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Danos morais na responsabilidade civil do Estado:

a fixação do quantum debeatur segundo a jurisprudência do STJ

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O STJ tem estabelecido parâmetros de avaliação para fixação de indenizações, os quais possuem o objetivo de preservar o instituto do dano moral, além de garantir a eficiência do direito à reparação das lesões de ordem extrapatrimonial.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o tema da fixação do quantum debeatur das indenizações dos danos morais provenientes da responsabilidade civil do Estado, à luz da jurisprudência do STJ. O direito positivo brasileiro não possui qualquer espécie de legislação que norteie a atuação dos órgãos jurisdicionais com respeito aos critérios os quais deverão ser utilizados no momento da valoração dos danos morais. Dessa forma, a doutrina e a jurisprudência têm se debruçado sobre a problemática em questão, apontando parâmetros para a aferição de valores justos para as indenizações fundadas em ofensas aos direitos da personalidade. Logo, tendo por base as lições de doutrinadores no campo da responsabilidade civil do Estado e na teoria dos danos morais, bem como na construção pretoriana liderada pelo STJ, foi realizado um estudo sobre as tendências apresentadas pela jurisprudência hodierna ao enfrentar a referida discussão.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Responsabilidade Civil do Estado. Danos Morais. Fixação do quantum debeatur. Jurisprudência.

Sumário: INTRODUÇÃO.1 CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO..1.1 Conceito e fundamentos jurídicos..1.2 Teorias acerca da Responsabilidade Civil do Estado.1.3 A responsabilidade civil do Estado por atos comissivos e omissivos.1.4 A evolução legislativa e jurisprudencial da responsabilidade civil do Estado no direito brasileiro.2 A REPARAÇÃO CIVIL DOS DANOS MORAIS. 2.1 Conceito de Dano Moral. 2.2 Evolução Histórica.2.3 A Reparação dos Danos Morais no Direito Comparado. 2.4 Evolução legislativa e jurisprudencial do dano moral no direito brasileiro. 2.5 O problema da liquidação do dano moral.3 O PROBLEMA DA FIXAÇÃO DO QUANTUM DEBEATUR NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.3.1 Sistemas aberto e fechado para fixação da quantia indenizatória. 3.2 A teoria do valor do desestímulo e os punitive damages.3.3 Critérios utilizados na fixação da quantia indenizatória.3.4 Competência do Superior Tribunal de Justiça para analisar os critérios de fixação do quantum debeatur.3.5 Importância da atuação do STJ no controle e revisão de indenizações em valor ínfimo ou exorbitante.CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o fito de analisar os critérios de fixação da quantia indenizatória dos danos morais, utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça, nos julgamentos de causas que envolvem a responsabilidade extracontratual do Estado. Devido à ausência de critério objetivo e preciso para o arbitramento do quantum debeatur da reparação civil por danos de cunho moral, serão abordados os critérios e as teorias jurisprudenciais e doutrinárias que versam sobre o tema, bem como as noções fundamentais sobre o instituto da responsabilidade civil do Estado, no direito pátrio. 

A análise da construção jurisprudencial do STJ poderá apontar uma possível falta de critério e segurança jurídica, por parte desta Corte, no momento do arbitramento da quantia indenizatória. Também será possível determinar se esta colenda corte está decidindo de maneira uniforme ou discrepante.

O estudo das decisões do STJ sobre o tema implicará na descrição dos critérios utilizados na apreciação dos casos concretos que foram submetidos ao julgamento deste Egrégio Sodalício. Será fundamental a comparação dos precedentes, a fim de perceber se está havendo uma harmonização no entendimento do Tribunal a respeito do assunto. Tal avaliação também pode revelar se os órgãos julgadores fracionários estão prestigiando o mesmo entendimento ao tratar do tema em comento ou se há divergência interna por parte dos membros do Superior Tribunal de Justiça.

A pesquisa foi realizada através do estudo de trinta decisões do STJ, proferidas entre 2003 e 2012, as quais versavam sobre a indenização dos danos morais nos casos de responsabilidade civil do Estado por atos omissivos. Para tanto, foi utilizada a ferramenta de pesquisa livre de jurisprudência, disponibilizada no site oficial do Superior Tribunal de Justiça, utilizando os seguintes termos: “dano moral responsabilidade civil estado ato omissivo”.


1 CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

1.1 Conceito e fundamentos jurídicos

Pode-se conceituar a Responsabilidade Civil do Estado, de acordo com o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 983), como sendo:

a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos.

Devido ao fato de a Administração Pública ser responsável pela garantia da proteção jurídica de todos os membros da sociedade, ela não poderia se eximir de reparar o dano causado a particular, proveniente da conduta dos agentes públicos, no exercício de seu mister. Trata-se de verdadeiro corolário do princípio do Estado Democrático de Direito, e, consequentemente, dos princípios da legalidade e da igualdade de todos perante a lei. De acordo com o princípio da legalidade, a pessoa jurídica de direito público não poderia permanecer inerte face à conduta estatal lesiva aos interesses dos particulares. Ademais, nos termos do princípio da isonomia, todos os indivíduos devem tolerar as incumbências públicas de maneira igualitária, pois não seria viável exigir que um grupo determinado de pessoas fosse excessivamente onerado pela atuação estatal, a qual deve ser suportada por toda a coletividade (ROCHA, 1991, p. 79).

1.2 Teorias acerca da Responsabilidade Civil do Estado

Inicialmente, no período histórico do absolutismo, não era concebível, de acordo com o ordenamento jurídico e os costumes da época, admitir qualquer espécie de responsabilidade do Estado pelos atos ilícitos causados pelos seus prepostos. A fase da Irresponsabilidade do Estado era caracterizada pela fórmula “The King can do no wrong” (o rei não faz nada errado), brocardo inglês equivalente à expressão francesa “Le roi ne peut mal faire” (VELLOSO, 1987, p. 235). A respeito da teoria da irresponsabilidade estatal, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p. 228) aduzem que: 

Com o surgimento da concepção moderna de Estado, imperava a ideia da total “irresponsabilidade” do poder público. Vale dizer, o Estado Absolutista não admitia a possibilidade de reparação por eventuais danos causados pela Administração, não se aceitando a constituição de direitos subjetivos contra o Estado soberano e absoluto. Tal infalibilidade era, por si só, a expressão da lei e do Direito, sendo inadmissível a ideia de concebê-lo como violador da ordem que teria por dever preservar. Restava à vítima, portanto, buscar a reparação do prejuízo sofrido perante a pessoa do agente público causador do dano, caso configurada a conduta culposa ou dolosa do mesmo.

A construção pretoriana apenas reconheceu a responsabilidade extracontratual do Estado na França, no ano de 1873, quando o famoso Caso Blanco foi julgado pelo Tribunal de Conflitos. Tal aresto dizia respeito a uma ação civil, proposta pelo pai de uma menor atropelada por uma vagonete, a qual teve fundamento no princípio de que o Estado é responsável pelos prejuízos que seus agentes causam a terceiros (CASTRO, 2004, p. 125). O mencionado leading case tornou-se um marco jurisprudencial e doutrinário fundamental ao desenvolvimento da teoria da responsabilidade civil do Estado, pois, embora tenha feito a ressalva de que a responsabilidade do Estado “não é geral nem absoluta”, a reconheceu como princípio, o qual deveria ser aplicado, de acordo com regras específicas, mesmo sem dispor, à época, do devido tratamento legislativo (MELLO, 2009, p. 992).

No entanto, ainda prevalecia o entendimento representado pela Teoria da Responsabilidade com Culpa, segundo o qual a Administração Pública apenas responderia pelos danos causados a particulares quando o dano fosse proveniente de ato de gestão (jure gestionis), pois estaria atuando como pessoa de direito privado. Em se tratando de ato de império (jure imperii), aquele no qual o Estado age no exercício de sua soberania, a irresponsabilidade estatal pelos danos causados por sua conduta lesiva perdurava, o que representava grande limitação à busca da justa reparação por parte da vítima, pois não se trata de tarefa simples caracterizar, no caso concreto, a atuação do Estado em atos de gestão ou de império, além de representar a irreparabilidade de uma lesão injusta causada por ente responsável pela tutela das leis e dos cidadãos (DINIZ, 2012, p. 674).

Posteriormente, a Teoria da Culpa Administrativa passou a aceitar a mera comprovação da ausência ou ineficiência do serviço público para o surgimento do direito de reparação civil à pessoa lesada. Desta forma, se tornava irrelevante a conduta individual dolosa ou culposa do agente público, pois a Responsabilidade Civil do estado surgia devido ao mau funcionamento das suas instituições ou da sua completa inexistência. A respeito do tema, Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p.992) lembra que: 

Em face dos princípios publicísticos não é necessária a identificação de uma culpa individual para deflagrar-se a responsabilidade do Estado. Esta noção civilista é ultrapassada pela idéia denominada de faute du service entre os franceses. Ocorre a culpa do serviço ou “falta de serviço” quando este não funciona, devendo funcionar, funciona mal ou funciona atrasado. Esta é a tríplice modalidade pela qual se apresenta e nela se traduz um elo entre a responsabilidade tradicional do Direito Civil e a responsabilidade objetiva.  

Tanto a Teoria da Culpa Administrativa quanto a Teoria da Responsabilidade com Culpa são modalidades de teorias subjetivas. Ambas relacionam o surgimento do dever de Reparação Civil do Estado com o aferimento da conduta estatal culposa.

A evolução histórica do modelo político liberal para a construção de um Estado Democrático de Direito contribuiu para o desenvolvimento das teorias objetivas da responsabilidade civil do estado. No dizer de Maria Helena Diniz (2012, p. 675): 

(...) a responsabilidade civil sai da teoria civilista, encontrando seu fundamento na seara do direito público, com base no princípio da igualdade de todos perante a lei, pois entre todos devem ser os ônus ou encargos equitativamente distribuídos. Não é justo que, para benefício da coletividade, somente um sofra encargos. Estes deverão ser suportados por todos indistintamente, contribuindo cada um por meio do Estado para a indenização de dano sofrido por um.

A responsabilidade civil objetiva do estado nasce quando o indivíduo sofre algum dano, o qual teve como origem o funcionamento do serviço público, sendo irrelevante se esse funcionamento foi bom ou mal. A pedra de toque da responsabilidade objetiva é a relação de causalidade entre o dano e o ato do agente público (VELLOSO, 1987, p. 234).

É comum a separação do estudo da teoria da responsabilidade civil objetiva do estado em três teorias, quais sejam: a teoria do risco administrativo, a teoria do risco integral e a teoria do risco social (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 234). José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 597) diferencia, de maneira bastante elucidativa, a teoria do risco administrativo da teoria do risco integral, quando assevera que: 

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No risco administrativo, não há responsabilidade civil genérica e indiscriminada: se houver participação total ou parcial do lesado para o dano, o Estado não será responsável no primeiro caso e, no segundo, terá atenuação no que concerne a sua obrigação de indenizar. Por conseguinte, a responsabilidade civil decorrente do risco administrativo encontra limites. Já no risco integral, a responsabilidade sequer depende do nexo causal e ocorre até mesmo quando a culpa é da própria vítima.

Com relação à teoria do risco social, ela visa transferir o foco da responsabilidade civil para a vítima, e não para o autor do dano, fundamentando-se no fato de que o dever de reparar os prejuízos sofridos seria de toda a coletividade. Graças à socialização dos riscos, a pessoa lesada teria direito à reparação justa pelos seus danos, pois não poderia ser a única a arcar com o ônus da atuação estatal (CARVALHO FILHO, 2010, p. 597). A adoção desta teoria implica na desnecessidade de prova efetiva da conduta atribuível ao Estado, por meio de seus agentes, para que este seja responsabilizado, pois seria aplicável aos casos em que não é possível identificar, com precisão, os autores dos delitos (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 236).

A teoria adotada no direito pátrio foi a do risco administrativo. Será suficiente, portanto, para o reconhecimento da responsabilidade extracontratual do Estado a comprovação do dano, da ação administrativa e do nexo de causalidade entre a conduta estatal e o prejuízo sofrido pelo particular (STOCO, 2011, 1136).

1.3 A responsabilidade civil do Estado por atos comissivos e omissivos

Ao seguir as diretrizes da teoria do risco administrativo, o direito brasileiro evidenciou a adoção da responsabilidade civil objetiva do Estado. Logo, é indiscutível que, na análise de uma lesão sofrida por terceiro em virtude da atuação de um agente público, o Estado será responsabilizado pela restituição do lesado ao status quo ante, independentemente da configuração de conduta culposa ou dolosa do seu preposto.

Não obstante a teoria do risco administrativo tenha sido aceita pelo direito como dogma, a responsabilidade civil subjetiva do Estado ainda sobrevive em determinadas situações. A reparação extracontratual de danos provenientes de atos judiciais ou da omissão estatal, bem como o direito de regresso da Administração perante o agente público causador do dano, são exceções à aplicação da responsabilidade civil objetiva, sendo imprescindível a comprovação da conduta culposa ou dolosa, a depender do caso, para o surgimento do dever de reparação.

Com relação à responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas, a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência é no sentido de admitir a sua configuração somente nas hipóteses em que se encontra comprovada a ineficiência ou inexistência do serviço público, consagrada pela expressão francesa faute du service. Dessa forma, para que seja caracterizada a responsabilidade extracontratual do ente estatal deverá ser demonstrada, em juízo, a ocorrência da culpa do serviço público, a qual diz respeito à imprudência, negligência ou imperícia na prestação do mister público que culminou em dano ao particular, nos moldes do princípio geral da culpa civil (STOCO, 2011, p. 1129).

Por outro lado, juristas como Carlos Roberto Gonçalves e Felipe Peixoto Braga Netto entendem que a responsabilidade civil do Estado na modalidade objetiva também será aplicada nos casos de conduta omissiva, desde que seja estabelecido o nexo de causalidade direto e imediato entre a omissão estatal e o dano. Tal entendimento já chegou a ser adotado até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal em determinadas decisões (BRAGA NETTO, 2012, p. 159).

No entanto, a jurisprudência tanto do Pretório Excelso quanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ, RESP 1023937-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ 08/06/2010) tem sido firmada no sentido de defender a tese da responsabilidade civil subjetiva do Estado, nos casos de condutas omissivas. Com efeito, não destoa deste entendimento o teor do seguinte acórdão:

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. OMISSÃO. BACEN. DEVER DE FISCALIZAÇÃO. MERCADO DE CAPITAIS. QUEBRA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. EVENTUAL PREJUÍZO DE INVESTIDORES. NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA. 1. A pacífica jurisprudência do STJ e do STF, bem como a doutrina, compreende que a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas é subjetiva, sendo necessário, dessa forma, comprovar a negligência na atuação estatal, ou seja, a omissão do Estado, apesar do dever legalmente imposto de agir, além, obviamente, do dano e do nexo causal entre ambos. 2. O STJ firmou o entendimento de não haver nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido por investidores em decorrência de quebra de instituição financeira e a suposta ausência ou falha na fiscalização realizada pelo Banco Central no mercado de capitais. 3. Recursos Especiais providos.  

A respeito da distinção entre a omissão genérica, a qual não tem o condão de atrair a responsabilidade civil do Estado, e a omissão específica, a qual poderá resultar no dever de o Estado reparar o prejuízo sofrido, diante das circunstâncias de cada caso, Felipe Peixoto Braga Netto (2012, p. 163) faz o seguinte comentário:

Nem sempre é fácil distinguir a omissão que causa a responsabilidade civil do Estado daquela que não o responsabiliza. A questão envolve múltiplos fatores, como o nexo causal, as circunstâncias de fato, a natureza do dano, e a própria configuração da omissão. Quanto mais genérica esta forma, mais difícil seria responsabilizar o Estado por ela. Será difícil, no atual estado jurisprudencial, responsabilizar o Estado por todos os assaltos ocorridos no país. Porém, se alguém é assaltado em frente a uma delegacia de polícia, estando patente a inação estatal, é possível que o dever de indenizar se faça presente. Quanto mais específica for a omissão, diante do dever de agir, concreto e palpável, que se impõe ao Estado, mais claro será o seu dever não cumprido.

1.4 A evolução legislativa e jurisprudencial da responsabilidade civil do Estado no direito brasileiro

No contexto histórico do direito positivo pátrio, a irresponsabilidade estatal jamais foi admitida pelas Constituições brasileiras. Com efeito, a Constituição do Império previa, em seu artigo 179, item 29, a responsabilidade dos agentes públicos pelos danos e abusos decorrentes das suas condutas omissivas ou comissivas, no exercício de suas respectivas profissões. No entanto, Carlos Velloso (1987, p. 240) faz a seguinte ressalva, ao discorrer acerca da Constituição de 1824: “Apenas o Imperador era irresponsável, conforme dispunha o art. 99 da mesma Constituição, a dizer: ‘a pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”.

A primeira Constituição republicana deste país, promulgada no ano de 1891, não alterou o modo de lidar com a responsabilidade extracontratual do estado. O artigo 82 da referida carta política manteve restrito o dever de reparação pelos danos causados aos particulares apenas aos prepostos do Estado. O mencionado dispositivo constitucional rezava que: “Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos”.

A responsabilidade com culpa veio a ser instituída, na ordem jurídica brasileira, pelo Código Civil de 1916 (VELLOSO, 1987, p. 240). O seu artigo 15 estabelecia que: 

as pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causarem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano

Tal legislação representou um marco na evolução do instituto da responsabilidade civil do Estado, pois reconheceu a possibilidade de o ente estatal figurar no polo passivo de eventual ação proposta por terceiros, em decorrência de atuação dolosa ou culposa do agente público, sem prejuízo do eventual direito regressivo contra os causadores do dano.

A Constituição de 1934 estabelecia, nos termos do seu artigo 171, que:

Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.

§ 1º - Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte.

§ 2º - Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário culpado.

Rui Stoco (2011, p. 1123) conclui que: “A Constituição de 1934 admitiu a responsabilidade direta e solidária do Estado, sem ressalvar a natureza criminosa do fato como excludente (art. 171)”.

A Carta Magna de 1937, outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas, se limitou a repetir, em seu artigo 158, o que já havia sido disposto no artigo 171 da Constituição de 1934 (ROCHA, 1991, p. 114). Por tal razão, a Constituição do Estado Novo não trouxe qualquer tipo de inovação no tratamento e na interpretação do instituto jurídico em análise.

A Constituição Federal de 1946, por outro lado, implementou uma verdadeira revolução na disciplina jurídica da responsabilidade civil do estado ao adotar expressamente a teoria objetiva. O artigo 194 da Constituição de 18 de setembro de 1946 deixa evidente a nova posição adotada pelo Poder Constituinte ao dispor que: 

As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único: Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

Muito embora o artigo transcrito tenha inaugurado em nosso ordenamento jurídico, com clareza solar, a teoria objetiva do risco administrativo, a construção pretoriana não corroborou imediatamente e de forma pacífica com tal entendimento.

Conforme lembra Felipe Peixoto Braga Netto (2012, p. 58): “(...) não bastou que a Constituição de 1946 dispensasse a culpa para que a jurisprudência seguisse o mesmo caminho. O processo foi lento, como costuma ser nesses casos”.

A Constituição de 1967 manteve a orientação iniciada pela ordem constitucional anterior e adotou, da mesma maneira, a responsabilidade civil do Estado em sua modalidade objetiva. Outra não é a posição adotada pelo seu artigo 105, o qual rezava que:

As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Parágrafo único: Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.

A emenda constitucional nº 1, de 1969, não instituiu qualquer mudança no tratamento da matéria. Limitou-se, portanto, a reproduzir o princípio da responsabilidade civil objetiva do Estado, o qual havia sido inaugurado pela Constituição de 1946 e albergado também no texto da Constituição de 1967 (WALD, 1993, p. 7).

O princípio da responsabilidade estatal objetiva também foi insculpido no texto da Constituição Federal de 1988, nos termos do seu artigo 37, § 6º, o qual estabelece que: 

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Embora tenha mantido o posicionamento da teoria do risco administrativo, adotada por todas as constituições brasileiras desde a Carta Magna de 1946, o constituinte de 1988 esclareceu de maneira explícita a eventual discussão que surgia, sob a égide da Carta Política anterior, a respeito do enquadramento das autarquias, das entidades paraestatais, a exemplo das sociedades de economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos, bem como das concessionárias de serviços públicos no princípio da responsabilidade extracontratual do Estado (STOCO, 2011, p. 1300). Conclui Rui Stoco (2011, p.1301) que o artigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988: “(...) deixou estreme de dúvida que todas as entidades enumeradas respondem objetivamente pelos atos de seus prepostos”. Também é mister ressaltar que a redação do mencionado artigo utilizou a expressão “agentes”, substituindo o termo “funcionário público”. O uso deste termo significou uma denominação mais técnica e tornou inócua qualquer polêmica a respeito da abrangência da aplicação da disciplina da responsabilidade civil a todos os agentes da Administração Pública (MELLO, 2009, p.998).

Com o advento do Código Civil de 2002, foi modificado o tratamento reservado à matéria, pela legislação civil, ultrapassando a teoria da responsabilidade subjetiva, adotada pelo Código Civil de 1916, e se adequando aos mandamentos constitucionais. Com efeito, dispõe o seu artigo 43 que: 

As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Sob o pálio da constituição cidadã, a jurisprudência dos tribunais pátrios tem confirmado, de maneira remansosa, a responsabilidade civil objetiva do Estado prevista pelo texto do artigo 37, § 6º da Constituição. Ademais, os precedentes judiciais, bem como as orientações sumuladas das cortes superiores são imprescindíveis para nortear os operadores do direito no tocante aos diversos problemas que tal tema apresenta na prática forense, além de suprir a ausência, no nosso direito positivo, de legislação infraconstitucional reguladora do tema (BRAGA NETTO, 2012, p. 57). O Projeto de Lei 5480/2009 foi apresentado pelo deputado Flávio Dino à Câmara dos Deputados em 24 de junho de 2009 e tem o objetivo de consolidar boa parte da evolução jurisprudencial sobre o tema (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 980).

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Sobre o autor
Felipe Castelo Branco de Abreu

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Felipe Castelo Branco. Danos morais na responsabilidade civil do Estado:: a fixação do quantum debeatur segundo a jurisprudência do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4470, 27 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35320. Acesso em: 18 abr. 2024.

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