As concessões de serviços públicos essenciais na modalidade não concorrencial e os abusos de direito sofridos pelos usuários

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5. A outra face da moeda: o contrato entre a concessionária e o usuário.

Tendo por base a situação jurídica complexa entre o Poder Concedente, a concessionária e o usuário, faz-se necessário também, preliminarmente a análise dos abusos do direito praticados pelas concessionárias e a observância da natureza jurídica obrigacional dos contratos celebrados entre estas e os usuários dos serviços.

Em se tratando de contratos de prestação de serviços público essenciais, devido ao seu caráter de indispensabilidade a qualquer indivíduo, nota-se tratar-se de relações jurídicas de massa, as quais manifestam-se por meio de contratos de adesão. No atual estágio da ciência jurídica, o contrato de adesão, como leciona Paulo Lôbo[11], pode ser concebido como o contrato que, ao ser concluído, adere a condições gerais predispostas ou utilizadas por uma das partes, que passam a produzir efeitos independentemente de aceitação da outra parte, aderindo, assim, ao que convencionou-se por chamar de adesão a condições gerais do contrato. Por contrato de adesão, o Código de Defesa do Consumidor, Lein 8.078/90, estabelece no artigo 54 como sendo aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

5.1 A igualdade de prerrogativas do consumidor e do usuário de serviços públicos.

Nos contratos de adesão, a exemplo dos celebrados entre as concessionárias prestadoras de serviços públicos essenciais e os usuários, com a adesão destes às condições gerais, verifica-se na doutrina como não sendo uma exteriorização consciente da vontade, mas submissão às condições predefinidas. Desta feita, no intuito de proteger o aderente ante a despersonalização inerente a esta modalidade contratual, o código civil de 2002 qualifica-o como vulnerável, dando a ele uma condição mais favorável no que diz respeito à interpretação das cláusulas contratuais, como pode ser observado na leitura dos artigos 423 e 424 do referido código. Evitando, assim, possíveis onerosidades excessivas impostas ao aderente.

O direito de proteção ao usuário é uma prerrogativa que lhe é assegurada constituicionalmente. Entretanto, nos deparamos aqui com um ponto polêmico ocasionador de divergências na doutrina a respeito da matéria. A Constituição Federal de 1988, ao tratar sobre a ordem econômica e financeira, dispõe no artigo 175, caput, ser dever do poder público a prestação de serviços públicos de forma direta ou sob regime de concessão ou permissão. E, no parágrafo único, inciso II, do referido artigo, estabelece que o poder público deverá assegurar os direitos dos usuários mediante lei específica.

Ante a necessidade de elaboração de lei específica a fim de assegurar os direitos dos usuários, parte da doutrina entende que isso equivale a um reconhecimento implícito que essa defesa  seria juridicamente diversa da defesa do consumidor, regulada pela Lei n 8.078/90. Para Antônio Carlos Cintra do Amaral[12], só é possível considerar-se o usuário como consumidor do serviço público a ele prestado pela concessionária sob a ótica econômica. Sob a ótica jurídica, o usuário de serviço público e o consumidor estariam em situações distintas.

Amaral[13] afirma que, embora consumidor e usuário se confundam como a mesma pessoa, juridicamente o tratamento dado é diferente, uma vez que a modalidade contratual e os requisitos de contratação são distintos. Isso porque, a relação jurídica entre concessionária e usuário não pode ser equiparada à existente entre duas pessoas privadas, que atuam na defesa de seus interesses específicos. O serviço público, ainda que executado pela concessionária, é de titularidade e responsabilidade do poder concedente. E que na relação de consumo o Poder Público atuaria de forma diversa, como protetor da parte considerada hipossuficiente que, via de regra, é o consumidor.

Entretanto, ante a inércia legislativa em se elaborar uma lei específica de defesa do usuário de serviços públicos, como determina o artigo 27 da emenda constituicional n 19/98, e levando-se em consideração a consolidação do Código de Defesa do Consumidor como um microssitema do direito brasileiro, o próprio Antônio Carlos Cintra do Amaral, que critica a incostitucionalidade praticada pelo Congresso Nacional em Decorrência da inércia legislativa, reconhece ao tratar da matéria a necessidade prática de aplicação do CDC aos usuários.

Em observância à própria natureza dos contratos de adesão, onde é patente a vulnerabilidade do aderente, caracterizando-se como consumidor final do produto, verificamos uma igualdade de prerrogativas entre o consumidor e o usuário dos serviços públios essenciais, sendo completamente inviável a não aplicação do CDC para o usuário de maneira análoga à aplicação ao consumidor, tendo em vista a inexistência de lei específica que lhes assegure os seus direitos. Até porque não pode o usuário ficar sem a devida proteção em contratos de serviços compulsórios, uma vez que não teria condições de renunciar aos serviços que estão à sua disposição.        

5.2 Vulnerabilidade e responsabilização

A vulnerabilidade, existente nos negócios jurídicos celebrados entre as concessionárias e os usuários,   não se confunde com hipossuficiência econômica, ela reside no fato da posição de desigualdade no que atine ao poder negocial derivado da aderência do usuário às condições gerais do contrato. A vulnerabilidade jurídica radica-se no fato de submeter-se a condições gerais, sem poder discuti-las.

Paulo Lôbo, ao tratar dos direitos básicos do consumidor estabelecidos no artigo 6º do CDC, constata que, com as experiências brasileiras de privatização de setores importantes da economia nacional, ao final do século XX, principalmente de fornecimento ou prestação de serviços públicos, revelaram o crescimento das demandas de regulação, para proteção dos contratantes usuários. E a regulação se dá, prioritariamente, no controle das relações contratuais, para tutela dos contratantes vulneráveis, que exercem pouco ou nenhum poder de barganha[14].

Entretanto, no que diz respeito à vulnerabilidade jurídica do usuário, esta não se dá em proporções diversas da vulnerabilidade do consumidor. Isso porque, como já visto aqui, trata-se de uma situação jurídica complexa, a qual envolve não só o usuário e a prestadora do serviço, mas também a Administração Pública através da figura do Poder Concedente[15]. E, em decorrência dessa vulnerabilidade dada de forma mais acentuada, faz-se necessário a observância quanto à responsabilização pelos possíveis danos causados aos usuários em decorrência de abusos de direito e falha na prestação dos serviços, no intuito de dar-lhes a proteção devida.

Tendo em vista tratar-se de uma situação jurídica complexa, da mesma forma que o Estado não pode, por meio de delegação, eximir-se de sua responsabilização por falhas na prestação do serviço, tão pouco poderá o agente privado apenas beneficiar-se dos poderes assumidos com o contrato de concessão, sem arcar com os deveres correlatos a este negócio jurídico. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, em julgamento de Recurso Extraordinário n. 302.622-4 de Minas Gerais, julgado em 6/11/2004, fez o seguinte questionamento: "quando o Estado, mediante contrato administrativo, transfere ao particular uma parcela das suas múltiplas atividades, ocorre uma transferência substancial na natureza dessas atividades? Seria essa transformação de tal monta, a ponto de extirpar do serviço prestado pelo particular as características que lhe dão próprias, ou seja, as de um típico serviço público, do qual a coletividade como um todo se beneficia?" Assim, constata-se que além de o Estado responder objetivamente pelos danos causados, também responderá a concessionária no que diz respeito à responsabilidade civil pelos danos causados.

Nos contratos de prestação de serviços públicos essenciais, em alguns casos como os de fornecimento de água e energia elétrica, por exemplo, é comum a adoção pela Administração Pública de um modelo não concorrencial, no qual não há o processo licitatório ante a inexistência de outras empresas que pudessem suprir a demanda de determinada região do País. E, levando-se em consideração a alta demanda e a baixa oferta de empresas que possam executar o serviço, é recorrente a ocorrência de abusos de direito por parte das concessionárias. Entretanto, da mesma forma que o usuário não pode eximir-se de suas obrigações contratuais, as empresas prestadoras de serviços públicos essenciais não podem, ao seu bel prazer, de forma unilateral e imperiosa em virtude do grande poder que possuem adquirido a partir da delegação dos serviços pelo Estado, adotar práticas abusivas como, por exemplo, suspender a prestação do serviços que, em tese, são contínuos.

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Para garantia dos direitos dos usuários, ainda que de forma posterior através do direito de regresso em recurso ao Poder Judiciário, é de importância basilar a análise da responsabilização pelos danos causados não só da prestadora dos serviços, mas também do Estado. Diferentemente das relações de consumo, nas situações em que envolve a prestação de serviços públicos, por tratar-se de situação jurídica complexa, o inadimplemento por parte da concessionária gera sua responsabilidade perante o usuário, como também, solidariamente, do poder concedente, na medida em que mantém a titularidade do serviço concedido.           


6. O abuso do poder/direito contratual por parte das concessionárias.

As agências reguladoras dos serviços públicos possuem por função articular e coordenar as ações do poder concedente e da concessionária, harmonizando os vários interesses envolvidos, sempre com a finalidade básica de garantir a prestação dos serviços de forma adequada e efetiva aos usuários.[16] Entretanto, ainda que detenha o poder  de fiscalização e controle dos contratos celebrados entre o Estado e as concessionárias, com frequência, nos deparamos em situações de falhas na prestação do serviço. E, como leciona Antônio Carlos Cintra do Amaral[17], o problema, muitas vezes, não está na agência, mas na deficiência do contrato administrativo celebrado, deficiência essa ocasionada na grande parte das vezes em virtude da inexperiência, tato da Administração quanto da proponente interessada na concessão, ante a nova realidade, caracterizada por um maior primor tecnológico e um quadro legal recente (fazendo referência às Leis 8.987 e 9.074 de 1995).

Ainda que haja a limitação técnica e ainda que se esteja em uma fase de adaptação à nova realidade no que atine ao instituto da concessão, nos deparamos com uma difícil situação que é a dos abusos de direito praticados pelas concessionárias nos contratos de prestação de serviços públicos na modalidade em que não há licitação. Embora o Estado seja o verdadeiro detentor do poder para prestar atividades ou serviços públicos e as concessionárias apenas executem as atividades de forma delegada, pragmaticamente, o que se verifica é um domínio do poder econômico pelos agentes executores dos serviços e fornecedores dos produtos, levando-se, para isso, em consideração as noções de mercado relevante e posição dominante. Sérgio Varella Bruna, em análise ao abuso do poder econômico, elenca poder econômico e concorrência como forças de polaridades negativas[18]. Isso porque o poder econômico e a concorrência expressam entre si uma relação antitética, pois uma concorrência em um patamar tido por ideal pressupõe a existência mínima de poder econômico.

Embora a própria Lei Antitruste autorize em dadas situações práticas restritivas de concorrência[19], nos contratos de prestação de serviços públicos essenciais na modalidade não concorrencial o que vemos é uma prática, recorrente, de abusos de direitos contratuais por parte das concessionárias.  Levando-se em consideração tratar-se de uma situação jurídica complexa, esses abusos repercutem tanto em relação ao contrato administrativo celebrado entre o Estado e o prestador do serviço, quanto na relação contratual entre o prestador do serviço e o usuário.

Por abuso de direito, conceitua o Código Civil de 2002 no artigo 187 como ato ilícito cometido pelo titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes. Assim, a noção nuclear do conceito de abuso de direito é o exercício de um direito subjetivo contrariamente à sua finalidade social. E, no nosso dia a dia, nos deparamos constantemente com situações de abusos de direito praticados pelas concessionárias em decorrência de seu  poder econômico, que lhe permite, pragmaticamente, uma discricionariedade maior tanto em sua relação com a administração pública, quando em relação aos usuários dos serviços prestados.

É prática comum das prestadoras de serviços, como pode-se observar por meio de precedentes em diversos tribunais brasileiros e na prática forense, a suspensão ilegal do fornecimento de serviços, em se tratando de serviços obrigatórios em virtude de sua essencialidade, como, por exemplo, fornecimento de energia elétrica, água e serviços de esgoto. À luz dos princípios da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da razoabilidade, torna-se inconteste a atuação em desconformidade com a boa-fé objetiva por parte das concessionárias quando ameaçam suspender o fornecimento do serviço ou quando o suspendem de forma arbitrária, utilizando-se indevidamente da posição contratual favorável que ocupam, tanto em sua relação contratual com o Estado, quanto em sua relação contratual com os usuários, sendo estes os mais prejudicados.

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Sobre o autor
Fernando Henrique Franco de Aquino

Advogado. Pós-Graduando em Direito Contratual pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Bacharel em Direito pela UFPE, com parte do Bacharelado realizado na Universidade de Salamanca, Espanha - USAL.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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