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Os desafios da administração pública e a necessidade da tutela judicial ao direito fundamental dos índios à demarcação de terras no Médio e Baixo Rio Negro

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4. A TUTELA JUDICIAL NAS DEMARCAÇÕES DE TERRAS INDÍGENAS

Antes de iniciar esse tópico, é importante reconhecer o esforço do MPF para garantir os direitos fundamentais dos povos das florestas, mormente as comunidades do rio Negro. Quando se observa que o órgão federal de assistência aos índios tem sido desidioso no seu mister, as comunidades indígenas encontram refúgio nos átrios do MPF. Merece aplausos o trabalho da instituição ministerial através dos seus agentes públicos. Pessoas sensíveis à causa indigenista e inconformados com a atual política da FUNAI. Compete ao Ministério Público “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”, conforme o inciso V do artigo 129 da CF/1988. Nesse desiderato, os Procuradores da República tem atuado incisivamente para atenuar o sofrimento das aldeias. Os índios não escolheram ser brasileiros e talvez se sintam cada vez mais desintegrados da comunidade brasileira, haja vista o descaso das autoridades relatado anteriormente.

Como instrumento de proteção dos direitos indígenas, o MPF tem-se servido da ação civil pública de acordo com a permissão do artigo 1º, inciso IV da lei federal nº 7.347/1985 (LACP). O conceito de direitos coletivos expresso no inciso II do § 1º do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor amolda-se perfeitamente ao estudo ora feito. Defensor dos direitos sociais e individuais indisponíveis, o MPF busca a tutela específica de condenação da União e da FUNAI para concluírem a demarcação das terras indígenas. Essa obrigação de fazer é o objeto da demanda e encontra base jurídica no artigo 3º da lei das ACP. Cumulativamente pedem a indenização pelos danos morais coletivos que sofrem as comunidades indígenas atingidas.  

A Justiça Federal, em consonância com o clamor do MPF nos casos ora relatados, tem concedido a tutela apropriada. A Advocacia Geral da União (AGU), cumprindo seu dever, alega que esse tipo de provimento quebra a independência dos Poderes, além de solicitar a exclusão da União do polo passivo da lide. Essa tese, entretanto, não tem prosperado, pois a causa de pedir está justamente fundada na omissão do Poder Executivo Federal na condução e conclusão da demarcação das terras. As ações civis públicas são previamente instruídas com o inquérito civil público de competência privativa do Ministério Público decorrente do inciso III do artigo 129 da CF/1988. Durante esse procedimento inquisitorial civil é praxe a solicitação pelo órgão ministerial de documentos e certidões à FUNAI visando a esclarecer os motivos que provocam a demora excessiva nas demarcações. A qualquer pessoa de senso médio, essa ingerência administrativa já seria suficiente para alertar as autoridades competentes sobre a necessidade de conclusão dos procedimentos. Entretanto, a FUNAI restringe-se, na maioria dos casos, a apresentar as justificativas anteriormente citadas. De sorte que, ao final do inquérito civil, o MPF não tem escolha senão ajuizar a ação civil pública. E durante o curso da ação judicial, tanto a UNIÃO quanto a FUNAI continuam reticentes em assumir a sua culpa, sendo o juiz do feito obrigado a prolatar na sentença a desídia do Poder Público, como se verifica no trecho abaixo extraído da ACP nº 6774-30.2013.4.01.3200 citada:

 “Não obstante as considerações expendidas pela União e pela FUNAI, entendo que a tese deve ser rechaçada, porquanto as providências requeridas pelo Ministério Público Federal já poderiam ter sido adotadas, uma vez que foram excedidos todos os prazos estabelecidos no Decreto nº 1.775/1996, para cada estudo a ser realizado e, também, para a manifestação das autoridades competentes, sem qualquer justificativa plausível para essa demora”.  

Outro aspecto que se observa nas sentenças dessa natureza é o flagrante desrespeito ao Princípio da Eficiência do Poder Púbico. Tal preceito de índole constitucional pode ser caracterizado pela necessidade de se obter os melhores resultados com economia de meios e tempo. A Administração Pública deve pautar sua atuação com presteza e correção, mas também observando prazos razoáveis para a conclusão das ações. Nesse sentido tem sido a orientação do Colendo STJ, conforme o seguinte julgado:

“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. FIXAÇÃO DE PRAZO RAZOÁVEL PARA O ENCERRAMENTO DO PROCEDIMENTO DEMARCATÓRIO. POSSIBILIDADE. 6. Hipótese em que a demora excessiva na conclusão do procedimento de demarcação da Terra Indígena Guarani está bem evidenciada, tendo em vista que já se passaram mais de dez anos do início do processo de demarcação, não havendo, no entanto, segundo a documentação existente nos autos, nenhuma perspectiva para o seu encerramento.(Resp nº 1114012/SC, relatora Ministra Denise Arruda, 1ª Turma, julgado em 10/11/2009, DJE 01/12/2009)”.

Em se falando de princípios da Administração Pública, entre os quais cita-se a eficiência,  importante ressaltar que os agentes públicos podem ainda ser alcançados pela ação de improbidade administrativa prevista na lei federal nº 8.429/1992 (LIA). O artigo 11 dessa lei prevê que a violação dos princípios que regem a Administração Pública como conduta típica. Modalidade de responsabilidade subjetiva do agente público, no caso específico das condutas contempladas no artigo analisado, o dolo é essencial para a configuração da imoralidade qualificada. A importância dessa visão está ligada às penas que são impostas nesse tipo de ação, cuja natureza é civil. O foco principal dessa ação não é o ressarcimento ao Erário, objeto primário da ação civil pública (artigo 3º da LACP). Sendo assim, o responsável poderá perder a função pública, ter seus direitos políticos suspensos, pagar multa civil e ficar impossibilitado de contratar com o Poder Público (artigo 12, inciso III da LIA). Essas espécies processuais podem conviver pacificamente em função da indisponibilidade do interesse público, sendo conhecida como ação civil pública por atos de improbidade administrativa. Na doutrina de Carlos Frederico Brito dos Santos (1997, páginas 46 a 50):

“(...) como a própria Constituição Federal denominou genericamente a ação do Ministério Público no âmbito cível como ação civil pública (diferenciando-a da ação penal pública), independentemente na nomenclatura que lhe seja dada (ou não) pelo legislador ordinário, ela será sempre "ação civil pública", sendo absurda qualquer confusão entre gênero e espécie por aqueles que pensam que ACP é tão-somente aquela da Lei n.º 7.347/85, fazendo grande confusão no tocante à legitimidade ativa do Ministério Público, fato que tem causado enormes prejuízos à sociedade, que fica indefesa à sanha de corruptos que, invariavelmente, são os beneficiários de tais equívocos”.

No que tange aos danos morais coletivos, a jurisprudência do STJ aceita pacificamente sua ocorrência sem necessidade de comprovação da dor individual dos integrantes do grupo. E nessa linha de raciocínio têm seguido também as decisões da Justiça Federal. Basta a conduta ilícita de violação de direitos fundamentais da coletividade. A seguir transcreve-se parte do acórdão do REsp nº 1057274, Segunda Turma, relatado pela Ministra Eliana Calmon, DJE em 26/02/2010:

“1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos”.

Por tudo que se apresentou, resta evidente que o órgão federal de assistência indígena enfrenta uma grave crise interna, fruto de restrições orçamentárias e outras questões corporativas. Isso reflete de maneira negativa nos procedimentos demarcatórios. Mesmo entendendo que a demarcação é ato administrativo complexo, dependente de estudos interdisciplinares e decisão de outros órgãos, ainda assim o que se revela é um estacionamento da demanda indígena nas prateleiras da FUNAI. Para agravar o pleito indigenista, as sentenças proferidas contra a União, sujeitam-se a recurso de ofício de acordo com o inciso I do artigo 475 do Código de Processo Civil. E asim a lide vai consumindo o tempo precioso das comunidades aldeãs.

O tempo está contra os índios e a favor dos madeireiros, garimpeiros, pecuaristas, agricultores, comerciantes e outros tantos interessados que as tribos pereçam. O Poder Judiciário está contribuindo para a garantia dos direitos fundamentais dos índios, mas a verdade é que essas demandas sequer deveriam existir, porquanto a existência do órgão nacional para lidar com as questões indígenas seria, em tese, suficiente para promover o procedimento demarcatório. Enquanto isso, nas aldeias, os índios continuam sofrendo toda sorte de violência em sua cultura, costumes, tradições, terras e família. As indenizações pretendidas não restaurarão as comunidades silvícolas, talvez sequer sirvam de prevenção para a mora do Poder Público Federal. Esses valores não saem da remuneração dos gestores públicos, mas da coletividade que paga os tributos devidos à União, exceto se for comprovado o dolo e aplicada a LIA. Esse ciclo vicioso vilipendia constantemente os direitos fundamentais dos índios.

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5. CONCLUSÃO

Após a exposição acima, é possível afirmar que a demora no procedimento demarcatório das terras indígenas do Médio e Baixo Rio Negro está provocando consequências irreparáveis às comunidades indígenas. O contato excessivo com a cultura do “Homem Civilizado” está corroendo as bases da organização social desses povos. Conquanto sejam primitivos, em muitos aspectos revelam-se mais coerentes que o colonizador, mormente quanto às questões ambientais. A lenta atuação da FUNAI é o cerne do descrédito que se implantou nas aldeias. Vivem à espera da conclusão dos trabalhos de campo das equipes de demarcação e não entendem como podem se arrastar por mais de dez anos esses levantamentos. A inexistência do prazo legal para a conclusão dos relatórios de área não podem servir para a conduzi-los “ad aeternum”, pois o Princípio da Razoabilidade é imperativo para todos os órgãos públicos. A derradeira porta que essas comunidades encontraram foi o Ministério Público Federal, que tem conseguido o apoio do Poder Judiciário para declarar medidas coercitivas no sentido de viabilizar a conclusão dos processos administrativos, apesar da batalha dos recursos judiciais entre apelações, agravos e embargos.

Evidente está que as perdas sofridas pelas comunidades indígenas do Médio e Baixo Rio Negro não serão recuperadas com indenizações pecuniárias. A vida dos silvícolas está intrinsicamente relacionada com suas terras e a usurpação do colonizador já atingiu o componente nuclear dessas civilizações, desfiguradas em muitos casos. Os relatos trazidos a essa pesquisa mostram exatamente o cansaço e a hipossuficiência desses povos. Os direitos fundamentais que foram conquistados na Carta Política de 1988 ainda permanecem nos sonhos de muitas tribos.


6. REFERÊNCIAS

DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini, MARIZ DE OLIVEIRA, Waldemar, & WATANABE, Kazuo. A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Editora Max Limonad, 1984.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional Público. Parte Geral. 2ª  edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; IELF, 2005. Pág. 96.

ROCHA, João Carlos Carvalho (coordenador). Ação Civil Pública. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006.

SANTOS, Carlos Frederico Brito dos. O Amplo Conceito da Ação Civil Pública, Revista do Ministério Público do Estado da Bahia, nº 08, 1997.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1998.


Notas

[1] Povos indígenas realizam encontro de espiritualidade. http://www.cimi.org.br. 14/05/2014.

[2] A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento no sentido de que os tratados, quaisquer que fossem seus assuntos, seriam internalizados como lei ordinária. Nesse sentido o seguinte julgado do STF: ADI 1675-MC, Rel. Sepúlveda Pertence, DJ 19/09/03.

[3] Seminário no Médio Rio Negro (AM) reforça debate democrático sobre ordenamento territorial. http://site-antigo.socioambiental.org. 24/11/2009 14:09.

[4] http://al-am.jusbrasil.com.br/noticias/270163/ale-apura-uso-de-drogas-e-prostituicao-entre-indios.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINIANO, Cyro Alexander Azevedo. Os desafios da administração pública e a necessidade da tutela judicial ao direito fundamental dos índios à demarcação de terras no Médio e Baixo Rio Negro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4790, 12 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35513. Acesso em: 25 abr. 2024.

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