I – INTRODUÇÃO
Oito anos depois da publicação do trabalho sobre “a possibilidade de acumulação de cargo público de professor universitário, em regime de dedicação exclusiva, com cargo de magistrado federal” (1) é tempo de proceder-se a uma releitura das ideias que foram apresentadas, confrontando-as com as mudanças legislativas ocorridas e as posições sedimentadas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Contas da União.
Em vez de partir das conclusões então formuladas, preferi reconstruir o texto, com o objetivo de poupar o leitor do esforço de comparar a versão antiga com os novos dados.
Como sempre, agradeço os comentários críticos que porventura venham a ser feitos, os quais certamente auxiliarão a alcançar uma melhor compreensão da matéria.
II – “REGIME DE DEDICAÇÃO EXCLUSIVA” E DE “DEDICAÇÃO INTEGRAL”
Inicialmente, é mais que válido chamar a atenção para o fato de que a dedicação exclusiva nada mais é do que um regime de trabalho; assim, "quando se fala em regime de dedicação exclusiva, não se está referindo a nenhum outro cargo público específico, mas a um regime de trabalho inerente ao cargo de Professor, seja de Universidade, Escola Técnica ou de Ensino Fundamental, previsto em legislação específica", como acertadamente salientado pela Secretaria de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG, quando do Despacho proferido nos autos do Processo no. 04500.000276/2005-21, datado de 14.05.2005 e aprovado pelo Sr. Secretário de Recursos Humanos do MPOG no dia seguinte.
A qualificação da “dedicação exclusiva” como um regime de trabalho é afirmada, outrossim, no art. 20 da Lei no. 12.772/2012, “verbis”:
“Art. 20. O Professor das IFE, ocupante de cargo efetivo do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal, será submetido a um dos seguintes regimes de trabalho:
“I - 40 (quarenta) horas semanais de trabalho, em tempo integral, com dedicação exclusiva às atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão institucional; ou
“II - tempo parcial de 20 (vinte) horas semanais de trabalho.
§ 1o Excepcionalmente, a IFE poderá, mediante aprovação de órgão colegiado superior competente, admitir a adoção do regime de 40 (quarenta) horas semanais de trabalho, em tempo integral, observando 2 (dois) turnos diários completos, sem dedicação exclusiva, para áreas com características específicas.” (grifei)
Ainda, e a respeito das diferenças entre os regimes de trabalho dos servidores públicos submetidos a dedicação de tempo integral e a dedicação exclusiva, válido recordar a definição clássica de HELY LOPES MEIRELLES (2):
"O adicional de tempo integral, advém do regime de full – time norte – americano e só recentemente foi adotado pela Administração brasileira. O Estatuto federal facultava o estabelecimento deste regime de trabalho "para os cargos ou funções indicados em lei" (Lei no. 1.711/52, art. 244). A subseqüente Lei 3.780, de 12.7.1960, permitia a sua adoção pelo servidor que exercesse atividades técnico – científicas de magistério ou pesquisa, satisfeitas as exigências regulamentares, declarando-o incompatível com o exercício cumulativo de cargos, empregos ou funções, bem como de qualquer outra atividade pública ou privada (art. 49 e §§).
"Posteriormente as Leis 4.345, de 26.6.1964 e 3.863, de 29.11.1965, estabeleceram novas regras para esse adicional, especificando os cargos em que poderia ser adotado. Atualmente o regime jurídico dos servidores da União não prevê esse adicional. (...) O que caracteriza o regime de tempo integral é o fato de o servidor só poder exercer uma função ou um cargo público, sendo-lhe vedado realizar qualquer outra atividade profissional particular ou pública. Nesse regime a regra é um emprego e um só empregador, diversamente do que ocorre no regime de dedicação plena em que o servidor pode ter mais de um emprego e mais de um empregador, desde que diversos da função pública a que se dedica precipuamente. (...)
"O adicional de dedicação plena tem natureza similar à do de tempo integral, visto que ambos resultam de regimes especiais de trabalho, exigidos por determinadas atividades de magistério e pesquisa, próprias das Universidades e Institutos científicos.
"A diferença entre o regime de tempo integral e o de dedicação plena está em que, naquele, o servidor só pode trabalhar no cargo ou na função que exerce para a Administração, sendo-lhe vedado o desempenho de qualquer outra atividade profissional púbica ou particular, ao passo que neste (regime de dedicação plena), o servidor trabalhará na atividade profissional de seu cargo ou de sua função exclusivamente para a Administração, mas poderá desempenhar atividade diversa da de seu cargo ou de sua função sem qualquer outro emprego particular ou público, desde que compatíveis com o da dedicação plena. No regime de tempo integral o servidor só poderá ter um emprego; no de dedicação plena poderá ter mais de um desde que não desempenhe a atividade correspondente à sua função pública exercida neste regime. Exemplificando: o professor em regime de tempo integral só poderá exercer as atividades do cargo e nenhuma outra atividade profissional pública ou particular; o advogado em regime de dedicação plena só poderá exercer a advocacia para a Administração da qual é servidor, mas poderá desempenhar a atividade de magistério ou qualquer outra, para a Administração (acumulação de cargos) ou para particulares. (...)". (grifei)
Entretanto, e não obstante a previsão do art. 244 da Lei no. 1.711/52, RODRIGO PATTO SÁ MOTTA informa que o regime de tempo integral para os docentes “era algo inexistente no sistema de ensino federal (mas presente na USP desde os anos 1930)”, com a solitária exceção que era o Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA; mesmo assim, “o ITA restringia-se a área específica, não tinha formato de universidade, tampouco a pretensão de influenciar o resto do sistema de ensino”. (3)
Outrossim, vale salientar que a própria legislação administrativa, em certo momento, confundiu ambos os regimes.
Assim, no art. 2o. do Decreto no. 54.061, de 28.7.1964, lê-se:
"Art. 2o. – Considera-se regime de tempo integral o exercício da atividade funcional de dedicação exclusiva, ficando o funcionário proibido de exercer cumulativamente outro cargo, função ou atividade particular de caráter empregatício profissional ou pública de qualquer natureza." (grifei)
Também no art. 39 da Lei no. 4.881-A, de 06.12.1965, que dispôs acerca do Estatuto do Magistério Superior, "verbis":
"Art. 39 – Considera-se regime de tempo integral o exercício da atividade funcional com dedicação exclusiva, em que o ocupante de cargo do magistério superior fica proibido de exercer, cumulativamente, qualquer outro cargo, embora de magistério, ou qualquer função ou atividade que tenha caráter de emprego. " (grifei)
Ou como no art. 6o., "caput" do Decreto no. 57.744, de 03.02.1966, "verbis":
"Art. 6o. – O regime de tempo integral e dedicação exclusiva obriga ao mínimo de 40 (quarenta) horas semanais de trabalho, sem prejuízo de ficar o funcionário à disposição do órgão em que estiver sendo exercido, sempre que as necessidades do serviço o exigirem. (...)". (grifei)
Este mesmo Decreto, em seu art. 2o., "caput", determinou que:
"Art. 2o. – Ao funcionário sujeito a regime de tempo integral e dedicação exclusiva, é proibido exercer cumulativamente outro cargo, função, profissão ou emprego, público ou particular." (grifei)
Isso mostra que, na verdade, é do regime de dedicação integral que se está a tratar.
É fato, contudo, que o regime de "tempo integral e dedicação exclusiva" não foi óbice à acumulação de cargos, ao nível regulamentar.
Como retratado pelo art. 10, parágrafo único do Decreto no. 57.744, de 03.02.1966, "verbis":
"Art. 10. A gratificação pelo exercício em regime de tempo integral e dedicação exclusiva será considerada, para efeito do cálculo de provento de aposentadoria, à razão de 1/30 (um trinta avos) por ano de efetiva permanência nesse regime.
"Parágrafo único. O funcionário que ocupar mais de um cargo mediante acumulação legalmente permitida, e estiver submetido ao regime de tempo integral e dedicação exclusiva, poderá, ao passar à inatividade, optar pela situação que mais lhe convier, observado o disposto neste artigo, sendo vedada a acumulação dos benefícios de ambos os regimes, a qualquer título." (grifei)
Nesta situação, a "gratificação pelo exercício em regime de tempo integral e dedicação exclusiva" era apenas isto – uma gratificação – desvinculada do preenchimento de qualquer condição restritiva por parte do servidor, como o de não exercer atividades outras, públicas ou privadas.
III – O REGIME DE DEDICAÇÃO EXCLUSIVA DOS PROFESSORES DE INSTITUTIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICAS NÃO IMPEDE A ACUMULAÇÃO DO CARGO COM OUTRO DE MAGISTRADO
Antecipo a conclusão do argumento que será defendido ao longo deste trabalho: o regime de dedicação exclusiva dos professores de instituições de ensino superior públicas não impede a acumulação do cargo com outro de magistrado.
Antecipada a conclusão, passo a expor as suas premissas.
Em primeiro lugar, há que se destacar que, tradicionalmente em nosso sistema jurídico, o funcionalismo público federal encontra as normas e os princípios fundamentais de suas relações de trabalho com a Administração Pública Federal na Constituição Federal mesma; depois, e naturalmente de acordo com aquelas normas e aqueles princípios, na legislação infraconstitucional, variadíssima.
Como já dizia MANOEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO, sob a égide da CF/67, ao comentar o Decreto – lei no. 200/67 – por sinal, ainda em vigor (4):
"Os poderes, portanto, que a Administração possui, para organizar o quadro do funcionalismo ou para estabelecer normas regulamentares relativas ao pessoal do serviço publico civil, são os constitucionais e não os discricionários. Na verdade, não se pode negar ao poder estatal a faculdade de formar o seu corpo de pessoal administrativo, ou de modificar a sua estrutura.
"No entanto, há de prevalecer sempre o regime relacional que a Carta decretou e promulgou. Daí o entendimento que se encontra no Título XI que, respeitando as necessidades objetivas da Administração, de modo a assegurar a eficiência e o rendimento dos serviços, não violentou preceito constitucional algum, mas simplesmente procurou traduzir realidades circunstanciais.
"Duas evidentes premissas se encontram no corpo da Constituição (Seção VIII): a) uma de que as normas estatutárias devem atender os princípios básicos nela estabelecidos; b) outra de que os direitos, obrigações e vantagens a serem assegurados aos funcionários assentam na bilateralidade do comportamento legal. Não se obriga só a Administração, mas o servidor na exação das práticas funcionais.
"Código de direitos e de obrigações, as normas estatutárias, onde existirem na soberania das Constituições, hão de ser observadas porque representam parte integrante dos sistemas jurídicos nacionais. Inobservadas ou desobedecidas violentam a Constituição, que não pode sofrer restrições quanto aos direitos que ofertou, nem distorções quanto às limitações que impôs." (grifei)
Esse fato, indiscutível, permite que se chegue a uma primeira conclusão, também indiscutível.
Todos os regimes de trabalho dos servidores públicos federais, criados por lei, estarão inevitavelmente vinculados àquelas normas e àqueles princípios constitucionais.
Seja o regime estatutário; seja o celetista; seja algum outro que vier a ser criado, se e quando emendada a Constituição Federal de modo a superar o vício formal declarado pelo STF na ADI no. 2.135-4/DF, Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, o resultado terá que ser sempre o mesmo: a obediência da legislação infraconstitucional às grandes normas e aos superiores princípios sediados na Constituição Federal.
Logo, assim também deverá ser no que disser respeito à definição das espécies de regimes de trabalho dos servidores públicos federais, e também assim deverá ser em tudo o que disser respeito às hipóteses de vedação ou de permissão de acumulação de cargos, empregos e/ou funções públicos.
Qualquer que seja o regime de jornada de trabalho dos servidores públicos federais, terá que ser compatível com as normas e os princípios constitucionais nos quais encontra vinculativamente seu fundamento de legitimidade e de validade.
E qualquer restrição quanto ao regime de jornada de trabalho dos servidores públicos federais somente será legítima e válida se puder ser subsumida em uma norma ou princípio constitucional que expressamente enuncie a mesma restrição normatizada pela legislação infraconstituconal.
Isso tendo em vista o conhecido princípio de hermenêutica de que as restrições a direitos devem ser interpretadas estritamente, em atenção ao princípio da liberdade, que é a regra geral.
Não é possível, conseqüentemente, à legislação infraconstitucional vedar hipótese de acumulação de cargos, empregos e/ou funções públicas, que tenha sido permitida expressamente pela Constituição Federal.
Todo e qualquer regime jurídico de servidores públicos federais instituído por lei para com a Administração Pública Federal -, instituindo os deveres, direitos e obrigações aos quais reciprocamente encontram-se obrigados - forçosamente terá que obedecer a esta regra, inafastável, imperiosamente vinculativa, ausente qualquer traço de discricionariedade possível.
Onde a Constituição Federal permitir a acumulação de cargos, empregos e/ou funções públicas, a Administração Pública Federal estará obrigada a admiti-la, por igual, quando da necessária complementação e integração daqueles princípios e normas constitucionais, tanto ao nível legislativo, como ao administrativo – regulamentar.
Inexiste discrição legislativa ou administrativa, frente a norma constitucional permissiva de hipótese de acumulação de cargos, empregos e/ou funções públicas, por natureza, vinculativa.
Idêntico raciocínio é de ser empregado em relação à questão da acumulação de cargos públicos por magistrados.
Chega-se, aqui, à conclusão que foi antecipada.
O regime de dedicação exclusiva dos professores de instituições de ensino superior federais não impede a acumulação do cargo com outro de magistrado.
Pelo simples fato de que a Constituição Federal, ela própria, permite a acumulação de cargo de magistrado com um outro, de professor, sendo a outra condição objetiva a compatibilidade de horários.
Estas as únicas condicionantes – cargo de professor e compatibilidade de horários.
Todos os regimes de trabalho dos professores, normatizados por lei e regulamentos por atos administrativos, sejam provenientes da competência regulamentar do Poder Executivo, seja de competência regulamentar semelhante das Universidades Federais, no exercício de sua autonomia, têm que se curvar a esta realidade constitucional.
IV – A JURISPRUDÊNCIA DO STF SOBRE A MATÉRIA
Há dois precedentes essenciais do STF a respeito da acumulação dos cargos de professor e de magistrado.
Na ADI 3126-1-MC - DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, dec. un. pub. DJ 06.05.2005, p. 06, no qual interpretou-se a restrição da norma do art. 95, parágrafo único, I da CF, no sentido de que o juiz poderia acumular mais de um cargo de professor com o da magistratura, desde que respeitado, ao final, a exigência da “compatibilidade de horários”.
Eis a respectiva ementa:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra a Resolução no 336, de 2.003, do Presidente do Conselho da Justiça Federal, que dispõe sobre o acúmulo do exercício da magistratura com o exercício do magistério, no âmbito da Justiça Federal de primeiro e segundo graus. 2. Alegação no sentido de que a matéria em análise já encontra tratamento na Constituição Federal (art. 95, parágrafo único, I), e caso comportasse regulamentação, esta deveria vir sob a forma de lei complementar, no próprio Estatuto da Magistratura. 3. Suposta incompetência do Conselho da Justiça Federal para editar o referido ato, porquanto fora de suas atribuições definidas no art. 105, parágrafo único, da Carta Magna. 4. Considerou-se, no caso, que o objetivo da restrição constitucional é o de impedir o exercício da atividade de magistério que se revele incompatível com os afazeres da magistratura. Necessidade de se avaliar, no caso concreto, se a atividade de magistério inviabiliza o ofício judicante. 5. Referendada a liminar, nos termos em que foi concedida pelo Ministro em exercício da presidência do Supremo Tribunal Federal, tão-somente para suspender a vigência da expressão "único (a)", constante da redação do art. 1o da Resolução no 336/2003, do Conselho de Justiça Federal.” (grifei)
Observe-se, porém, que a ADI 3126 ainda encontra-se pendente de julgamento quanto ao mérito propriamente dito.
Quanto ao requisito da compatibilidade de horários, a Corte entendeu que haveria que ser identificada caso a caso, não se podendo estabelecer presunção “a priori”, no julgamento do RE 633298 – AgR, 2ª. Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, dec. un. pub. DJE 14.02.2012, cuja respectiva ementa passo a transcrever:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. EXISTÊNCIA DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL QUE LIMITA A JORNADA SEMANAL DOS CARGOS A SEREM ACUMULADOS. PREVISÃO QUE NÃO PODE SER OPOSTA COMO IMPEDITIVA AO RECONHECIMENTO DO DIREITO À ACUMULAÇÃO. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS RECONHECIDA PELA CORTE DE ORIGEM. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. I - A existência de norma infraconstitucional que estipula limitação de jornada semanal não constitui óbice ao reconhecimento do direito à acumulação prevista no art. 37, XVI, c, da Constituição, desde que haja compatibilidade de horários para o exercício dos cargos a serem acumulados. II (...)” (grifei)