Adoção Homoafetiva: Legalidade x Preconceito

20/02/2015 às 10:06
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O artigo aborda a legalidade da adoção homoafetiva sem necessidade de prévia alteração legal. Sugerindo que os empecilhos são de ordem moral, calcados em posições retrógradas, que devem ser rechaçadas em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.

Antes do aprofundamento do tema efetivamente proposto, cabe, desde já, uma pequena e pertinente digressão relativamente aos aspectos legais da adoção em nosso país, partindo-se dos preceitos constitucionais, os quais, como é do conhecimento de todos, são os pressupostos de validade das demais normas de hierarquia inferior, também objeto de estudo deste artigo.  

Uma das mais expressivas inovações em termos legais e comportamentais da Constituição Federal de 1988 foi a adoção do princípio da igualdade de direitos entre os sexos, constante do artigo 5º, caput. Conclui-se, portanto, que o princípio constitucional da igualdade do mencionado artigo, traduz-se em norma de eficácia plena, cuja exigência de inescusável cumprimento, independe de qualquer norma regulamentadora, assegurando a todos, indistintamente, independentemente de raça, cor, sexo, classe social, situação econômica, orientação sexual, convicções políticas e religiosas, igual tratamento perante a lei.

Já o artigo 226, § 4º da Constituição Federal, considera como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, já excluindo a noção de casal dentro do matrimônio, conforme anteriormente estabelecido.

Por sua vez, o artigo 227, “caput”, elenca os deveres da família, da sociedade e do Estado de assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Diante destes princípios, já se pode aferir a legalidade da adoção homoafetiva. Muito embora não haja previsão expressa neste sentido, não há nada que a proíba. De outro bordo, cediço é que, o que a lei não proíbe, ela permite. Princípio este implícito no artigo 5º, incisos II e XXXIX do mesmo diploma legal.

No nosso entender, a aplicação/interpretação destes artigos constitucionais, já seria o bastante para garantir a todos os cidadãos condições absolutamente paritárias em seus direitos, deveres, prerrogativas e obrigações, independentemente de quaisquer diferenças idiossincráticas, conforme acima mencionado. Mas, infelizmente, tal entendimento não é pacífico, suscitando inúmeros questionamentos e discussões, sobretudo, de ordem moral.

Já no que pertine à legislação ordinária, também não se verifica qualquer impedimento, no que toca à possibilidade de casais homossexuais adotarem. Além disso, o artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim dispõe, “in verbis”:

“a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.”

São requisitos objetivos para adoção de uma criança, o disposto no artigo 42 da Lei 8.069:

“Podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente de estado civil.

§ 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando.

§ 2º A adoção por ambos os cônjuges ou concubinos poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado vinte e um anos de idade, comprovada a estabilidade da família.

§ 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando.

§ 4º Os divorciados e os judicialmente separados poderão adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância da sociedade conjugal.

§ 5º A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença”.

Conforme anteriormente demonstrado, o Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a adoção por uma única pessoa, não fazendo qualquer menção ao que se refere à orientação sexual do adotante. Desta feita, fácil concluir que um homossexual, ocultando sua condição, venha a obter a adoção de uma criança, trazendo-a para conviver com quem mantém um vínculo afetivo estável.

Ocorre que neste caso, o adotado, para todos os efeitos legais, só tem reconhecida a condição de filho em relação ao adotante, não podendo desfrutar de qualquer direito com relação àquele que também o reconhece como sendo verdadeiramente seu pai ou sua mãe.  E os efeitos desta cisão são seríssimos. Ocorrendo o rompimento do casal homossexual ou a morte do que não é legalmente o genitor, nenhum benefício o filho-adotado poderá usufruir. Ressalte-se ainda que nem sequer o direito de visita é regulamentado, mesmo que detenha a posse do estado de filho, tenha igual sentimento e desfrute da mesma condição frente a ambos.  Não podendo, ademais, pleitear qualquer direito, nem alimentos nem benefícios de cunho previdenciário ou sucessório.

Há que se ter em mira que o princípio norteador deve ser sempre o do melhor interesse do infante. E não existe motivo legítimo para retirar de uma criança a possibilidade de viver com uma família. Se os parceiros – ainda que do mesmo sexo – vivem uma verdadeira união estável, é legítimo o interesse na adoção, havendo reais vantagens em favor de quem não pode ficar ao desabrigo de direitos.

Oportuno sobrelevar que, ainda que se presuma que o Estatuto da Criança e do Adolescente não tenha cogitado da hipótese de adoção por um casal homossexual, acreditamos piamente na viabilidade de que tal ocorra, independentemente de qualquer alteração legislativa prévia, pelos motivos anteriormente expostos, exatamente nos mesmos moldes do que ocorre em casais heterossexuais ao se habilitarem para adoção.

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Sônia Altoé retrata, através da reprodução tocante da fala de uma criança abrigada, os problemas usualmente enfrentados por elas em tais condições:

“Há um menino no castigo que chora e outro, no fundo da sala, que chora muito. Pergunto a este o que se passa e ele diz: “Um menino me bateu, me deu um chutão aqui. Eles me batem e o tio nem esquenta.” Fala isso várias vezes. “Meu pai não vem mais me ver. Não saí nas férias. Minha mãe não gosta de vir aqui. Não gosto daqui, é muito ruim. Eles (os colegas) me batem.” (ALTOÉ, Sônia. Infâncias Perdidas – O Cotidiano nos internatos-prisão. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de pesquisas sociais, 2008, p. 122.)

Por outro lado, em que pese o reconhecimento da importância dos abrigos que acolhem crianças e adolescentes em situação de abandono, estes locais jamais poderão ser equiparados aos benefícios óbvios da inclusão daqueles em um contexto familiar. Na prática, mencionados abrigos funcionam como mero depósito de abandonados, bem distante de nossos olhos, para que a sociedade e suas instituições não sejam admoestadas pela própria omissão, descaso e indiferença em que incorrem.

Oportuno consignar ainda que a adoção é um ato jurídico no qual uma pessoa cria um vínculo de filiação com outra, sem laços de sangue, que passa a ter o mesmo status de filho consanguíneo. Tal ato enseja uma relação de parentesco civil entre o adotado e o adotante, constituindo um vínculo de parentesco em linha reta de 1° (primeiro) grau. É uma forma legítima de proteção às crianças e aos adolescentes em situação de risco e abandono, considerando-se o melhor interesse e o bem-estar destes. Em nenhum momento, a legislação apontou como requisito a opção sexual do adotante. Pondere-se ainda que o principal aspecto a ser levado em conta em termos de adoção, é o afeto e o amor. Onde tais elementos estiverem presentes, aí haverá uma família.

Obviamente, que a análise prévia por profissionais gabaritados das condições psico-afetivas, entre outros pré-requisitos legais, no que pertine ao casal adotante, deve ser realizada dentro do mesmo rigor em todos os casos, sendo os candidatos homossexuais ou não.

O amor à prole seguramente é um dos mais transformadores nas nossas vidas. O que transcende, em muito, o vínculo meramente biológico-sanguíneo. Não pode, portanto, o Estado, através de um Poder Judiciário, tacanha e retrogrado, obstar que tal nobre inclinação se efetive, sob pena de conferir a este contingente de crianças mais um tipo de violência, e talvez a mais grave delas – a legitimação do desamor, chancelada por nossas autoridades, em nome da intolerância, emocionalmente condicionada, baseada em pensamentos discriminatórios, propagando, assim, a aniquilação, de uma só vez, dos direitos dos casais homossexuais, bem como os das inocentes crianças e adolescentes, que nada fizeram para merecer mais esta rejeição, agora por parte de nossas instituições.

Não podemos mais permitir que seja negada a estas crianças desamparadas a chance de se verem cuidadas como devem, e de serem criadas dentro de um lar onde exista amor, baseados apenas e tão somente em premissas tolas que só nos fizeram e nos fazem caminhar para trás. O obscurantismo medieval de nossos preconceitos e prejulgamentos deve, imperiosamente, ceder lugar à luz. Sejamos mais humanos e deixemos de lado a nossa sanha difamatória, replicando conceitos pré-fabricados que não nos cabem mais.

A crueza de nossos dias clama por igualdade de direitos, compreensão e inclusão imediatas. A totalidade destas crianças abandonadas veio de uma relação heterossexual, o que não lhes serviu de salvo-conduto do desamparo e manifesto descaso. Sem mencionar as ocasiões em que são estas mesmas crianças, vítimas de violência doméstica e toda sorte de maus-tratos por estes pais que as geraram. Não há mais o que esperar. As pessoas se dividem entre boas ou más, e tais características independem, em absoluto, das suas orientações sexuais. Qualquer outro pensamento contrário conterá em seu bojo elementos sectários, discriminatórios e sexistas, os quais só nos segregam por rótulos tolos, que não se sustentam por si sós, tamanha carência de lógica, razão e fundamento que os contemplam e não devem, em hipótese alguma, prosperar em razão do anteriormente esposado.



 

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Sobre o autor
Roberta Canossa

Advogada, militante em São Paulo, especialista em Direito de Família e Direito do Trabalho pela PUC-SP/COGEAE, que, humildemente, oferece o seu olhar sobre alguns temas jurídicos para partilhar com todos vocês, operadores do Direito, ou não.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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