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Espaços urbanos e criminalidade:

um estudo do ambiente urbano como fator criminogênico

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23/07/2016 às 16:42
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Examina-se a relação existente entre degradação dos espaços urbanos de convivência com o aumento da criminalidade. À medida que um espaço público se degrada, cresce, na mesma intensidade, a criminalidade.

 Resumo: Quanto mais uma cidade cresce, maiores os problemas que tem que enfrentar, dentre os quais, um número maior de pessoas vivendo por quilômetro quadrado (o que gera conflito de interesses e de opiniões), além disso, os serviços públicos essenciais começam a ter que atender a um número cada vez maior de clientes, os cidadãos. O grande problema da urbanização se dá quando a mesma se processa de forma desordenada, gerando guetos sociais que passam a se distinguir por raça, classe social, etnia, etc. Este processo de estigmatização, ou melhor, de segregação social faz com que os espaços geográficos passem a ter uma ocupação característica e própria, deixando clara a separação entre ricos e pobres. Os ricos se acastelam em seus condomínios fechados, com requinte e luxo, e os pobres são cada vez mais expulsos para a periferia, que oferece condições de vida mais condizentes com seu poder aquisitivo, como moradia barata, luz elétrica clandestina, dentre outras, mas, ao mesmo tempo, condições incompatíveis com sua condição humana. Este estado de coisas acaba gerando raiva e frustração nos oprimidos, o que gera confronto entre estes e a elite. Este confronto é desencadeado, de um lado (pelos pobres), pela raiva de terem consciência de que não podem ter o que os mais abastados têm, de outro (pelos ricos), pelo temor que passam a ter das camadas mais pobres, em decorrência da possibilidade que sentem de serem vítimas deste ódio, que se materializa em violência. Esta urbanização desorganizada se erige em um fator criminógeno relevante. Contribuindo ainda para tanto, a deterioração ou ausência dos espaços públicos de convivência. 

Palavras-chave: Escola de Chicago, ecologia humana, guetos sociais, degradação urbana, criminalidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. A cidade como objeto de análise da criminologia. 2.1. Urbanização e crescimento urbano – origem dos problemas sociais. 2.2. Os problemas sociais decorrentes da urbanização e do crescimento urbano desordenados. 2.3. Dos atos de violência: periferia x centro. 3. Escola de Chicago. 3.1. Ecologia humana. 4. Segregação urbana – dos enclaves fortificados. 5. Degradação humana e criminalidade. 6. Conclusão. Referências Bibliográficas 


 1. Introdução 

Dentro da atual configuração mundial, com o grande desenvolvimento tecnológico, com a expansão cada vez mais intensa do conhecimento humano, com o alto nível de informação de que dispõe a sociedade moderna, alavancada pelo processo de globalização, não mais há espaço para o enfrentamento de certos problemas de maneira simplista e incauta.

Os mais variados problemas que hoje assolam a sociedade mundial são o resultado inexorável de um complexo conjunto de fatores dos mais variados matizes. E dentre estes problemas, que assolam a sociedade moderna, o da violência é o que desponta com maior destaque porque a todos, indistintamente, tem afetado.

Não há mais espaço para as canduras políticas, para o discurso demagógico dos homens públicos descompromissados com a verdadeira essência da sociedade, qual seja, a mantença de sua coesão e harmonia.

Os discursos fajutos dos políticos em épocas eleitoreiras, verdadeiros espetáculos circenses, de pífia qualidade e de gosto hediondo, já não mais podem resolver o caos, no qual a sociedade se encontra imersa. Em verdade, referido discurso jamais resolveu situação alguma. O que referidos discursos tendem a fazer é mascarar a realidade, jogando “pano morno” nas verdadeiras e reais causas dos problemas, muitas vezes gerados pelo descaso político.

É mais fácil negar uma situação do que efetivamente tentar resolvê-la. Todavia, quanto mais negamos um problema, maior ele se torna.

Com a violência e a criminalidade o quadro não é diferente. Os políticos, em seus palanques, fazem a utópica promessa de que acabarão com a criminalidade e com os altos índices de violência, todos os dias noticiados pela mídia. No entanto, para tal desiderato, que mais é uma fantasia, sugerem soluções paliativas que vão atacar as causas e não a gênese da situação. É o mesmo que tratar os sintomas de uma doença, mas desprezar os fatores que desencadeiam a mesma. Agindo assim, a doença sempre irá permanecer, porque há o tratamento da sintomatologia, mas a etiologia (ou seja, a origem) da mesma permanecerá e todos continuarão a contrair a patologia.

Não mais é possível fantasiar com relação à violência urbana. Ela existe, está presente todos os dias em nossas vidas, afetando a nós, ou pessoas próximas a nós. Qualquer pessoa pode ser vítima da mesma e a qualquer momento.

Por essa razão, urge que se conheça a gênese criminológica da violência para que a mesma possa ser combatida e, se não vencida, pelo menos drasticamente minimizada.

Não se pode mais aceitar, evidentemente, a tese simplista e, porque não dizer discriminatória de Cesare Lombroso, em sua obra “O homem delinquente”, por meio da qual referido autor sustentou a tese de que a criminalidade seria de ordem genética, ou seja, transmitida de pai para filho. Logo, pela tese lombrosiana, se o pai era criminoso, fatalmente, o filho também o seria. Além disso, Lombroso sugeriu que o criminoso era portador de certos caracteres físicos inconfundíveis. Uma tese de um positivismo biológico extremamente perigoso.

Não há criminosos inatos, mas pessoas que, vivendo em determinados ambientes degradados e degenerados, acabam sofrendo influência dos fatores exógenos que as circundam. O homem não é endogenamente um criminoso, mas, dependendo de seu habitat, pode vir a se tornar um criminoso.

Dentro desta perspectiva, forçoso que voltemos as atenções ao ambiente em que vive o homem, para que se possa detectar se referidos fatores exo-criminógenos estão presentes. Psicologicamente, cremos que o primeiro habitat do homem seja a sociedade. Todavia, esta mesma sociedade tem que, obrigatoriamente, estar situada em determinado espaço físico. E este espaço físico é a cidade. Portanto, é a cidade, enquanto espaço físico, geograficamente falando, o primeiro ponto de partida da análise sociológica e criminológica da violência e da criminalidade.

Consoante definição do léxico[2], cidade é um “complexo demográfico formado, social e economicamente, por uma importante concentração populacional não agrícola, i. e., dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural”.

Os crimes acontecem dentro do cenário internacional, nacional, dentro dos Estados-membros, consoante noticia a imprensa, no entanto, antes de ter referidas repercussões, nos âmbitos espaciais acima citados, é no interior de uma cidade que os fenômenos da criminalidade e da violência se processam.

E, por essa razão, a cidade deve ser foco de atenção, para que os fatores criminógenos sejam detectados, estudados, entendidos e os mecanismos para se refrear a propagação de referida mazela social, implementados.

O crime pode ter a propagação que se queria lhe dar, mas, antes de qualquer outra repercussão, é na cidade que ele se manifesta primeiro, como um fenômeno localizado e setorial. 


2. A cidade como objeto de análise da criminologia

Um crime pode ter repercussão internacional, nacional, ou apenas dentro de um determinado Estado-membro, como acima dito, mas, antes de repercutir em qualquer destas esferas, ele se processou dentro de um determinado setor social. E este setor social é a cidade.

Mas, o que vem a ser uma cidade?

Os conceitos variam. O professor Omar Dalank[3], arquiteto, assim define a cidade:

Definindo de forma simplista, tecnicamente uma cidade é um aglomerado de seres. Sua estrutura e complexidade são maneiras de manter apenas essa aglomeração estável, e não sua origem. Não habitamos uma cidade, nós a compomos. (Dalank, 2007)

Muitos critérios podem ser adotados para se definir uma cidade. Alguns países adotam o critério populacional, como, por exemplo, Dinamarca[4], no qual são necessários, pelo menos, 250 habitantes para uma comunidade urbana ser considerada cidade; já a Islândia, apenas 300 habitantes; já na França, um mínimo de dois mil habitantes são necessários para que uma localidade ganhe o “status” de cidade; e na Espanha, dez mil habitantes.

Já em outros países, o termo cidade é utilizado para se designar uma unidade político-administrativa, como é o caso da Austrália. Já no Brasil, o conceito de cidade, também extraído do site enciclopédia Wikipédia[5], pode ser definido como:

“(...) o conceito de cidade adotado é o do IBGE, o órgão oficial do Governo Federal responsável pelos censos demográficos. Segundo tal critério, qualquer comunidade urbana caracterizada como sede de município ou de distrito pode ser considerada uma cidade, independentemente de seu número de habitantes”.

Entrementes, não concordamos com o critério populacional para que se defina uma determinada localidade como sendo uma cidade.

Por outro viés, consoante dito no pavilhão israelense na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2000, foi dada a seguinte definição de cidade: “A cidade é um habitat humano que permite com que pessoas formem relações umas com as outras em diferentes níveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente anônimos”.

Corroborando este entendimento, o professor e criminólogo Sérgio Salomão Shecaira, em sua obra “Criminologia”, Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 151, citando o professor Robert Ezra Park, assim faz constar:

(...) cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem. (Shecaira, 2004:151)

Mais adiante, o professor Shecaira ainda faz constar:

Cada cidade tem sua cultura própria, seus estatutos, seus ditames, uma organização formal e outra informal, seus usos e costumes, seus “cantos” e sua própria identidade. Nada representa mais o Rio de Janeiro do que O Corcovado e O Pão de Açúcar. São Paulo é a Avenida Paulista, assim como Nova York é a estátua da Liberdade. A cidade é um produto não intencional do trabalho de sucessivas gerações de homens. Essa instituição é evidentemente maior do que a estrutura física (ruas, avenidas e praças), ela tem uma ordem moral decorrente das manifestações culturais daqueles que habitam a cidade.

Diante destas exposições, podemos concluir que a cidade, mais do que uma mera estrutura física de ferro e concreto, é um ecossistema, no qual deve prevalecer a simbiose (relação biológica na qual os organismos que interagem entre si trazem benefícios mútuos para todas as partes envolvidas) entre todos os habitantes.

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Diante disso, a cidade se mostra objeto imprescindível de qualquer análise sócio-criminológica, envolvendo a detecção dos fatores etiológicos da criminalidade e da violência.

2.1. Urbanização e crescimento urbano – origem dos problemas sociais

As cidades se formam porque pessoas começam a se aglomerar em determinado espaço geográfico, ali estabelecendo sua moradia. Mas, uma vez formada a cidade a mesma não fica estagnada, estática, sofrendo, como qualquer comunidade biológica, um aumento.

A cidade, geo-espacialmente, cresce pelo processo de urbanização ou crescimento urbano.

A urbanização e o crescimento urbano são dois processos geográficos distintos, mas que podem conduzir a um mesmo problema, qual seja, uma cidade socialmente problemática, com a formação de zonas criminógenas, ou seja, desencadeadoras da criminalidade. 

O processo denominado urbanização, ocorre quando há uma conversão da população rural em urbana, o que ocorre por meio do êxodo rural, ou seja, a população migra da zona rural (campo: sítios e fazendas) para a zona urbana.

Já o crescimento urbano se dá sem que necessariamente haja um processo de urbanização. O crescimento urbano é o crescimento da própria cidade. No crescimento urbano é a cidade, a zona urbana, o espaço urbano que cresce, por meio do aumento da população.

O fenômeno da urbanização tem um limite, ou um fim, mas o crescimento urbano pode ocorrer de forma indefinida. Consoante noticia o professor José William Visentini, em sua obra “Brasil – sociedade e espaço – geografia do Brasil”, editora Ática, 21ª edição, 1994, p. 105:

Em alguns países, como a Inglaterra, a urbanização já cessou, passando a ocorrer apenas o crescimento urbano. Aí, a população urbana já chegou aos 85% do total e prevalece um equilíbrio, com uma visível diminuição da migração rural-urbana, que, por vezes, chega até a ser inferior à migração urbano-rural. A urbanização, portanto, tem um limite, um ponto final, ao passo que o crescimento das cidades pode continuar a ocorrer indefinidamente. (Visentini, 1994:105)

O que se verifica, notadamente nos países outrora chamados de subdesenvolvidos e que, hodiernamente, são eufemisticamente chamados de países em desenvolvimento, ou em processo de industrialização, é uma forma desordenada pela qual este crescimento se verifica. E isso, principalmente, nos países subdesenvolvidos, que, historicamente, foram colônias de exploração e não de enraizamento.

Como a cidade cresce do centro para a periferia, nota-se que, quanto mais industrializado for o centro e quanto maior for o custo de vida em referida localidade, maior será a força de expulsão, principalmente da classe trabalhadora, sem muitos recursos financeiros, para o setor periférico do perímetro urbano. Isso porque, como dito, a cidade cresce do centro para a periferia (força centrífuga – que lança o corpo do centro para fora), e não da periferia para o centro (força centrípeta[6] – que atrai os corpos do exterior para o interior da força de atração).

A população pobre é expulsa para a periferia e acaba abandonada à própria sorte. Abandonada porque, ou o poder público não consegue acompanhar o crescimento vertiginoso da população, ou porque não se faz presente na periferia, a não ser em épocas eleitorais. Seja qual for o motivo, as consequências são nefastas, dentre as quais, a falta de infra-estrutura (água, esgoto, asfalto, iluminação), moradias dignas (há uma predominância de barracos, casas feitas com restos de materiais de má qualidade), ausência de escolas, centros de lazer, etc.

Com o crescimento urbano desordenado há o estabelecimento de espaços sociais conflituosos. O centro não se mistura com a periferia e nem esta com o centro. O aumento populacional desordenado acaba gerando um “inchaço” da cidade, que reflete diretamente na vida das pessoas, principalmente das que vivem nas margens da sociedade, ou seja, na periferia.

O número de vagas em empregos começa a diminuir, gerando um grande exército de pessoas desempregadas ou subempregadas.

Portanto, como se nota, a questão do aumento da cidade, seja pelo processo de urbanização, seja por meio do crescimento urbano, são fenômenos geográficos que têm implicações sociológicas muito grandes e que, por essa razão, não podem passar despercebidos da alçada da criminologia.

2.2. Os problemas sociais decorrentes da urbanização e do crescimento urbano desordenados 

Como já foi dito alhures, a urbanização, bem como o crescimento urbano desordenados, geram os mais variados problemas sociais. Este problema é agravado em países como o Brasil, que sofreram um processo de industrialização tardia ou retardatária.

Em países subdesenvolvidos há uma clara concentração de riquezas nas mãos de uma minoria. Isso gera a desigualdade social, resultante de uma má distribuição de renda. Esta má distribuição de renda faz com que uma pequena elite tenha acesso ao que há de melhor no mercado de consumo, e de outro lado expurga uma ampla parcela de despossuídos, que sem dinheiro, não tem como adquirir referidos produtos e bens de consumo. Isso gera uma geografia humana muito peculiar. A elite se isola em fortificações, os condomínios fechados, o que foi muito brilhantemente estudado pela antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira, na obra “Cidade de Muros”, que chamou estas fortificações ou guetos de “enclaves fortificados”. Analisaremos este estudo com mais acuidade adiante.

Consoante narra José William Visentini, obra já citada, p. 120, um dos grandes problemas sociais da questão urbana no Brasil é a moradia.

Assim leciona o professor Visentini:

Um desses problemas é a moradia. Enquanto em algumas áreas das grandes cidades brasileiras surgem ou crescem novos bairros ricos, com residências moderníssimas, em outras, ou, às vezes, até nas vizinhanças, multiplicam-se as favelas, os cortiços e demais habitações precárias. Nas últimas décadas ocorreu um aumento da população favelada em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades do país. Muitas favelas são desmanchadas para dar lugar à construção de algum edifício no terreno; em alguns casos parte da população favelada acaba indo residir em conjuntos habitacionais feitos com recursos públicos, mas o aparecimento de novas favelas e o aumento das já existentes sempre superam o final de algumas. O mesmo ocorre com os cortiços, moradias pobres onde se amontoam várias pessoas num espaço reduzido, e que também tiveram seu número multiplicado nas últimas décadas. Além disso, essas populações transferidas de favelas ou cortiços para grandes conjuntos habitacionais quase sempre acabam retornando à vida em favelas ou cortiços (ou, às vezes, em casas precárias na periferia), pois o aumento das prestações da moradia é sempre superior ao aumento dos salários. Assim, nas últimas décadas, foi sempre comum que os conjuntos habitacionais construídos para abrigarem populações de baixa renda acabassem ficando em poder da classe média. (Visentini, 1994:120)

Estes ambientes urbanos degradados são focos certos de atividades violentas. Nos cortiços, por exemplo, as pessoas vivem espremidas umas sobre as outras. Quanto maior o número de pessoas vivendo próximas umas das outras, maior a probabilidade de conflitos. As pessoas vivem sob forte tensão. Frustradas pelas condições desumanas em que vivem, experimentando todo tipo de miséria, salários baixos, desmandos e abusos dos patrões, estas pessoas chegam a suas casas totalmente sobrecarregadas. E esta sobrecarga precisa ser liberada. E, geralmente, esta liberação é feita sobre a própria família, principalmente sob a forma de violência doméstica, seja contra a esposa ou contra os filhos.

Colabora para este tipo de degradação psicológica, já fruto da degradação do ambiente em que se vive, a ausência de “espaços públicos de socialização”. Não há praças, parques, bosques, centros de lazer. Os únicos ambientes “sociais” são os bares, vulgarmente chamados de “botecos”, nos quais as pessoas vão não para se socializar propriamente, mas para afogar as frustrações num copo de água ardente.

Embriagada e frustrada a pessoa se torna uma “bomba” ambulante, pronta para explodir. As famílias aos poucos vão se desestruturando. Os pais de família se socorrem dos bares, logo, o diálogo resta prejudicado com seus filhos e esposa. As esposas, na ausência de verdadeiros companheiros, se socorrem nos braços de outros, ou apostam em aventuras amorosas ilusórias. Os filhos, em toda esta conjuntura de esfacelamento familiar, ficam à própria sorte. Sem estrutura familiar, sem diálogo, sem sonhos ou perspectivas acabam soltos pelo mundo, vagando às cegas. Estas crianças e jovens crescem sem identidade e com uma personalidade problemática. São filhos e filhas órfãos de pais e mães vivos. Esta perda de identidade, principalmente na adolescência, deixa o jovem sem referencial. Este referencial é o modelo de conduta que todos tendemos a ter, sendo, na infância principalmente, a figura do pai ou da mãe. Sem o referencial, o jovem tende a se agarrar a qualquer coisa que supra sua carência afetiva.

Jovens sem identidade começam a se aglomerar em grupos, formando as gangues. As gangues são aglomerados humanos que se formam, e isso psicologicamente falando, para a busca de um referencial, ou modelo.

Geralmente nas gangues, há uma figura central, o líder, que comanda. Este líder transmite aos demais certa coragem, se preocupa e zela do grupo. Este zelo e atenção são sentimentos que a maioria não possui dentro da própria casa. Todo ser humano sente a necessidade de ser amado e de ter um lugar no qual se sinta acolhido e protegido. E é dentro das gangues que muitos jovens encontram isso.

Assim, as gangues são fruto da degradação familiar e esta, por sua vez, fruto da degradação social e urbana.

Estes os problemas urbanos gestados pela urbanização e pelo crescimento urbano desordenados, fruto de uma industrialização tardia ou retardatária, impelida pelo capitalismo selvagem.

2.3. Dos atos de violência: periferia x centro 

Esta divisão sócio-espacial entre centro e periferia gera, inegavelmente, conflitos. De um lado temos o centro, que possui as melhores condições de vida, como saúde, transporte, lazer, boas escolas, e de outro, um ambiente degradado, que produz uma paisagem urbana inóspita e esteticamente feia, a periferia. Os cortiços possuem uma arquitetura muito singular. São prédios mal acabados, enegrecidos pelo lódão e liquens (resultado de infiltração); um único banheiro serve para várias famílias; as casas, ou pequenos cômodos, são amontoados, não há privacidade, ou mesmo intimidade. A vida de todos é de conhecimento de todos.

Esquecidos pelas autoridades, a população reage. E da forma mais violenta. Esta reação pode se dar pela busca de moradia, como o caso dos sem-terra urbanos; ou ainda, movimentos de depredação do patrimônio público, como forma de compelir as autoridades a cumprir seu papel institucional e constitucional.

O professor Visentini assim faz constar:

Um movimento popular que vem se multiplicando ultimamente nas grandes cidades brasileiras é o dos sem-terra urbanos. São centenas de famílias que da noite para o dia “invadem” – ou melhor, ocupam – um dos muitos terrenos ociosos que existem nessas cidades e aí procuram fixar moradia. (Visentini, 1994, p. 126)

E mais adiante complementa:

Outro movimento popular que com freqüência ocorre nas metrópoles do país, só que nesse caso de forma espontânea, sem aquela organização que existe entre os sem-terra, são as depredações de ônibus e trens. Isso costuma ser uma decorrência das péssimas condições desses transportes coletivos, com irregularidades nos horários, atrasos constantes, filas e superlotações, além dos abusivos aumentos nas tarifas. (Visentini, 1994, p. 126)

Vários outros exemplos podem ser citados. Quantas populações em estado de miséria não invadem e saqueiam supermercados e armazéns? Quando o poder público não ouve os gritos de desespero de seu povo, outros canais surgem para que os excluídos possam se fazer ouvir.

De forma magistral, assim conclui o professor Visentini (1994:127): “Como se vê, na ausência de canais institucionais que garantam um real diálogo da população com as autoridades, a própria população tem de criar, às vezes pela força, suas formas de ser ouvida”.

Logo, como se percebe, a violência acaba sendo o resultado do abandono e do descaso.

Outro fator que contribui sobremaneira para o desenho irregular das cidades e sua ocupação desordenada é a especulação imobiliária. A especulação imobiliária se processa da seguinte forma: entre um loteamento e outro, se deixa uma extensa área vazia. Portanto, entre um loteamento anterior, já servido com infra-estrutura (água, esgoto, iluminação, transporte, etc.), e o próximo, fica uma área vaga, vazia. Feito o novo loteamento, o mesmo terá que ter infra-estrutura. Ocorre que, para chegar até este loteamento, referidos serviços (infra-estrutura) terão que passar pela área vazia e não loteada, intencionalmente deixada assim. Isso provocará uma vertiginosa valorização de referida área, o que acarretará uma valorização dos terrenos que serão vendidos a preços muito mais elevados. O que serve apenas aos interesses da elite. Neste processo, o trabalhador é lançado cada vez mais para a periferia.

O pesquisador Lucio Kowarick, na obra “A espoliação urbana”, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, p. 29-53, citado por Visentini (1994:128) assim registra:

O vertiginoso crescimento da metrópole, conjugado ao processo de retenção dos terrenos à espera de valorização, levou ao surgimento de bairros cada vez mais distantes. Amontoam-se populações em áreas longínquas, afastadas dos locais de trabalho, impondo-se distâncias de deslocamento cada vez maiores.

Este processo, como se nota, cria muros entre as diferentes classes socais. O trabalhador, assim, é expulso do centro e a elite capitalista domina o cenário urbano.

A classe trabalhadora, estigmatizada e lançada para longe, se torna estranha à elite. Esta, sem conhecer a face do trabalhador, que todos os dias faz verter suor e lágrimas de seus olhos para suprir seus luxos (os da elite), vê no trabalhador um estranho perigoso.

Quando começaram a surgir os conflitos – manifestações, reivindicações, ocupações de terrenos urbanos, saques, assaltos, etc. – a elite construiu seus castelos. Agora a burguesia vive em guetos urbanos, os condomínios fechados, cercados de altos muros eletrificados e fortemente vigiados por seguranças particulares e moderno sistema de vigilância eletrônica. Esta atitude elitista apenas aumenta ainda mais a segregação social.

E isso se dá porque, as pessoas não aprenderam a viver o espírito da cidade. Viver na cidade não se resume apenas em ocupar um determinado espaço geográfico, mas também, em se aderir ao espírito urbano de coexistência pacífica e tolerância. Todos trabalhando em prol da coletividade. O problema é que a burguesia, parafraseando-se Lucio Kowarick, ainda teima em ver a cidade e o trabalhador como mera fonte de lucro.

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. Espaços urbanos e criminalidade:: um estudo do ambiente urbano como fator criminogênico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4770, 23 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35064. Acesso em: 18 mar. 2024.

Mais informações

Trabalho de conclusão, na modalidade “artigo científico”, do curso de Pós-Graduação (Lato sensu) – Título de Especialista - em Ciências Criminais, módulo ‘Criminologia’, apresentado ao Instituto UNAMA e UVB. O presente artigo científico foi apresentado como pré-requisito para obtenção do Título de “Especialista” em Ciências Criminais, na pós-graduação ministrada pela UNAMA – Universidade do Amazonas, em parceria com o instituto LFG – Luiz Flávio Gomes de ensino.

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