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Feminicídio.

Mais um capítulo do Direito Penal simbólico agora mesclado com o politicamente correto

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20/12/2014 às 17:20
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O PLS 292/13 cria, para o crime de homicídio, uma nova forma qualificada denominada "feminicídio", tendo por vítima mulher em situação da chamada “violência de gênero”.

Oriunda da CPMI de Violência contra a Mulher no Brasil e do Projeto de Lei do Senado n. 292, de 2013, pode vir a lume lei que cria mais uma forma qualificada de homicídio no Código Penal Brasileiro.

O artigo 121, CP, que prevê o crime de homicídio, era até então dotado de seis parágrafos, sendo que o seu § 2º., I a V previa as qualificadoras que levavam a pena de reclusão do homicídio simples de 6 a 20 anos para 12 a 30 anos.

A legislação inovadora cria um § 7º. e outro § 8º. para o fim de regular o que se convencionou chamar de “Feminicídio” e que configura uma nova forma qualificada de homicídio tendo por vítima mulher em situação da chamada “violência de gênero”. A pena cominada não difere das demais formas de homicídio qualificado, permanecendo nos limites da reclusão, de 12 a 30 anos.

O PLS 292/13 apresenta uma “justificação” que faz referência à violência contra a mulher em todo o mundo e, especialmente no Brasil, apontando dados e estatísticas de órgãos internacionais como a ONU. O foco é principalmente a situação em que a morte é imposta à mulher em circunstância de violência doméstica e familiar, bem como a disseminada impunidade desses crimes.

Legislações semelhantes e com “nomem juris” também similares (v.g. “femicídio”, “assassinatos relacionados a gênero”, “violência feminicida”) são encontráveis em diplomas penais no México, Guatemala, Chile, El Salvador, Peru, Nicarágua e Argentina.

Segundo o texto de justificação do PLS 292/13, a primeira vez em que o termo “Feminicídio” foi utilizado foi nas Conclusões Acordadas da 57ª.  Sessão da Comissão sobre o Status da Mulher da ONU, cujo texto foi aprovado em 15 de março de 2013. Logo em abril do mesmo ano vem a aprovação pela Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Criminal do Escritório da ONU para Drogas e Crime, um projeto de resolução contendo recomendação à Assembleia Geral da ONU e incentivando os países – membros a tomar providências quanto ao “Feminicídio”.

Nenhuma pessoa em sã consciência pode ser favorável ou sequer indiferente à prática de violência contra mulheres, pior ainda à prática de homicídio contra estas. Qualquer um que tenha uma mentalidade favorável ou indiferente a essas barbaridades somente pode ser classificado, sem peias, como alguma espécie de canalha ou psicopata. Essa conclusão não se altera se a vítima é um homem. A violência contra o ser humano (homem ou mulher), especialmente o homicídio, é inaceitável. Discute-se muito sobre a existência ou não de um conceito material de crime e o homicídio parece ser um exemplo inescapável de uma conduta criminosa não apenas convencionalmente, mas pela própria natureza, desde que se tome por base a necessidade humana de convívio social.

De acordo com a letra da lei e conforme o acima mencionado, o simples fato de ser uma mulher o sujeito passivo de um crime de homicídio não é suficiente para caracterizar o “Feminicídio”. Este somente estará configurado se essa forma “extrema de violência” contra a mulher, que a leva à morte, for perpetrada num contexto de “violência de gênero”. Portanto, tratar-se-ão de homicídios que ocorram em situações em que o agressor mate a mulher numa atitude de exercício de um suposto “direito de posse” ou de “domínio pleno” sobre a vítima.

Obviamente a vítima do “Feminicídio” somente poderá ser uma mulher. Já o autor do crime em geral será um homem, mas nada impedirá que uma mulher atue como coautora ou partícipe. Além disso, tendo por base a Lei 11.340/06 não é totalmente afastável a hipótese de que uma mulher possa ser sujeito ativo do crime de “Feminicídio”, desde que esteja atuando em uma relação de “violência de gênero” contra a vitimada. Por exemplo, se uma mãe mata a própria filha porque não quer permitir que esta estude e pretende lhe impor um papel social estritamente feminino segundo uma visão que divide de forma estanque as funções sociais de homens e mulheres (inteligência do artigo 5º. e seu Parágrafo Único da Lei 11.340/06 que, aliás, não exclui da violência de gênero as relações homoafetivas).  

Este é o espírito da legislação sob comento, embora a “Teoria de Gênero” e seu aviltamento à natureza humana em matéria sexual já tenha sido muito bem denunciada por autores como Jorge Scala que sequer admitem a existência de uma “Teoria”, mas de uma pura e simples “Ideologia de Gênero” no seio da qual o que seria sociologia, história, direito, filosofia se transforma imediatamente em puro jogo de poder, ou seja, Política em seu sentido mais mesquinho, que é o de simples luta pelo Poder ao custo inclusive da verdade. [1]

Não obstante, como já dito neste texto, há sim algo de bastante real e palpável no que diz respeito à violência contra a mulher, inclusive em situações que se adequariam ao que se convencionou chamar, por caminhos tortos ou não, de “violência de gênero”. Qualquer pessoa tem em sua experiência de vida o conhecimento de casos de crimes passionais que, realmente, em sua grande maioria têm por vítima mulheres.  Dessa maneira, não se pode objetar que um criminoso que mata uma mulher porque a considera uma espécie de objeto, de propriedade, de animal sobre o qual tem poder de vida e morte, deva ser tratado com exemplar rigor pela legislação penal.

O grande problema, que torna a lei enfocada mais um triste exemplo de um Direito Penal meramente simbólico, totalmente inútil e demagógico, é o fato de que o homicídio de uma mulher nessas circunstâncias sempre foi, desde 1940 com a edição do Código Penal Brasileiro, uma espécie de homicídio qualificado. Nessa situação a qualificadora do “motivo torpe” estaria obviamente configurada e a pena é exatamente a mesma, ou seja, reclusão, de 12 a 30 anos (vide artigo 121, § 2º., I, “in fine”, CP).

A grande questão que se impõe é: para que serve então o alardeado “Feminicídio”? E a resposta clara e evidente é: para nada! Após o advento do “Feminicídio” o que melhorará na vida das mulheres em risco de sofrerem violência ou mesmo serem assassinadas por seus algozes? Rigorosamente nada! O que era um crime qualificado continua sendo, a pena continua a mesma. Afora o fato já mais do que repetido pelos estudiosos do Direito de que a seara criminal não é a panaceia para todos os males, a criação de um novo tipo penal ou pior, a mudança do nome de uma conduta já prevista como crime, da mesma forma e com a mesma pena, não é e nunca será a solução para qualquer problema social ou conflitivo. Essa é base do Direito Penal Simbólico: fingir que não se sabe dessas constatações há tempos disseminadas pela melhor doutrina, pela ciência criminal. Fingir que não sabe o que na verdade sabe e seguir produzindo leis inúteis, mas que rendem para certas pessoas e perante determinados grupos dividendos políticos. Enquanto isso, mulheres e homens continuarão sendo mortos entre 50 mil e 70 mil homicídios/ ano no Brasil.

Na “justificação” do PLS 292/13 a ignorância jurídico – penal mesclada com a demagogia típica de cultores do Direito Penal Simbólico resta mais do que evidente:

“A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social, por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido ‘crime passional’. Envia, outrossim,  mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege ainda a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas”. [2]

Note-se que pelo que consta da passagem acima a lei penal é então uma espécie de panfleto feminista. Utiliza-se a via da lei penal para denunciar uma situação fática. Essa não é a função da lei penal e, aliás, de nenhuma lei. As leis servem para regular a conduta humana, tornando o convívio social pacífico possível, sabendo-se sempre que haverá um grau suportável de conflito. Lei alguma tem por objetivo ou deveria ter o uso panfletário, a denúncia. Ora, isso é função de discursos políticos, de mobilização social, não de leis. O que fundamenta essa objeção é não somente a natureza das leis ao longo da história humana, mas simplesmente o fato de que a lei não exerce a contento essa função ali exposta.

No seguimento vem a “Justificação” alegar que a criação do “Feminicídio” iria por cobro à impunidade, que iria impedir interpretações anacrônicas e moralmente inviáveis em casos de homicídios de mulheres. Mais ainda, iria impedir a ilação de que em um caso de morte de mulher se chegasse à conclusão de que houve um “crime passional”!

As asneiras expostas nessa parte do enunciado são tão abrangentes que devem ser analisadas separadamente.

Primeiro a questão do combate à impunidade mediante a criação de uma nova qualificadora no homicídio ou em qualquer crime. Não há nada mais evidenciado pela ciência criminal e pela própria experiência mundial e, principalmente brasileira, do que o fato de que a criação de novas modalidades penais em nada, absolutamente nada alteram a questão da impunidade. Uma afirmação como essa somente pode ser feita por alguém que desconhece completamente os mais básicos conceitos criminológicos como os de criminalização primária (previsão legal do crime) e criminalização secundária (efetiva aplicação adequada da lei). [3]

Como bem lembram os autores lusitanos Figueiredo Dias e Costa Andrade:

“Efetivamente, como agora se ganhou clara consciência, ao projetar-se sobre a realidade, a lei criminal sofre a refração devida aos second – codes das instâncias de criminalização secundária. O que vale também por dizer que a política criminal – formalmente legitimada através da  (e plasmada na) lei criminal – sofre a concorrência das políticas informais daquelas instâncias, as quais pode inclusivamente frustrar as reformas legislativas mais audaciosas”. [4]

A conclusão cristalina a que se chega é que somente se pode falar em colmatar uma situação de impunidade por meio de uma lei penal quando eventualmente se criminalize uma nova conduta, sem previsão anterior, a qual era praticada impunemente exatamente por falta de uma norma penal adequada. Fora isso, principalmente mediante a criação de novos “nomen juris”, uso de termos da moda internacional como é o caso do “Feminicídio” e outras estratégias meramente simbólicas, politiqueiras e midiáticas, nada de bom pode resultar. Perceba-se que tudo isso não passa de mudar nomes, como se os nomes dados às coisas tivessem um poder mágico. Digo “abracadabra” e um coelho sai da cartola; digo “Feminicídio” e as mulheres ganham um halo protetor e não são mais vítimas de homicídio ou se o são todos os infratores são imediatamente presos e condenados a penas rigorosas. Antes, com o “nomen juris” de “motivo torpe” isso era impossível! O leitor poderá encontrar coisas similares na literatura fantástica brasileira (v.g. “Aventuras de Narizinho” de Monteiro Lobato) ou universal (“As mil e uma noites” de autor anônimo ou “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll).

Em seguida vem a afirmação de que a criação do “Feminicídio” no Código Penal Brasileiro iria ter o condão de evitar “interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis”. Certamente um dos alvos não expressamente mencionados nessa passagem é a questão da chamada “legítima defesa da honra” (sic) em casos de adultério, quando o homem traído tira a vida da mulher.

Em primeiro plano é preciso dizer que a honra é um bem jurídico passível de ser objeto de legítima defesa, desde que dentro dos estreitos limites impostos por essa excludente de ilicitude (artigo 25, CP), vez que não se faz distinção para tal fim entre bens jurídicos materiais e imateriais. [5]  Com isso obviamente não se pretende dizer que a chamada “legítima defesa da honra” (sic) do matador de mulher possa sequer ser passível de consideração quanto à caracterização dessa excludente. A situação claramente não satisfaz os requisitos da Legítima Defesa de acordo com o artigo 25, CP, com especial destaque para os “meios necessários” e a “injusta agressão atual ou iminente”. Ademais, como muito bem destaca Mirabete, “a honra, (...), é atributo pessoal ou personalíssimo, não se deslocando para o corpo de terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido adúltero”. [6] Acrescente-se a tudo isso o fato da absoluta ilogicidade dessa suposta “legítima defesa da honra” (sic), eis que se alguém viola os deveres de fidelidade conjugal assumidos civilmente (e até religiosamente em muitos casos), o desonrado, quem comete uma desonra a si mesmo é o cônjuge infrator e não aquele que foi traído. Portanto, sequer há qualquer bem jurídico a ser defendido nesses casos. O que há é violência injustificável motivada por amor próprio ferido e sentimentos mesquinhos de posse e orgulho. Muito longe de configurar alguma modalidade de legítima defesa, essas situações em que cônjuges, namorados, noivos etc. matam uns aos outros por ciúmes são típicos exemplos de “motivo torpe” que qualifica o homicídio. Mas, hoje, com o advento do “Feminicídio” perceba-se que há uma diferença: se o homem traído mata a mulher, a qualificadora é a do “Feminicídio”; se a mulher traída mata o homem traidor, a qualificadora é a do “motivo torpe”. As penas são as mesmas. Indaga-se: qual a utilidade disso?

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Certamente se alegará com razão que a maior parte desses homicídios devido à traição amorosa ou ao mero desenlace de uma relação tem como vítimas mulheres, embora haja casos de homens vitimados. Pergunta-se: e daí? O que muda com a troca do “nomen juris” e do parágrafo da qualificadora? Resposta: Nada!

Mas, se alegará ainda que as decisões judiciais são muito mais benéficas para os homens nessas situações do que para as mulheres, ou seja, os clássicos reconhecimentos da malfadada “legítima defesa da honra” (sic) normalmente envolvem homens matadores e mulheres vitimizadas. Isso também é verdade, mas também não altera o quadro no sentido de que a mera mudança nominal e topográfica da qualificadora é totalmente improdutiva. Além disso, é também preciso reconhecer que o anacronismo está presente na pretensão de que esse reconhecimento de “legítima defesa da honra” (sic) em casos que tais seja, hoje, algo natural e corriqueiro. Em termos doutrinários e jurisprudenciais essa espécie de tese é praticamente indefensável na atualidade. É claro que sendo o homicídio um crime submetido ao julgamento no Tribunal do Júri (crime doloso contra a vida, nos termos do artigo 5º., XXXVIII, “d”, CF), onde funcionam “Juízes Leigos” ou “Jurados”, um advogado ardiloso pode muito bem lograr, em certos rincões, obter uma vitória com essa tese superada. E isso muda com o surgimento do “Feminicídio”? Resposta: não! Pelo simples fato de que o Júri continuará sendo formado por leigos e mais, é dotado de soberania de veredictos pela Constituição Federal, de modo que até mesmo a apelação de suas decisões é limitada (artigo 5º., XXXVIII, “c”, CF). Um caso como esse, em que a autoria e a materialidade do crime estão plenamente comprovadas e não há de forma alguma os requisitos de uma verdadeira legítima defesa, a decisão dos Jurados é absolutamente contrária à prova dos autos, o que enseja a possibilidade de Apelação. No entanto, devido à soberania dos veredictos já mencionada, o Tribunal “ad quem” irá dar provimento ao recurso para submeter o réu a novo julgamento pelo Júri. O Tribunal não alterará diretamente o “decisum”. Nesse novo Júri, se a decisão for a mesma, não caberá nova Apelação, pois o recurso com base nesse fundamento só é permitido uma única vez (vide artigo 593, III, “d” e § 3º., CPP). Enfim, com o nome de “motivo torpe” ou de “Feminicídio” na qualificadora, se o Júri acatar a tese esdrúxula da suposta “legítima defesa da honra” (sic) e insistir nela, nada haverá a fazer. Então, novamente indaga-se: o que mudou? Resposta insistente: nada, absolutamente nada!

Ocorre que a enxurrada de besteiras não para por aí. Segue o texto da “Justificação” da legislação em comento afirmando que a criação do milagroso “Feminicídio” será capaz de impedir o reconhecimento de que um homem que mata uma mulher por questões de relações amorosas cometeu “crime passional”. A coisa já degringola de início porque se é o “Feminicídio” que tem o poder oculto de ocasionar esse prodígio, então estaríamos diante de uma situação muito estranha. Vejamos: um homem mata sua namorada, por exemplo, porque a surpreende na cama com outro homem. Esse não é um “crime passional” porque existe o maravilhoso e miraculoso “Feminicídio” que tem o condão de anular as paixões humanas, digo (perdão pelo equívoco), as paixões humanas não, apenas as paixões dos homens (homens aqui no sentido estrito e não genérico de ser humano). Por outro lado, se uma mulher surpreende o namorado nas mesmas condições e comete o mesmo ato tresloucado, então será possível afirmar que foi um “crime passional”, já que nesse caso não se trata da aplicação da “palavra mágica” do “Feminicídio”! Perceba-se a que grau de insanidade se pode chegar pelas vias do politicamente correto mesclado com o Direito Penal Simbólico.

Há que compreender, porém, que também há um componente de profunda ignorância criminológica nessa afirmação esquisita de que o “Feminicídio” acabaria com o fenômeno dos “crimes passionais”. Há uma indevida confusão entre o que seja um “crime passional” com aquilo que seja um crime que possa encontrar uma causa de justificação (v.g. legítima defesa, estado de necessidade etc.) ou ao menos uma razão para abrandamento da pena (v.g. privilégios como domínio de violenta emoção, relevante valor moral - artigo 121, § 1º., CP). Ora, o fato de um crime ser catalogado criminologicamente como “passional” nada tem a ver com sua justificabilidade ou possibilidade de abrandamento penal.

Bem explica Rabinowcz que o “crime passional” tem como fator de impulsão o instinto sexual e o sentimento de posse sobre o outro de modo a arrastar “atrás de si os inumeráveis males e os furores sem nome, é ele que alimenta o exército do crime”. E prossegue:

“O amor sexual é egoísta, profundamente egoísta. Trata-se o objeto do desejo como uma propriedade que se pode utendi et abutendi, de que se tem o direito de dispor livremente, que se pode sequestrar unicamente para nós, roubando-a ao mundo inteiro, para a gozarmos à nossa vontade”. [7]

Será que uma mera mudança de nome e de posição topográfica de uma qualificadora do homicídio seria capaz de dar cabo de uma paixão destrutiva humana (comum a homens e mulheres) que configura uma categoria criminológica? É claro que não! Isso somente pode passar pela cabeça de pessoas que não têm a mais mínima noção sequer das diferenças entre Criminologia e Direito Penal.

É interessante ainda salientar sobre este tema a relevante contribuição de Magalhães Noronha, expondo os equívocos interpretativos ocorridos perante os estudos dos homicidas passionais pela Escola Positiva, demonstrando o autor que o criminoso passional geralmente não merece qualquer consideração em termos de benefícios legais: [8]

“O assunto traz à baila a paixão amorosa. A Escola Positiva exaltou o delinquente por amor e foi o bastante para que por passional fosse tido todo matador de mulher, esquecendo-se dos característicos que aquela apontava. A verdade é que, via de regra, esses assassinos são péssimos indivíduos: maus esposos e piores pais. Vivem sua vida sem a menor preocupação para com aqueles por quem deviam zelar, descuram de tudo, e um dia, quando descobrem que a companheira cedeu a outrem, arvoram-se em juízes e executores.

A verdade é que não os impele qualquer sentimento elevado ou nobre. Não. É o despeito de se ver preterido por outro. É o medo do ridículo – eis a verdadeira mola do crime.

Esse pseudoamor não é nada mais do que sensualidade baixa e grossa...”. [9]

O final do texto da “Justificação” anteriormente transcrito nos demonstra com clareza solar o simbolismo puro contido na novel legislação ao asseverar que se trata de uma “mensagem positiva à sociedade” quanto à universalidade do direito à vida, de um não à impunidade, do respeito pela dignidade da vítima. Ora, uma lei não é uma poesia, uma música ou uma exortação. É preceito prático para aplicação e resultado, o resto é simbolismo e demagogia baratos. Observe-se que ao afirmar que uma legislação deve ser pensada como aplicação prática e com vistas a resultados não significa que ela deva estar vazia de conteúdos, inclusive éticos e morais, de valores e imbuída de intenções benéficas para a paz social. Significa que tudo isso deve ser autêntico e não malversado, contrafeito ou cosmético com alterações nominalistas inócuas e enganadoras.

O fechamento, se dá com a afirmação de que o advento do “Feminicídio” irá obstar eventuais estratégias midiáticas ou defensivas de “desqualificação das vítimas mulheres “brutalmente assassinadas” com a injusta atribuição da responsabilidade do crime a elas próprias. Eis aí outra impossibilidade prática. Será que com a criação do miraculoso “Feminicídio” doravante não será mais possível alegar, por exemplo, que uma mulher atacou um homem e que este a matou em legítima defesa, não da honra, mas em legítima defesa própria devido a um ataque físico? Aliás, isso não pode acontecer realmente? Ou será que antes podia e agora, com o advento do “Feminicídio” não pode mais? Um advogado de um suposto  criminoso (não se pode olvidar a presunção de inocência – artigo 5º., LVII, CF) não poderá mais sustentar no plenário do Júri, em face da “plenitude da defesa” constitucionalmente estabelecida (vide artigo 5º., XXXVIII, “a”, CF) a tese, por mais insustentável que seja, de “legítima defesa da honra” (sic)? É claro e evidente que o simples surgimento de um “nomen juris” jamais irá alterar essas coisas. A sociedade não evolui em saltos, muito menos por obra de pessoas que se julgam milagreiras, demiurgas de um mundo melhor erigido por palavras mágicas ou por um novo vocabulário politicamente correto.  

Neste ponto vale anotar que durante os debates do PLS 292/13 constam das atas várias manifestações dos políticos envolvidos (que eles me perdoem por não dizer “políticos e políticas”) onde esse vocabulário politicamente correto, essa espécie de “novilíngua” militante se faz ostensivamente presente em redundâncias medonhas. A língua portuguesa é uma expressão feminina (por isso se diz “a língua portuguesa” e não “o língua portuguesa”). Bem, tendo isso em conta, metaforicamente pode-se afirmar que há uma violência, senão um assassinato da língua portuguesa, um verdadeiro “Feminicídio” quando nessas discussões se constatam manifestações como: “Bom dia a todas e a todos”! “Senadores e Senadoras, Deputados e Deputadas”! Tudo isso repetido “ad nauseam”. [10] Observe-se ainda que na descrição legal do “Feminicídio”, uma das circunstâncias que ainda serão estudadas se refere à “mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte”, o que efetivamente ocorre com a língua portuguesa nesses casos. Mas, isso não é novidade, já não choca mais ninguém e se sabe que a lei vem encabeçada pela designação da Presidente da República como “Presidenta” (sic), olvidando-se inclusive que não se trata de usar uma palavra que é masculina por força de alguma “tradição patriarcal machista e opressora” (sic), mas que toda palavra terminada em “ente” tem o significado de alguém que exerce uma dada função, pois que “ente” é o “ser”, aquele que age, que atua. Por isso há um Presidente, seja ele homem ou mulher. Presidente é aquele (a) que preside. Parturiente é aquela e sempre aquela que dá a luz, não vamos designá-la como “parturienta” (sic). A chama é ardente e não “ardenta”. O médico atende à paciente e não à “pacienta”. E assim por diante. [11]

Essa construção verbal ou por categorias mentais da realidade efetivamente tem o poder de criar pessoas com o raciocínio embotado ao ponto de realmente acreditarem que uma mudança linguística pode operar milagres. No campo legal, isso gera uma crença equivocadíssima de que uma alteração vernacular, um neologismo importado da ONU pode evitar toda a dinâmica da interpretação e aplicação da lei e da própria tipicidade frente ao mundo da vida.

Se um dia pudessem alguns compreender o texto de Paulo Queiroz, talvez toda essa confusão se desfizesse como névoas que se dispersam com o sol: [12]

O autor chama a atenção para a insuficiência do próprio conceito de tipicidade com o desenvolvimento da ciência penal. Sua definição corrente é a de mera subsunção de uma conduta a uma descrição contida na lei penal. Essa descrição da tipicidade, embora não incorreta torna-se “extremamente restritiva” e, por isso, “imprecisa”.  Lembra-nos a definição correta de homem construída na Academia de Platão como “um bípede implume”. Ela é uma definição correta, realmente todo homem é um bípede e não tem penas, mas não é precisa, não é suficiente para definir a essência de um homem ou do homem em geral. Tanto é assim que os grandes inimigos da Academia, os Cínicos, ao saberem do fato, apresentaram uma galinha depenada e disseram sarcasticamente: “Eis aí o homem”! [13]

Sobre a noção corrente de tipicidade afirma Queiroz:

“Com efeito, sugere que a tipicidade seja uma simples descrição ou constatação quando, em verdade, é uma valoração complexa que envolve aspectos dogmáticos e político – criminais.

Consequentemente, não é um ato descritivo, mas valorativo, atributivo. Não se trata de constatar algo preexistente, mas defini-lo socialmente, por meio do processo interpretativo. Afinal, não existem fenômenos jurídicos, nem jurídico – penais, mas uma interpretação jurídica e jurídico – penal dos fenômenos. Por conseguinte, não existem fenômenos criminosos, e sim uma interpretação criminalizante dos fenômenos; e, pois, tipificante, antijuridicizante e culpabilizante. A tipicidade não é um dado, mas um constructo”. [14]

Trazendo à baila o ensinamento de Kaufmann, Queiroz lembra que a decisão sobre a tipicidade de um fato não se resume ao mero exercício de subsunção da conduta à norma, mas da realização de uma “analogia”, já que “o direito não é um saber lógico, mas analógico”. [15] Os crimes não são iguais uns aos outros, bem como não são também absolutamente diversos, apresentando pontos de semelhança e divergência, o que converge para o raciocínio analógico e não lógico ou direto. [16]

Quem pensa que um nome ou mesmo uma alteração legal pode alterar todo um contexto da realidade do mundo da vida ou é por demais limitado sob o ponto de vista jurídico, social e filosófico ou é mesmo mal intencionado e demagogo. A única dúvida que resta é qual é a pior hipótese: a incapacidade ou a má fé?

Afinal que empecilho havia, que mal havia no “nomen juris” homicídio, sem a distinção do “Feminicídio” e com a qualificadora e mesma reação penal proporcionada pelo “motivo torpe”? “Homicídio” etimologicamente advém do latim tardio “hominis excidium” que tem o significado de “destruição do homem por outro homem”. [17] É mais que sabido que neste contexto a palavra “homem” é usada em sentido abrangente como sinônimo de “ser humano” (homem ou mulher). Entretanto, o Politicamente Correto, com sua mania de atomizações e separações, vem emporcalhar algo adiafórico e que, por outro lado ensejava uma visão do ser humano unificado, sem distinções, para criar uma divisão, uma atomização e um conflito artificial. Por isso, faz parecer que é premente a criação de um “nomen juris’ especial para o assassinato de mulheres, devendo surgir o “Feminicídio”. Agora já não lidamos com o ser humano que é humano e faz jus a esta consideração, a esta dignidade que lhe é inerente pelo simples fato de sua condição humana (masculina ou feminina). Não, agora há uma polarização entre homens e mulheres, vem a ideologia de gênero para dividir, para criar embate. E isso é uma verdadeira praga que tende a se alastrar com a criação aleatória de grupos conflitivos onde nada disso havia ou, se havia, dever-se-ia pugnar pela eliminação do conflito e da polarização que somente geram violência e falta de solidariedade e não por seu reforço. A continuar nessa senda logo teremos o geronticídio para a morte de idosos; o infanticídio para a morte de crianças (e aí teremos que alterar o “nomen juris” do tipo penal do artigo 123, CP); o adolescenticídio para a morte de adolescentes; o homossexualicídio para a morte de homossexuais, o negricídio para a morte de negros, o branquicídio para a morte de brancos, o pobrecídio para a morte de pobres, o plutocídio para a morte de ricos, a mediocídio para a morte de pessoas da classe média [18], o silvicolocídio para a morte de índios e assim por diante numa insanidade infinita.

Resta agora analisar os incisos que complementam o novo § 7º., do artigo 121, CP, os quais são circunstâncias que devem estar presentes no contexto da morte de mulher, envolvendo “violência de gênero” para a devida caracterização do denominado “Feminicídio”. São três incisos que devem se fazer presentes isolada ou cumulativamente. Vejamos cada um deles:

a) É necessário que haja “relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado”.

Em linhas gerais segue-se o critério da Lei Maria da Penha (artigo  5º., I a III da Lei 11.340/06). No entanto, as hipóteses incluídas no Código Penal são mais restritas. Enquanto na Lei 11.340/06 a violência doméstica se caracteriza, por exemplo, pelo mero convívio doméstico permanente “com ou sem vínculo familiar”, abrangendo até mesmo pessoas “esporadicamente agregadas”, aqui é exigido o parentesco ou a relação íntima de afeto. Também o liame familiar da Lei Maria da Penha é bem mais aberto, admitindo os “laços naturais”, de afinidade ou mesmo aqueles criados por “vontade expressa” entre as pessoas. No Código Penal exige-se efetivo parentesco por afinidade ou consanguinidade. Quanto à relação íntima de afeto, entende-se que se pode seguir os passos da Lei 11.340/06, eis que o Código Penal não é específico.

Assim sendo pode-se dizer que a relação íntima de afeto entre a vítima e o agressor no presente ou no passado pode ter como exemplos: o namoro, o casamento, o noivado, a união estável. Como se fala que essa relação pode ser passada ficam abrangidos os ex-namorados, ex-cônjuges etc. No que diz respeito ao mesmo tema na Lei Maria da Penha, o STJ, por sua Sexta Turma, no HC 92875 já estabeleceu que a violência cometida por ex – namorado é abrangida por normas de especial proteção à mulher.

No que tange ao parentesco este pode ser consanguíneo (irmãos, pais, avós, netos etc.) ou por afinidade (sogros, cunhados etc.). É claro que neste caso quando a lei fala em “presente ou passado”, somente pode estar se referindo ao parentesco por afinidade, já que o consanguíneo não se desfaz. Por outro lado, olvidou o legislador a menção do parentesco legal (v.g. filho adotivo). Na Lei Maria da Penha (artigo 5º., II) também não há essa menção, mas isso não gera qualquer impedimento já que, como já visto, a redação da Lei 11.340/06 é bem mais ampla, admitindo pessoas que “são ou mesmo se consideram aparentados”, de modo que é mais que evidente que o parentesco legal está ali contido. Já na legislação sob estudo não é assim. Somente se fala em consanguinidade e afinidade. Dessa forma, em se tratando de uma norma restritiva, que gera uma qualificadora para o homicida, não será possível aplicar a qualificadora do “Feminicídio” em casos de parentesco legal por força do “Princípio da Legalidade”, a não ser que o indivíduo incida em um dos outros incisos (artigo 121, § 7º., II e III, CP). Mas, será que isso é uma tragédia? Não, porque, como já visto, a norma que ora vem a lume é inútil. Se um filho adotivo matar a própria mãe em situação de violência de gênero o caso será normalmente qualificado como “motivo torpe” (artigo 121, § 2º., I, “in fine”, CP) com a mesma pena, como sempre foi desde 1940.

Observe-se ainda que diversamente da Lei Maria da Penha, o Código Penal somente tutela as relações familiares com a restrição acima mencionada e as relações íntimas de afeto. Nada diz a respeito da violência estritamente doméstica, conforme consta no inciso I do artigo 5º., da Lei 11.340/06. Novamente, a superfluidade do “Feminicídio” mostra sua face porque se a morte da mulher se der em circunstância de violência de gênero no âmbito doméstico, o crime continuará, como sempre foi, qualificado por “motivo torpe”, embora não se possa aplicar o famigerado “Feminicídio”.

b) No inciso II do § 7º. do Código Penal é prevista a circunstância de que no seio da violência de gênero que ocasiona o homicídio ocorra a “prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte”. Aí então surgiria o “Feminicídio”. Emerge aqui um problema gravíssimo de redação sob os pontos de vista jurídico, gramatical, filosófico e até médico. Nenhum óbice quando o legislador prevê a circunstância do abuso sexual da vítima na prática da sua morte como ensejador do “Feminicídio”. Porém, quando escreve que essa violência sexual pode ser praticada “contra a vítima” (frise-se “a vítima”) “antes ou após a morte” (frise-se “após a morte”), penetramos no reino da absurdidade. Acontece que a violência sexual somente pode ser perpetrada contra “alguém”, ou seja, uma “pessoa”, uma “mulher” que para ser chamada de “alguém” ou “pessoa” tem necessariamente de estar viva. O cadáver, o morto, não é vítima de crime algum no ordenamento jurídico. Ele é coisa, objeto material, nunca sujeito passivo. Por isso é impossível praticar violência sexual contra “a vítima após a morte”! Nestes casos a prática sexual sobre o cadáver constitui crime de Vilipêndio a Cadáver (artigo 212, CP), tem o cadáver como “objeto material” e a morta já não é vítima, já não é pessoa no mundo jurídico, gramatical, filosófico e mesmo médico. O cadáver é “coisa”, “res” sobre a qual se pode atuar de forma realmente abjeta, mas não é vítima de coisa alguma.

Apenas para ilustrar no campo jurídico o Código Civil estabelece em seu artigo 2º. que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida” e em seu artigo 6º. que “a existência da pessoa natural termina com a morte”. Esse é um aprendizado de primeiro semestre de qualquer curso de Direito, mas o legislador brasileiro demonstra uma atecnia avassaladora e vergonhosa, mostrando-se incapaz de uma interdisciplinaridade muito simples e revelando, mesmo no campo penal, absoluto desconhecimento quanto ao que se possa entender por vítima ou sujeito passivo de crimes ou mero objeto material destes.

Portanto, é preciso, com muita boa vontade, fazer uma releitura do inciso II para compreender que o que ensejará a caracterização do “Feminicídio” será a prática de atentado sexual contra a vítima (obviamente ainda viva). Por outro lado, também será caracterizado o “Feminicídio” quando houver práticas tais como a necrofilia ou vampirismo (atos sexuais perpetrados em um cadáver), mas nesse caso esses atos não serão perpetrados “contra a vítima”, mas no “cadáver”.

c) O inciso III menciona a “mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte”.

Para evitar exasperação de nossa parte e tédio do leitor não iremos tecer novos comentários sobre a absurdidade da referência à “vítima” mutilada ou desfigurada “após a morte”. Remetemos o leitor às críticas anteriormente expostas. Apenas se faz mister esclarecer que eventual mutilação ou desfiguração do “cadáver” (objeto material e não vítima) configurará crime de Destruição de Cadáver (artigo 211, CP) ou mesmo Vilipêndio a Cadáver (artigo 212, CP) de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto e com o elemento subjetivo do autor.

Como a lei não pode conter palavras inúteis por conhecida regra de hermenêutica (“Verba cum effectu, sunt accipienda”) [19] há que encontrar a distinção entre “mutilação e desfiguração”. Na “mutilação” ocorre a privação de algum membro ou parte corporal da vítima ou do cadáver, a destruição do membro ou qualquer parte do corpo deixando-o na incompletude de sua composição anatômica. Doutra banda, na “desfiguração” a conduta consiste em “alterar a figura ou aspecto” estético de alguém ou algo, sempre com a característica da produção de um dano a esse aspecto estético que se torna desagradável, feio, deturpado, adulterado. Ou seja, enquanto na “mutilação” há retirada de parte do corpo da vítima ou cadáver, na “desfiguração” isso não ocorre, mas somente a alteração da aparência, causando um efeito negativo sob o ponto de vista estético. [20]

Vistas as circunstâncias que se devem agregar à violência de gênero letal para a configuração do “Feminicídio” chega o momento de esclarecer que, assim agindo o legislador, a qualificadora em estudo somente vai se perfazer nos casos em que a morte seja de uma mulher em situação de violência de gênero e ainda com a presença de uma ou mais das circunstâncias acima descritas que compõem os incisos I a III. Quer dizer que mesmo quando uma mulher for morta em situação de violência de gênero, se não for comprovada ao menos uma das circunstâncias dos incisos em estudo, não se configurará o “Feminicídio”. Por exemplo: digamos que um homem por razões de pura misoginia saia pela cidade matando mulheres aleatoriamente. Ele mata as mulheres, mas não pratica qualquer abuso sexual, nem mutilação ou desfiguração. Neste caso a misoginia que o motiva configura certamente a violência de gênero, conforme o vocabulário corrente, mas não estão presentes as circunstâncias que se devem agregar ao “caput” do Parágrafo 7º. para a devida configuração do “Feminicídio”. Novamente vem à tona a inutilidade da nova qualificadora. Por quê? Porque esses crimes perpetrados por esse homem imaginário serão obviamente qualificados pelo velho “motivo torpe” que está em nosso Código Penal desde 1940.

Finalmente teria de surgir algum ponto de luz na lei sob comento. Esse ponto de luz é o § 8º., em que o legislador se lembrou de deixar esclarecido que a pena do “Feminicídio” não prejudica a aplicação das “sanções relativas aos demais crimes a ele conexos” como, por exemplo, o estupro, o vilipêndio a cadáver, a destruição de cadáver etc. Efetivamente, como bem aponta a “Justificação” do PLS 292/13 “não fosse assim, estar-se-ia criando um benefício ao agressor e incentivando a impunidade, propósito contrário ao deste projeto de lei”. [21] Isso porque sem essa observação legal especialmente no caso das circunstâncias dos incisos II (abusos sexuais) e III (mutilação ou desfiguração) o propósito de aplicar penas por estupro, estupro de vulnerável, vilipêndio ou destruição de cadáver, lesões graves [22] etc. sofreria o óbice do “non bis in idem”, já que tais circunstâncias já qualificariam o crime e não poderiam ser novamente utilizadas. Com a observação constante do § 8º., a legislação estabelece claramente a regra do concurso material de crimes.

Estas parecem ser, ao menos inicialmente, as observações necessárias à presente alteração do Código Penal Brasileiro, a qual entra para o inglório rol das legislações penais simbólicas e inúteis (neste caso ainda com generosas pitadas do nauseante “politicamente correto” que marcou inclusive seus debates, mediante violência terrível contra até mesmo a língua portuguesa). Ao menos, como se viu, o § 8º., impediu que além de inútil a legislação fosse ainda contraproducente ao menos no aspecto penal.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Feminicídio.: Mais um capítulo do Direito Penal simbólico agora mesclado com o politicamente correto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4189, 20 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35133. Acesso em: 7 nov. 2024.

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