - Assim, caracterizado o contrato entre as partes como relação de consumo, entendo correta a inversão do ônus da prova nos autos, principalmente como forma de equilibrar as relações entre consumidor e fornecedor objetivo fundamental da norma insculpida no art. 6º, inciso VII, do CDC”.
(Agravo de Instrumento 0356808-1. Relator Domingos Coelho)
Como se vê o usuário é classificado como consumidor e a administradora como fornecedora.
10. Cláusulas Abusivas
Cláusulas abusivas são aquelas que se encontram no corpo do contrato e que causam uma situação de desequilíbrio entre as partes, ou potencializado a força do contratante mais privilegiado ou por minimizar a do naturalmente mais fraco. Assim, torna-se necessária à interferência do Estado em busca da harmonia contratual inexistente, protegendo, nesse caso, a parte desfavorecida.
Em geral, o que diz respeito a abusividade no contrato de cartão de crédito, é a cláusula-mandato, a cláusula de transferência de riscos e a que permite a alteração unilateral do contrato.
10.1. Cláusula-Mandato
Essa cláusula, no sistema contratual do cartão de crédito, consiste na outorga pelo usuário, titular do cartão, de um mandato especial à administradora com poderes especiais para agir contra o próprio outorgante.
Normalmente, o conteúdo da cláusula obriga o titular a um mútuo bancário; a negociar prazos, juros, comissões e encargos; a assinar títulos representativos do mútuo bancário; a liquidar e confirmar o valor da conta das despesas, aceitando a correição dessa, substabelecer os poderes de aceitar letras de câmbio para outra empresa associada à instituição financeira e à administradora.
As soluções encontradas, quando se questionava a licitude de tal cláusula, mudaram com a publicação do Código de Defesa do Consumidor.
Antes do Código do Consumidor, eventuais desavenças eram resolvidas à luz do Código Civil, havendo duas correntes com posições divergentes. Uma delas sustentava que tal cláusula era inválida, pois, o mandatário sempre deveria agir em beneficio do mandante, não podendo lhe prejudicar. A segunda posição, defendida pelo Supremo Tribunal Federal, sustentava a idéia de que haveria de ser invalidada somente se houvesse abuso no desempenho do mandato. Essa última interpretação era a majoritária. Fácil observar a dificuldade do usuário em provar tais condutas.
Depois do Código do Consumidor reconheceu-se o princípio da boa-fé e abusividade de certas cláusulas contratuais, entre elas a cláusula-mandato.
Abaixo, segue decisão que demonstra claramente o entendimento da abusividade da cláusula –mandato pela jurisprudência.
“CIVIL. NULIDADE. NOTA PROMISSÓRIA CONSTIRUÍDA A PARTIR DE AMNDATO INSERIDO EM CLÁUSULA. CONFLITO ENTRE OS INTERESSES DO REPRESENTNATE E DO REPRESENTADO. PRECEDENTES. Não tem validade a cambial emitida a partir de mandato outorgado pelo devedor, no bojo do contrato com titular de cartão, em favor da empresa credora. (É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutua’rio vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste – verbete n. 60. da Súmula desta Corte). Recurso conhecido e provido. Por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento”.
(STJ – Recurso Especial n. 144375/SP – Relator Ministro César Asfor Rocha)
Nessa decisão fica claro o entendimento de que a nota promissória foi considerada nula porque se verificou o conflito de interesses do representante, administradora e do representado, consumidor.
Atualmente, tal entendimento é pacífico tanto na doutrina quanto na jurisprudência, devendo a administradora prestar contas ao titular, quando age na qualidade de mandatária do mesmo.
10.2. Extravio, Furto ou Roubo de Cartão de Crédito
Regra geral há nos contratos de cartão de crédito cláusulas que transfere para o titular a responsabilidade pelo uso do cartão, na eventualidade de se ocorrer furto, roubo ou extravio do mesmo, até a comunicação do ocorrido à administradora. Os julgados atuais divergem sobre a legalidade de tal cláusula, havendo entendimento diverso no tocante a tal assunto.
A cláusula em questão é nitidamente contrária ao art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor que protege o princípio da boa-fé nas relações contratuais, uma vez que atribui ao titular toda a responsabilidade de um negócio que não foi realizado pelo mesmo. É uma típica transferência de riscos sendo que os mesmos são conseqüências naturais da atividade de administrar o sistema contratual cartão de crédito, não sendo razoável repassar tal responsabilidade para o usuário.
O cartão, em si, não passa de uma forma auxiliar de identificação do usuário, devendo o fornecedor, no ato da compra, conferir a titularidade, o vencimento do cartão e o limite disponível para compra. Dessa maneira, o risco é de quem tem o dever de identificar o consumidor, assim como a emissora tem de viabilizar, aos seus fornecedores credenciados, informações e condições para se concretizar tal confirmação de titularidade.
O entendimento predominante, jurisprudência e doutrina, é que, comprovada a comunicação, o titular fica isento de qualquer responsabilidade pelo uso indevido.
10.3. Indisponibilidade de Exceções á Administradora do Cartão de Crédito
Segundo Fran Martins15 o princípio da inoponibilidade das exceções é “aquele que não permite que uma pessoa deixe de cumprir sua obrigação, opondo exceções pessoais com qualquer obrigado anterior”.
Normalmente, os contratos de cartão de crédito contêm uma cláusula específica que impede o titular de reter o pagamento das despesas caso ocorra um eventual desentendimento ou descumprimento de obrigação do fornecedor. A conseqüência direta de tal norma é um duplo prejuízo para o consumidor porque além de suportar o inadimplemento do fornecedor, acaba por arcar com as despesas contraídas, pagando sua fatura, cumprindo seu compromisso no contrato, sem, ter satisfeita sua contra-prestação.
E, além disso, caso o usuário faça o referido bloqueio, pode ser executado pela administradora por inadimplemento de obrigação. Esse tipo de disposição rompe com as ligações internas do sistema contratual do cartão de crédito, isolando as relações particulares como se as mesmas fossem autônomas e não interligadas. Tal cláusula de inoponibilidade de exceções à administradora é contrária ao ideal de proteção ao consumidor, contrariando expressamente o art. 51, I, do Código do Consumidor, que assim dispõe: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços que impliquem renúncia ou disposição de direitos [...] “.
Assim, esse artigo impede que o fornecedor se exonere de sua obrigação, estando o titular protegido contra tal arbitrariedade inserida nos contratos de cartão de crédito, lhe sendo possível argüir suas despesas pessoais face à administradora, ao pagar a fatura de compras.
10.4. Alteração Unilateral do Contrato
Os contratos de adesão dos cartões de crédito entre usuários e administradoras possuem cláusulas que permitem a alteração unilateral do contrato, com simples aviso ao usuário, como informações lançadas na fatura mensal ou redação de um novo contrato sendo registrado no cartório.
Elas definem a manifestação de vontade do usuário, quanto às alterações posteriores, estipulando seu consentimento de maneira expressa ou tácita.
O art. 51, XIII do Código de Defesa do Consumidor que dispõe serem nulas as cláusulas que “autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou qualidade do contrato, após sua celebração”. Entretanto, deve-se ressalta que a alteração pode ser válida caso ocorra prejuízo para o usuário.
Pode a administradora realizar alterações funcionais, relacionadas com a administradora do sistema, mas jamais serão válidas as alterações cuja conseqüência sejam novas obrigações ou restrições a direitos adquiridos pelo titular do cartão.
10.5. Juros, Multa e Encargos Contratuais
Os juros são os frutos do capital empregado. Eles representam a compensação do capital, o tempo e o risco do reembolso. Quanto aos juros moratórios eles decorrem da mora, eles indenizam o credor pelo não cumprimento da obrigação no tempo e lugar convencionado, eles são impostos pela lei.
Multa moratória, segundo de Plácido e Silva16 “Também dita de pena moratória é a que se fixa para pagamento, quando ocorre retardamento na execução da obrigação contratada.”
Assim, Álcio Manoel de Souza Figueiredo17 diz que juros e multa moratória no sistema contratual do cartão de crédito são: ”os débitos lançados pela administradora na fatura mensal, em decorrência do atraso, falta ou pagamento inferior ao valor mínimo na data de vencimento.”
Assim, os juros seriam os frutos dos débitos que os consumidores contraíram com as administradoras, sendo contados, aumentando o valor da dívida, à medida que a mora persiste, já que não foi cumprida a obrigação no tempo e lugar convencionado.
E a multa, é a pena pelo atraso ou não pagamento de, pelo menos o valor mínimo da fatura. Geralmente este valor corresponde a 20% do total da fatura, e quando paga pelo consumidor, a administradora entende que foi financiamento do débito da fatura. Os juros e multas foram limitados para que não se ocorra abusos e se evitar a usura.
Em relação aos juros moratórios no cartão de crédito, não ocorre abusividade segundo a doutrina e a jurisprudência. Eles são convencionados em 1% ao mês, sobre o saldo devedor, pro rata dia. O mesmo acontece para com as multas moratórias, que foram estabelecidas e 2 %, perfeitamente de acordo com o § 1º do art. 52. do Código do Consumidor.
Porém, haverá abusividade se os contratos além dos juros e multas moratórios, incluírem a multa convencional, e, honorários advocatícios em fase amigável. Há abusividade por contrariar o artigo citado acima, quanto à multa e o § 3º do art. 20. do Código de Processo Civil por cobrar honorários que não prestados em juízo.
Mas a prestação mais onerosa e abusiva para o usuário são os encargos contratuais, que são elevadíssimos, girando em torno de 10% sobre o valor do débito. A melhor doutrina defende o limite constitucional de 12% ao ano para os juros reais, aplicação do § 3º do art. 192. da Constituição Federal, porém, o STF não entende da mesma forma como discorre Cláudia Lima Marques18:
“O art. 192, § 3º, da Constituição federal expressamente prevê um limite de 12 % para juros reais, mas a jurisprudência da Corte Constitucional brasileira, o Supremo Tribunal Federal interpretou a norma de forma restritiva, considerando que lhe faltava regulamentação específica. A solução encontrada pelo STF, porém, não alcançou unanimidade nas jurisdições inferiores; algumas cortes estaduais e juízes de primeiro grau continuam a considerar – em minha opinião corretamente – inconstitucional juros reais superiores a 12 % previstos e envolvendo crédito.”
No sentido de limitação dos juros praticados pelas administradoras de cartões de crédito, seguem decisões ilustrativas:
“Cartão de crédito – Juros – Limitação – Administradora não integrante do sistema financeiro – Lei da Usura – Submissão. Pagamentos efetuados – Repetição não devida. Tratando-se a Ad ministradora de cartão de crédito de pessoa jurídica não integrante do sistema financeiro, portanto se autorização para como tal funcionar, submete-se ao limite de juros de 12 % ao ano (lei da usura), não podendo ainda capitalizar os juros (art. 10. e 4º do Dec. 22.626). Os pagamentos efetuados voluntariamente não devem ser repetidos (art. 965. do CC) se não foram feitos por erro nem houve qualquer vício de vontade, não se equiparando à quantia indevida referida no art. 42. do Codecon aquela cobrada com base em cláusula contratual clara, mesmo que se trate de parcela convencionada contra legem, considerando-se, a partir do pagamento, justificada a cobrança, em face da aceitação de quem pagou.”
(TAMG – Apelação Cível 0339776-0 – relatora Vanessa Verdolim Andrade).
Nessa decisão, os juros foram limitados pela Lei de Usura, por entender que a administradora não é instituição financeira. Assim, ficou entendido que as instituições financeiras podem ser superiores a 12%, mas as administradoras não.
CARTÃO DE CRÉDITO – CLÁUSULA POTESTATIVA – JUROS – LIMITAÇÃO – Considera-se potestativa e, portanto, afrontosa do art. 51, X do CDC, cláusula que, em contrato-padrão de cartão de crédito, autoriza o cálculo dos encargos financeiros pelas “taxas de mercado”. – A administradora de cartão de crédito não está ao abrigo da Súmula 596 STF, pelo que se lhe aplicam as disposições do Dec. 22.626/33.”
(TAMG – Apelação Cível 0351925-7 – Relator Dárcio Lopardi Mendes).
O dispositivo utilizado na decisão acima proíbe a variação do preço de maneira unilateral praticada pelo fornecedor e a súmula referida diz que as administradoras estão sujeitas ao limite da Lei da Usura.
Como se vê as administradoras têm que respeitar os juros de 12% ao ano, caso contrário a administradora responderá nos termos do Código do Consumidor.