As concessões de serviços públicos essenciais na modalidade não concorrencial e os abusos de direito sofridos pelos usuários

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7. O direito de regresso como único meio de "proteção" do usuário.

Em decorrência dos possíveis danos que vierem a ser causados aos usuários dos serviços públicos, a eles é assegurado o chamado direito de regresso. A Constituição Federal estabelece no parágrafo sexto do artigo 37 que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. E, como já visto, essa responsabilidade se dará de forma solidária e objetiva, seja para o ente público ou particular, afim de  garantir os direitos dos usuários e caucionar a eficácia dos serviços públicos prestados, ainda que em um patamar não ideal.

Na prestação dos serviços públicos e, em especial, nos contratos de concessão de atividades essenciais na modalidade não concorrencial, nos deparamos com uma situação delicada. Com o domínio econômico exercido pela empresa, ainda que haja a atuação das agências reguladoras, verifica-se, de forma recorrente, os abusos de direito praticados pelas concessionárias. Nessa parcela de empresas que prestam serviços sem a ocorrência de licitação em virtude da inviabilidade prática, uma vez que não haveria outra capaz de suprir a demanda de uma determinada área do País, com a delegação da atividade pelo Estado, termina transferindo-se também, ainda que de forma não legítima, um pouco do seu poder de império, pois a prestação do serviço fica condicionada a uma restrita parcela do capital privado que exerce o controle da atividade em decorrência do monopólio do mercado.

Ante a instauração desse quadro, nas situações em que ocorre abusos de direito contratual por parte das concessionárias, o usuário possui apenas um recurso eficaz para garantir os seus direitos: o de recorrer ao Poder Judiciário. Todavia, o que se dá na prática é apenas um ressarcimento ao usuário pelos danos sofridos, e não uma garantia, de forma preventiva, aos seus direitos, como, por exemplo, o seu direito, e dever da concessionária, de prestar o serviço de forma contínua. Isso porque, da mesma forma que o usuário não pode eximir-se de suas obrigações contratuais, as empresas prestadoras de serviços públicos essenciais não podem, ao seu bel prazer, de forma unilateral e imperiosa, suspender a prestação do serviços que, em tese, são contínuos.      

Ainda que o Poder Concedente possa aplicar penalidades regulamentares e contratuais e intervir na prestação do serviço, como dispõem os incisos II e III da Lei n. 8.987 de 1995, verifica-se ser o direito de regresso o único meio efetivo para "proteção" do usuário. Pois, dificilmente aplicar-se-á para esses casos, por exemplo, o disposto no inciso IV, hipótese de extinção da concessão. Posto que não haveria, se assim o Poder Concedente fizesse, outras empresas capacitadas para fornecerem o mesmo serviço com o mesmo aparato técnico e capacidade de fornecimento na mesma localidade, demonstrando uma limitação do Estado até mesmo quando ao seu próprio poder regulamentar.


8. Considerações finais

O Estado, com a consolidação do Estado Social na Constituição Federal de 1988, passa a intervir nas relações econômicas privadas não mais em caráter de excepcionalidade, e sim como regra, atrelando ao contrato a sua função social e impondo limites à liberdade contratual e à livre iniciativa. O Poder Estatal passa a adotar uma postura de interventor e regulador da atividade econômica, devendo exercer as funções de incentivo, fiscalização e planejamento, como estabelece o artigo 174, caput do Diploma Constitucional.

O deslocamento da execução do serviço do setor público para o privado, como fruto da nova postura regulamentar do Estado, em situações nas quais há apenas uma empresa ou um pequeno grupo empresarial capaz de executar a atividade, termina apenas por deslocar para o particular a incapacidade da suportar toda a demanda de um país. E, em se tratando de um país continental como o Brasil, embora o setor privado, em tese, possua um capital mais robusto para lidar com a demanda, na prática, a falta de empresas concorrentes para a prestação de determinados serviços essenciais, termina por tornar deficitário o serviço prestado, uma vez que a sobrecarga sobre tal grupo empresarial é latente.

Nesse contexto, constata-se a crise do próprio Estado Social, provedor e controlador dos poderes econômicos privados. Posto que, em casos como o aqui analisado, qual seja a  prestação de serviços públicos mediante atividade delegada na moralidade não concorrencial,  o Estado não consegue, ao menos de maneira efetiva, garantir o equilíbrio entre os interesses individuais e os interesses sociais. Não sendo capaz, assim, de dar a proteção necessária aos tidos por vulneráveis.

Paulo Lôbo, ao analisar a crise do estado social, afirma que essa crise é muito mais ideológica que real, pois se dirige à redução do Estado empreendedor ou empresário e das garantias legais do mais vulneráveis, mas mantém o seu poder regulamentar ainda que de forma ineficiente. Paradoxalmente, o Estado regulador fortalece o processo de intervenção jurídica e reduz sua participação direta na atividade econômica e, por conseguinte, aumenta os poderes empresariais privados[20]. Desta feita, verifica-se que, nesses casos de única empresa prestadora do serviço, não há liberdade contratual nem para a administração nem para o usuário, tratando-se de contratos de caráter compulsório não só para o usuário, mas também para o próprio Estado, uma vez que se trata de serviços de uso essencial.


9. Notas

[1] Com o advento do estado social há, uma mudança de foco: a autonomia individual, antes vista como instrumento de limitação do poder do Estado, é substituída pela limitação estatal dos poderes econômicos privados, em favor do equilíbrio entre interesses individuais e sociais e da proteção das partes e de sistemas vulneráveis (como o consumidor e o meio ambiente). Cf.: LÔBO, Paulo.  Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 41.

[2]Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 349.

[3] Cf. HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 169 e 180.

[4] FORTINI, Cristina. Contratos Administrativos: franquia, concessão, permissão e ppp. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.04.

[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p.475.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito... p. 349.

[7]Sobre a temática, vide em: AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Concessão de Serviços Públicos: novas tendências. São Paulo: Quartier Latin, 2012, cap. XII.

[8] TÁCITO, Caio. 1975, p.251, apud CARVALHO, 2012, p.367.

[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito...  p. 186.

[10]Sobre a matéria, Carvalho Filho defende haver uma distorção no sistema clássico de concessões, pois, nos casos em que se admite a concessão para empresa pública, se trataria, em verdade, de contrato celebrado entre duas pessoas estatais, estando, por óbvio, a concessionária diretamente vinculada ao concedente. E, como afirma Carvalho, a atividade da empresa estatal resulta de um processo de delegação legal, a própria lei já definiria o seu papel estatal e a tarefa a ser executada, sendo, assim, desnecessário falar-se em concessão, uma vez que essa deriva de uma delegação negocial de natureza contratual. Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito..., p.375.

[11] LÔBO, Paulo.  Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2012, p.129.

[12] AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Concessão de Serviços Públicos: novas tendências. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 113.

[13] Idem. Ibidem, p. 115.

[14] LÔBO, Paulo.  Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2012, p.139.

[15] É certo que, alguns defentem que a relação em pauta deve ser vista como relação de consumo por boa-fé, crédulos de que o código de defesa do consumidor poderia salvaguardar os interesses do usuário. Mas a maior proteção que alguém pode ostentar não deriva de sua condição de usuário e, sim, de seu posto de cidadão. Como cidadão, protege-se mais e melhor, porque elimina até mesmo o risco de transformar a relação entre usuário e poder público ou entre usuário e pretador privado como uma relação de mero fornecimento de serviço, mediante contraprestação. Isso porque o conceito de serviço, remuneração do fornecedor, o que de resto não existe, nem poderia, como regra, para o serviço público (art.3, parag.2 da Lei n.8.078). A própria Constituição da República indica serviços públicos que não podem ser objeto de cobrança, como ocorre com saúde e educação. Cf.: FORTINI, Cristiana. Contratos Administrativos: franquia, concessão, permissão e ppp. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 84.

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[16] Cf.: AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Concessão de Serviços Públicos: novas tendências. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 161.

[17] Idem. Ibidem.

[18] BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico e a Conceituação do Abuso em seu exercício. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 174.

[19] Ao tratar do controle de concentrações, a Lei de Defesa da Concorrência/Antitruste, Lei n. 12.529/2011,  no artigo 88 determina que o CADE autorizará atos ou contratos que gerarem prejuízo à livre concorrência e domínio de mercado, eliminando a concorrência em parte substancial de mercado relevante quando for uma prática necessária para atingir algum dos objetivos do parágrafo sexto, que sejam: aumentar a produtividade ou a competitividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços ou propiciar a eficiência e desenvolvimento tecnológico e econômico, devendo ser repassado aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes. 

[20] "Apesar de viver o ordenamento jurídico brasileiro sob a conformação constitucional do Estado social, a concepção liberal do contrato ainda é muito enraizada nos hábitos e quefazeres dos juristas nacionais, para o que contribuiu a onda aparentemente vencedora da globalização econômica, fundada principalmente no mercado financeiro mundial livre de qualquer regulação e na corrente ideológica do neoliberalismo, exigentes do encolhimento das garantias legais dos direitos nacionais, máxime no que concerne à proteção dos contratantes vulneráveis, principalmente do trabalhador assalariado, do consumidor e do usuário dos serviços públicos privatizados". LÔBO, Paulo.  Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 47.


10. Referências Bibliográficas

 AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Concessão de Serviços Públicos: novas tendências. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico e a Conceituação do Abuso em seu exercício. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

CARVALHO FILHO, JOSÉ DOS SANTOS. Manual de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

FORTINI, Cristiana. Contratos Administrativos: franquia, concessão, permissão e ppp. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

LÔBO, Paulo.  Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2012.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo sistema das relações contratuais. 5ª  ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: contratos. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

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Sobre o autor
Fernando Henrique Franco de Aquino

Advogado. Pós-Graduando em Direito Contratual pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Bacharel em Direito pela UFPE, com parte do Bacharelado realizado na Universidade de Salamanca, Espanha - USAL.

Informações sobre o texto

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