3. EFICÁCIA DAS DECISÕES CONDENATÓRIAS
Nos termos do § 3º do art. 71 da CF, “As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo”. Tal dispositivo constitucional tem importância chave no que se refere à execução das decisões condenatórias proferidas pelos Tribunais de Contas, revelando a intenção do legislador constituinte de atribuir a tais decisões força executiva compatível com a importância conferida aos Tribunais de Contas no panorama institucional brasileiro a partir da Constituição de 1988.
Nada obstante isto, autores há que não privilegiam as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas, justamente em virtude de não reconhecerem a tais Cortes o exercício da jurisdição. Ferraz (1999), por exemplo, afirma que as controvérsias quanto à natureza das decisões condenatórias proferidas pelos Tribunais de Contas travam-se justamente com relação ao alcance da imputação do débito. Para o autor, se o título executivo representado pelo acórdão condenatório fosse de natureza judicial, dúvidas não existiriam acerca da natureza jurisdicional da função a cargo do Tribunal de Contas. No entanto, o art. 584 do CPC[13] não reconhece os acórdãos condenatórios proferidos em julgamentos de contas como títulos executivos judiciais, o que implicaria classificá-los como títulos extrajudiciais, com a mesma força daqueles arrolados no art. 585 do CPC.
O equívoco de tal raciocínio já foi demonstrado neste artigo. Não se pode confundir a natureza judicial de uma decisão – presente apenas quando esta houver sido proferida por órgão do Poder Judiciário – com seu caráter jurisdicional, que revela a aplicação do Direito ao caso concreto, ou seja, o exercício da jurisdição. Portanto, o fato de uma decisão não ser judicial não exclui a possibilidade de tal decisão possuir cunho jurisdicional.
Segundo Costa Júnior (2001), a executoriedade e a formação da coisa julgada são dois dos mais importantes elementos caracterizadores da atividade jurisdicional, mas os vocábulos jurisdição e judicial não são equivalentes. Para o autor, as decisões condenatórias não formam título judicial tão-somente porque as Cortes de Contas não estão compreendidas na estrutura do Poder Judiciário, o que não significa dizer que não possa existir atividade jurisdicional fora do Capítulo III do Título IV da CF, que diz respeito justamente a este Poder.
Certamente imbuído da necessidade de se conferir maior força executiva aos julgamentos de contas, o eminente e saudoso Ministro Fernando Gonçalves proferiu Voto que restou acolhido pelo Plenário do TCU, resultando na Decisão-TCU nº 331/1995 (YAMADA, 2005). Eis excertos do aludido Voto (grifos nossos):
[...] a eficácia das decisões dos Tribunais de Contas nos remete inevitavelmente ao polêmico tema da existência de função jurisdicional, ainda que restrita, atribuída àqueles órgãos, assunto este com o qual muitas vezes nos deparamos. Sem pretender repisar e exaurir matéria tão discutida, trago a este exame a opinião abalizada do ilustre Auditor aposentado do Tribunal de Contas do Distrito Federal, Raimundo de Menezes Vieira, no sentido de que o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, ao dispor que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, consagrou, como regra geral, o monopólio da função jurisdicional, cujas exceções, segundo ele, se consubstanciam nas seguintes hipóteses: a) a competência do Senado Federal de processar e julgar as autoridades enumeradas no art. 52 , inc. I e II da Constituição Federal , nos casos de crime de responsabilidade; b) a competência dos Tribunais de Contas de julgar a "regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores ou aplicação de bens ou fundos públicos [...], seja pelo descumprimento de qualquer outro preceito", caso lhes sejam imputados débito ou multa. Arrimando-se no juízo de doutrinadores de escol, como Seabra Fagundes e Victor Nunes Leal, o precitado jurista conclui: "[...] as decisões dos Tribunais de Contas referentes a imputação de débito ou multa se equiparam, por força de mandamento constitucional, às sentenças condenatórias proferidas por juízo monocrático ou aos acórdãos dos Tribunais Judiciários. São títulos judiciais por assemelhação e servem de base à propositura do processo de execução, independentemente de quaisquer outras formalidades" (Revista de Informação Legislativa, nº 106, págs. 103/108). [...] Se porventura alguma norma ordinária tivesse reconhecido, em relação às sentenças dos órgãos jurisdicionais, a similitude das decisões condenatórias dos Tribunais de Contas, atribuindo-lhes eficácia de título executivo judicial, as matérias passíveis de serem objeto de defesa, por meio de embargos do devedor, seriam muito mais restritas [...] No entanto, o atual art. 585 do CPC, após enumerar de forma exemplificativa os títulos executivos extrajudiciais, no inciso VII, permite a inclusão, naquele rol, de "todos os demais títulos" aos quais a lei atribuir força executiva, sob a forma de disposição expressa. [...] a posição mais consentânea é a que advoga que o art. 584 do mesmo diploma, ao discriminar os diversos títulos judiciais, o fez de maneira taxativa, não permitindo interpretações extensivas e analógicas. No entanto, de acordo com este entendimento, nada obsta que qualquer lei ordinária confira a uma outra sentença, diversa das relacionadas naquele dispositivo, a eficácia de título executivo judicial. [...] Deste modo, face à inexistência de uma norma, de mesma hierarquia, que conceda eficácia de título executivo judicial às decisões condenatórias dos Tribunais de Contas, e à impossibilidade de fazê-lo pela via interpretativa, resta apenas a subsunção de tais decisões na hipótese do inciso VII do art. 585, incluindo-as no rol dos títulos executivos extrajudiciais. Tal situação traz como corolário a desarrazoada inserção daqueles arestos na vala comum das notas promissórias, contratos de hipoteca, duplicatas, etc., e a incompatível faculdade de o executado alegar, em embargos, quaisquer outras matérias já discutidas no processo que deu origem ao aresto embargado, o que obviamente contraria o caráter definitivo das decisões das Cortes de Contas. Certamente isto não pode e nem deve continuar. [...] Ademais, o inegável fato de que já existe, na doutrina e na jurisprudência dos órgãos do Poder Judiciário, o reconhecimento da função jurisdicional especial dos Tribunais de Contas, e o atual sucesso do processo de reforma constitucional, ora em curso no Congresso Nacional, dão-me o alento necessário para crer numa razoável chance de lograrmos a sensibilização dos ilustres parlamentares para as necessárias mudanças no § 3º do art. 71 da Carta Magna, consistentes na atribuição de eficácia de título executivo judicial às decisões deste Tribunal, e na imputação de inelegibilidade e inabilitação para a prática de atos de natureza patrimonial. Isto posto, Voto no sentido de que Tribunal adote a Decisão que ora submeto à deliberação deste Plenário.
A aludida Decisão autorizou a Presidência do TCU a encaminhar ao Congresso Nacional sugestão de emenda constitucional, propondo nova redação ao § 3º do art. 71, nos seguintes termos (grifo nosso):
As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo judicial, ficando o respectivo responsável inelegível e inabilitado para praticar atos de natureza patrimonial, enquanto não comprovar perante aquele órgão o ressarcimento do débito e o pagamento da multa.
A sugestão do Egrégio Plenário do TCU surtiu inicialmente algum efeito na Câmara dos Deputados, haja vista a apresentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 535, de 1997, propondo nova redação ao § 3º do art. 71 nos exatos termos sugeridos pelo Tribunal. Nada obstante isto, a proposta restou arquivada pela Câmara dos Deputados em 31/01/2011, nos termos do art. 105 de seu Regimento Interno[14].
A visão segundo a qual às decisões condenatórias deveria ser atribuída eficácia de título executivo judicial é perfilhada por Martinez (2006). Após destacar que, sob o prisma do pluralismo jurídico, o dogma da exclusividade do Poder Judiciário para a resolução de conflitos deve ser afastado, o autor cita os casos da justiça desportiva – cujas instâncias devem ser esgotadas em ações relativas à disciplina e às competições esportivas antes do acesso ao Judiciário, conforme o art. 217, § 1º, do texto constitucional – e dos juizados arbitrais[15], cuja sentença é considerada, por força de lei, título executivo judicial, conforme previsto no inciso IV do art. 475-N do CPC, incluído pela Lei nº 11.232, de 2005.
A partir de tais exceções, o referido autor entende que os acórdãos condenatórios dos tribunais de contas deveriam ser dotados da qualidade de títulos executivos judiciais, de vez que a jurisdição especial de contas decorre expressamente da CF.
Com a devida vênia aos respeitáveis entendimentos acima, cujo escopo de valorização dos julgados dos Tribunais de Contas revela-se extremamente louvável, entende-se – como já mencionado – que, não pertencendo os Tribunais de Contas ao Poder Judiciário, as decisões por eles proferidas não são judiciais, mas extrajudiciais, o que inobstante não significa equipará-las a todo e qualquer título extrajudicial, sob pena de se transformar todo o esforço procedimental de autêntico cunho jurisdicional das Cortes de Contas em um nada, mormente quando se tem em vista o disposto no art. 745, V, do CPC, segundo o qual, diante dos títulos executivos extrajudiciais, pode o devedor alegar qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir no processo de conhecimento.
4. CONCLUSÃO
Conforme restou demonstrado no decorrer deste artigo, as competências atribuídas constitucionalmente aos Tribunais de Contas de “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos [...] e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público” (art. 71, II, da CF) e de “aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas [...] multa proporcional ao dano causado ao erário” (art. 71, VIII, da CF) correspondem a funções de caráter jurisdicional outorgadas constitucionalmente às Cortes de Contas, que podem resultar na prolação de acórdãos condenatórios com eficácia de título executivo, nos termos do art. 71, § 3º, da CF.
Tais decisões condenatórias são proferidas em processos administrativos de contas, em cujo bojo são amplamente assegurados aos responsáveis o contraditório e a ampla defesa, inclusive mediante a interposição de recursos, muitos dos quais com efeito suspensivo. Em que pese tais decisões serem prolatadas em processos administrativos, os julgamentos de contas proferidos por estes órgãos representam autêntico exercício da jurisdição estatal, pois a mesma Constituição que estabeleceu o princípio da unicidade da jurisdição em favor do Poder Judiciário também pode excepcioná-lo em certas hipóteses, de que é exemplo o exercício da jurisdição constitucional de contas.
De forma consentânea com a competência judicante atribuída às Cortes de Contas pela CF, e considerando o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, a este cabe apreciar as decisões proferidas em processos de contas, mas tão somente no que se refere a seus aspectos extrínsecos, verificando a presença de ilegalidade manifesta ou de irregularidades de caráter formal. Tal é o entendimento do STF, segundo o qual os julgamentos de contas revestem-se de caráter definitivo, não competindo ao Poder Judiciário adentrar o mérito das decisões para modificá-las.
A revisibilidade judicial, portanto, deve-se ater à verificação do respeito ao devido processo legal, o qual – se não observado – deve levar à restituição do caso à Corte de Contas competente, para novo julgamento.
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