"Falsas" memórias e a prova testemunhal

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Considerações sobre a interferência das "falsas" memórias na prova testemunhal

Memória é a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações, define Iván Izquierdo. (2) Logo, a memória é a base de conhecimento do ser humano. É a partir da memória que somos quem somos. Também é a ferramenta essencial à produção da prova testemunhal, pois, para que a testemunha transmita determinada informação, é necessário que possua previamente essa informação.

Ocorre que a nossa memória pessoal e coletiva, às vezes, incorpora fatos irreais. Vamos perdendo, ao longo dos anos, aquilo que não interessa. Mas também vamos incorporando mentiras e variações que geralmente enriquecem as lembranças. (3) Logo, devemos considerar a possibilidade das falsas memórias ao analisarmos uma prova testemunhal.

Gustavo Noronha de Ávila, na obra Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque, menciona que outro fator importante que pode influenciar no testemunho é o tratamento dado ao fato pela mídia. (4) A testemunha pode sentir-se pressionada a apresentar determinadas informações, em decorrência de uma grande repercussão sobre o fato na imprensa. Observamos diversos casos, onde, em decorrência de um delito, inúmeras pessoas saem às ruas em passeatas, muitas vezes televisionadas, para clamar pela punição dos possíveis autores do fato.

Gustavo de Ávila e Gabriel José Gauer apresentam o seguinte entendimento:

Nos processos que tentam (re)construção do fato criminoso pretérito, podem existir artimanhas do cérebro ou informações armazenadas como verdadeiras que, no entanto, não condizem com a realidade. Estas são as chamadas “falsas” memórias, processo que pode ser agravado quando de utilização de técnicas por repetição, exemplificadamente, empregadas de forma notória no âmbito criminal. A valoração e (re)conhecimento da ocorrência de “falsas” memórias também podem atuar de forma precaucional, impedindo ao magistrado que imponha condenações, como corolário dos princípios do in dubio pro reo (a dúvida beneficiará o réu) e estado de inocência (todos são considerados inocentes até o término do processo). (5)

As falsas memórias diferenciam-se da mentira essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção do seu espaço de criação e manipulação. (6) As falsas memórias podem, também, ser implantadas ou induzidas por um terceiro.

Como exemplo de implante de “falsa” memória podemos mencionar um dos casos apresentados por Elizabeth Loftus em artigo denominado Creating false memories, publicado na Scientific American:

Em 1986, Nadean Cool, uma ajudante de enfermagem em Wisconsin, procurou ajuda terapêutica de um psiquiatra para auxiliá-la a superar um evento traumático experimentado pela sua filha. Durante a terapia, o psiquiatra usou de hipnose e outras técnicas sugestivas para trazer à tona recordações do abuso que Cool supostamente teria experimentado. No processo, Cool foi convencida de que ela tinha memórias reprimidas de ter estado em um culto satânico, de comer os bebês, de ser estuprada, de fazer sexo com animais e de ser forçada a assistir o assassinato da sua amiga de oito anos. Ela chegou a acreditar que teve mais de 120 personalidades - crianças, adultos, anjos e até mesmo um pato - tudo isso porque lhe foi dito que ela havia passado por severo abuso sexual e físico na infância. O psiquiatra também executou exorcismos nela, um dos quais durou cinco horas e incluiu o uso de água benta e gritos para Satanás deixar o seu corpo. Quando Cool percebeu finalmente que aquelas falsas recordações foram implantadas, ela processou o psiquiatra por negligência profissional. Depois de cinco semanas de julgamento, o caso dela foi resolvido fora do tribunal por 2,4 milhões de dólares em março de 1997. Nadean Cool não é a única paciente a desenvolver falsas recordações como resultado de uma terapia questionável. Em 1992, no Missouri, um conselheiro de igreja ajudou Beth Rutherford a se lembrar, durante terapia, que o seu pai, um clérigo, a tinha estuprado regularmente dos sete aos catorze anos e que a sua mãe às vezes o ajudava segurando-a. Sob a direção do terapeuta, Rutherford desenvolveu recordações de seu pai engravidando-a duas vezes e forçando-a a abortar o feto ela mesma com um cabide. O pai teve que resignar do posto de clérigo quando as alegações se tornaram públicas. Mais tarde, um exame médico da filha revelou, porém, que ela ainda era virgem aos 22 anos e nunca tinha estado grávida. A filha processou o terapeuta e recebeu um milhão de dólares de indenização em 1996. (7)

Se for possível para um terapeuta implantar “falsas” memórias em seu paciente, também não será possível que a autoridade policial, o magistrado, o Ministério Público e a defesa possam fazer o mesmo com uma testemunha? É evidente que existem mecanismos que podem induzir uma “falsa” memória e comprometer a prova testemunhal. Existe grande diferença em realizar, por exemplo, os três questionamentos seguintes: o que o senhor tem a dizer sobre o fato? O senhor viu se “A” agrediu “B”?  O senhor viu quando “A” espancou “B” utilizando uma pedra, como as outras pessoas que estavam próximas viram?

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Além deste tipo de indução, muitos outros fatores podem implicar na produção de uma “falsa” memória, como o próprio evento, se traumático à testemunha; o uso de álcool em excesso; cocaína ou outras substâncias que possam comprometer a memória; um grande lapso temporal entre o fato e o depoimento etc. Também é de conhecimento público que muitos, ao mentirem, mentem com tanta precisão que, com o passar do tempo, passam a acreditar nas suas mentiras.

Ainda, existem diversos transtornos psíquicos como o déficit de atenção, estresse, depressão, esquizofrenia e outros, que podem influenciar direta ou indiretamente na produção da prova testemunhal. (8)

Outro aspecto relevante é presença da dor na prova testemunhal, que representa a materialização de uma violência contra outro e como esta descrição é realizada por quem a vivencia. (9) A observação de determinado ato violento pode ocasionar um estresse pós-traumático, que poderá interferir no depoimento.  Para evitarmos causar ainda mais sofrimento à testemunha, também precisamos, muitas vezes, optar por técnicas de depoimento especial. (10)

Para evitarmos a utilização de técnicas que induzam a produção de “falsas” memórias é necessário estudarmos mais este assunto e trabalharmos cada vez mais esta questão com profissionais de variadas áreas. É necessário também acrescentarmos informações sobre o tema na formação acadêmica, pois a maior parte dos profissionais do Direito não são preparados para este tipo de situação.

Logo, além da necessidade de profissionais de diferentes áreas de atuação, que devam ser envolvidos na sistemática processual penal, é de suma importância o aumento de estudos sobre a Psicologia nos cursos de Direito, visando a que os futuros operadores conheçam este e outros temas de profunda relevância ao andamento processual penal.

É fundamental, portanto, que os operadores do Direito possuam conhecimentos específicos a cerca da condução de depoimentos e possam empregar técnicas, como a da entrevista cognitiva, que podem melhorar a quantidade e a qualidade das informações extraídas de uma testemunha. (11) Por outro lado, tais práticas devem ser empregadas com máxima cautela, de forma a evitar qualquer tipo de cerceamento de defesa.


(1) LOFTUS, Elizabeth F. Creating false memories. 1997. Disponível em: <https://webfiles.uci.edu/ eloftus/Loftus_ScientificAmerican_Good97.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014.

(2) IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. p.9.

(3) Ibidem, p.15-16.

(4) ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.36.

(5) ÁVILA, Gustavo Noronha de.; GAUER, Gabriel José Chittó. “Falsas” memórias e processo penal: (Re)discutindo o papel da testemunha. 2013. Disponível em: <http://www.uniritter.edu.br/ eventos/sepesq/vi_sepesq/arquivosPDF/27981/2405/com_identificacao/sepesq-com-identificacao. pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014.

(6) LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v.1. 7.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.664.

(7) LOFTUS, Elizabeth F. Creating false memories. 1997. Disponível em: <https://webfiles.uci.edu/ eloftus/Loftus_ScientificAmerican_Good97.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014. [tradução nossa].

(8) ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.163-170.

(9) ÁVILA, ibid., p.301.

(10) ÁVILA, ibid., p.302-304.

(11) ÁVILA, ibid., p. 137.

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Sobre o autor
Ivan Pareta de Oliveira Júnior

Advogado; Presidente da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul - ACRIERGS - www.acriergs.com.br (2019 - 2022); Sócio do Escritório Pareta & Advogados Associados - www.pareta.adv.br; Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Especialista em Direito Penal e Política Criminal: sistema constitucional e direitos humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Especialista em Direito Público pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis; Membro de Comissões da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Estado do Rio Grande do Sul; Pesquisador e autor de livros e artigos nas áreas do Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Segurança Pública.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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