Direito penal da "limpeza": reflexões acerca da teoria das janelas quebradas e do direito penal do inimigo

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23/02/2015 às 14:53
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Assim, aos cidadãos delinqüentes, proteção e julgamento legal; aos inimigos, coação para neutralizar suas atitudes e seu potencial ofensivo e prejudicial. Para JAKOBS, há um dualismo na destinação da lei penal: cabendo o exame da culpabilidade ao delinqüente ocasional e da perigosidade ao delinqüente habitual (inimigo do Estado).

Günther Jakobs (2007, p. 40) explica, em linhas gerais, o tronco de sua tese:

O Direito penal conhece dois pólos ou tendências de suas regulações. Por um lado, o trato com o cidadão, em que se espera até que este exteriorize seu fato para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o trato com o inimigo, que é interceptado prontamente em seu estágio prévio e que se combate por sua perigosidade. [...] Há pessoas que decidiram se afastar, de modo duradouro, do Direito, a exemplo daqueles que pertencem a organizações criminosas e grupos terroristas. Para esses, a punibilidade se adianta um grande trecho, até o âmbito da preparação, e a pena se dirige a assegurar fatos futuros, não a sanção de fatos cometidos.

Günther Jakobs constrói o alicerce de sua teoria sob os pensamentos de grandes filósofos, como Rosseau, Hobbes, Kant, Hegel e Fichte[10], objetivamento agregar valor e força às suas conclusões.

Toda construção deste penalista alemão incorpora elementos estruturais da Filosofia de referidos pensadores, além, é claro, dos estudos sociológicos de Niklas Luhmann[11].

O tema em apreço guarda uma forte ligação com a categoria do bem jurídico-penal, pois JAKOBS considerou o infrator da norma, na verdade, como inimigo do bem jurídico. O ponto de partida do bem jurídico, entendido como função do Direito Penal, é o germe da Teoria. A proteção ao bem jurídico deve ser de tal ordem que deve o Estado preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado o Direito Penal como prima ratio, e não como ultima ratio, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis – de pequena expressão –, por menor que sejam, deixem de ser sancionadas.

Os três pilares que sustentam a Teoria de JAKOBS são: (i) a antecipação da punição do inimigo; (ii) a desproporcionalidade das penas e relativização ou supressão de certas garantias processuais e (iii) a criação de leis severas direcionadas aos indivíduos dessa específica engenharia de controle social (terroristas, traficantes etc.).

Para a doutrina penal, o Direito Penal do Inimigo insere-se no conceito de Direito Penal de terceira velocidade, considerando o processo de expansão do Direito Penal, seguindo as lições de Jésus Maria Silva Sánchez, isto porque representa uma mescla entre o Direito Penal de primeira velocidade – identificado pelo Direito Penal liberal-clássico, marcado pelas penas privativas de liberdade aplicadas com respeito às garantias individuais – e o de segunda velocidade, no qual se relaxa parte da proteção processual, mas, ao mesmo tempo, se prima por penas diversas da privativa de liberdade (restritivas de direito).

Assim resume SÁNCHEZ (2011, p. 163) as duas primeiras velocidades do Direito Penal:

uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal ‘do cárcere’, em que haveriam de ser mantidos rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não se tratar de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcionada a menor intensidade da sanção.

O Direito Penal do Inimigo, como 3ª velocidade, seria uma espécie híbrida, quer dizer, tem o objetivo de aplicar penas privativas de liberdade (1ª velocidade) em conjunto com a diminuição ou supressão das garantias necessárias a esse fim (2ª velocidade).

Os principais estandartes de aludida teoria são:

 (a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); (b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; (c) aumento desproporcional de penas; (d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); (e) endurecimento sem causa da execução penal; (f) exagerada antecipação da tutela penal; (g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais; (h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito (delação premiada, colaboração premiada etc.); (i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); (j) infiltração de agentes policiais; (l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei); (m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.) (SANCHEZ, 2011, p. 170).

Percebe-se, nesse diapasão, que a Teoria, vista sob outro ângulo, nada mais é que um Direito Penal do Autor, preocupado exclusivamente com o indivíduo, com o que ele é, e não com o fato por ele praticado. No Direito Penal do Fato, por outro lado, adotado de forma representativa nos Estados Democráticos de Direito que surgiram na contemporaneidade, o direito repressivo preocupa-se tão somente com os fatos delituosos praticados pelo agente, sendo desimportante, em regra, o seu perfil dentro da estrutura social[12].

Dessa forma, assevera Manuel Cancio Meliá (JAKOBS; MELIÁ, 2007, p. 100-101):

O Direito penal do inimigo jurídico-positivo vulnera, assim se afirma habitualmente na discussão, em diversos pontos o princípio do fato. Na doutrina tradicional, o princípio do fato se entende como aquele princípio genuinamente liberal de acordo com o qual deve ficar excluída a responsabilidade jurídico-penal por meros pensamentos, quer dizer, como rechaço de um Direito penal orientado com base na ‘atitude interna’ do autor.

O desenvolvimento desse modo de enxergar o Direito Penal aflora em sociedades em que a violência é desenfreada, quando a população está à mercê da criminalidade. Esse ambiente é propício para a disseminação de teorias criminológicas de cunho milagroso, funcionando como uma panacéia criminal, voltadas à repressão máxima. Como bem destacou Leonardo Sica (2002, p. 47), “o terreno fértil para o desenvolvimento de um Direito Penal simbólico é uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência urbana”.

Quando se fortalece movimentos repressores violentos, como o é o Direito Penal do Inimigo, corre-se o risco de eleger classes desprivilegiadas e oprimidas como forma de manter a classe dominante no poder. Como revela um passado não muito longínquo, em que minorias foram perseguidas, como os judeus[13] na Segunda Guerra Mundial, pelo regime nazista, a adoção de um regime dirigido aos “inimigos” pode embutir pretensões escusas de permanência no poder e pouco cuidado com a situação geral de conforto/desconforto da população.

Sobre a aparência do modelo de repressão com o regime nazista, disserta SANTOS (2014):

Para legitimar a tese do inimigo no Direito Penal, JAKOBS recorre a comparações bizarras: a reciprocidade no cumprimento de deveres definiria o cidadão, como pessoa de direitos; ao contrário, um tirano como Hitler – tomado como modelo da personalidade do inimigo, aquele autor de criminalidade econômica, sexual, organizada etc. –, não seria pessoa de direitos, mas um inimigo cuja eliminação por assassinato teria sido legítima, diz JAKOBS. Descontada a extravagância da hipótese, existe pouca semelhança entre Hitler e autores de crimes de sonegação fiscal, ou de crimes sexuais, por exemplo. Mas a referência ao ditador não deixa de ser sintomática: o nazismo dividiu a sociedade alemã e européia entre cidadãos (arianos) e inimigos (judeus e comunistas) com mais eficiência do que qualquer Estado autoritário, antes ou depois. Talvez a Psicanálise pudesse descobrir nostalgias políticas reprimidas na proposta desse direito penal do inimigo.

Em realidade, o Direito Penal do Inimigo concentra forte simbolismo, a etiqueta de que o Direito Penal é a panacéia do caos social derivado da violência. A mídia, recorrentemente, coloca o Direito Penal em um pedestal, como salvador da criminalidade, olvidando-se, muitas vezes, das raízes do problema, como a inexistência de condições reais de prosperidade à população – mormente quando se pretende o reforço de interesses políticos na veiculação da notícia.

Discursando sobre o simbolismo do Direito Penal, Nilo Batista e Eugenio Raúl Zaffaroni (2010, p. 631), com erudição, ensinam:

Para a lei penal não se reconhece outra eficácia senão a de tranqüilizar a opinião pública, ou seja, um efeito simbólico, com o qual se desemboca em um Direito Penal de risco simbólico, ou seja, os riscos não se neutralizariam, mas ao induzir as pessoas a acreditarem que eles não existem, abranda-se a ansiedade ou, mais claramente, mente-se, dando lugar a um Direito Penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia.

O efeito simbólico do Direito Penal nos remete à teoria do etiquetamento, também conhecida como “labelling aprouch”, bem defendida por BECKER em seu livro "Outsiders", que é entendida como “desviação”, ou seja, há certo conhecimento, dentro do senso comum, daqueles que se desviam da norma penal, por intermédio de processos de interação altamente seletivos e discriminatórios.

A chance de ser etiquetado, ou seja, "aparecer no claro das estatísticas", não advém da conduta, mas da situação do indivíduo na escala social. Por isso o sistema penal é seletivo, pois funciona segundo os estereótipos do criminoso, os quais são confirmados pelo próprio sistema. Prova dessa “escolha natural” é a chamada “cifra negra”, compreendida como a estatística de crimes que não são levados ao conhecimento do Estado e, por conseqüência, não apurados.

Retornando à crítica ao conceito de “inimigo”: parece-nos que os intitulados "inimigos" não possuem a "especial periculosidade" apregoada pelos defensores da corrente, no sentido de praticarem atos que põe em xeque a existência do Estado. O risco que esses "inimigos" produzem dá-se mais no plano simbólico do que no real.

O pano de fundo relevante acerca da eficácia do Direito Penal do Inimigo, como tratamos anteriormente – quando falávamos da Teoria das Janelas Quebradas – é a sensação de efetiva aplicação da lei penal, quer dizer, se se impera o sentimento de impunidade, há o recrudescimento das estatísticas penais. Cesare Beccaria (2011, p. 87) já dizia, em 1764, que “a certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade [...]”.   No mesmo sentido opina Rogério Greco (2014):

Não se educa a sociedade por intermédio do Direito Penal. O raciocínio do Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade. Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra.

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Não se trata de criar excessivos diplomas legais penais, que elucidam falsamente a ideia de maior punição aos infratores, pois a inflação legislativa atesta a sua própria incompetência, isto é, a lei é ineficaz no seu intento, imperando a impunidade.

O sistema penal precisa funcionar em um círculo virtuoso, com as engrenagens (polícia, Poder Judiciário e sistema carcerário) em movimento síncrono. Não podemos olvidar que a aplicação rígida do Direito penal só é palatável e agradável quando dirigida a estranhos. Como afirma Rogério Greco (2014), “somente concebemos a aplicação de um Direito Penal Máximo quando tal raciocínio não é voltado contra nós mesmos, contra nossa família, contra nossos amigos, enfim, Direito Penal Máximo somente para os ‘outros’, e, se possível, nem o ‘mínimo’ para nós”.

Não se pode, é claro, desmerecer os pontos positivos da Teoria, como o agravamento de medidas destinadas à segurança nacional, haja vista que providências de cunho preventivo, ou mesmo repressor em grau superlativo, podem ser necessárias para garantir a paz social, embora não desconhecemos a difícil convivência entre o Estado Democrático de Direito e posições penais desse jaez. O intolerável, a nosso ver, é a cisão do Direito Penal em (i) do cidadão e (ii) do inimigo, porquanto este sempre será escolhido pelo poder dominante, havendo a possibilidade, portanto, de atrocidades que a história já nos contou.

A filosofia da guerra (da intolerância excessiva, do "vale tudo") conduz a excessos, liquida a razoabilidade e põe em xeque o Estado Democrático. E, portanto, não é boa companheira da racionalidade, capaz de ser digna a estar entre nós.


3 A TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

A intersecção dos lastros epistemológicos da Teoria das Janelas Quebradas e do Direito Penal do Inimigo com os princípios da insignificância e da intervenção mínima é evidente, porém trilham em sentidos diversos, uma vez que inversamente proporcionais – máxima repressão vs. garantismo penal. Iniciemos abordando o significado dado a aludidos princípios, à luz da doutrina, para, em seguida, misturá-los às correntes ideológicas já estudadas em um processo de interpretação crítica.

Preliminarmente, insta salientar o significado de princípio, para exata compreensão do nosso objeto de estudo. O doutrinador Mauricio Antonio Ribeiro Lopes (2000, p.33) aduz um conceito básico:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele; disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Assim, ao incorrer o agente na prática de violação de um princípio, tal comportamento reverbera de forma mais nítida do que a violação de uma norma.

Princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, seu verdadeiro alicerce, de sorte que sua violação é mais grave do que a agressão a uma norma, porquanto implica repúdio a todo um sistema. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais[14].

Leciona Humberto Ávila (2011, p. 71):

Com efeito, os princípios estabelecem um estado ideal de coisas a ser atingido (state o affairs, Idealzustand), em virtude do qual deve o aplicador verificar a adequação do comportamento a ser escolhido ou já escolhido para resguardar tal estado de coisas.

Diante de tal compreensão, o princípio jurídico não descreve qual comportamento é o adequado, ficando a critério do aplicador do Direito verificar, dentro do caso concreto, se a conduta amolda-se ao estado ideal prestigiado. Pode-se mencionar, como descreve Josef Esser, que “o critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão[15].

Alicerçado o conceito de princípio, passemos ao estudo da concepção de “intervenção mínima”. Segundo referido princípio da seara criminal, o direito penal deve ser aplicado como a última razão (“ultima ratio”), quer dizer, atuando somente quando os outros ramos do direito não forem eficazes para a solução dos conflitos decorrentes das relações sociais, como as jurisdições cível e administrativa.

Luiz Regis Prado (2011, p.148) nesses moldes resume a questão:

[...] a intervenção da lei penal só poderá ocorrer quando for absolutamente necessário para sobrevivência da comunidade – como ultima ratio legis -, ficando reduzida a um mínimo imprescindível. E, de preferência, só deverá fazê-lo na medida em que for capaz de ter eficácia.

Rogério Greco (2011, p.75), por sua vez, aduz que o princípio da intervenção mínima deve ser analisado sob duas perspectivas: a) ab initio, interpretando-o de forma abstrata, pela qual servirá como orientação para o legislador quando houver criação ou revogação dos tipos penais; aqui funcionando como norte para a atividade legiferante; b) no caso concreto, com o Direito Penal aplicável apenas se esgotados os demais ramos do direito, próximo, portanto, da atividade jurisdicional.

 A intervenção mínima complementa a legalidade, uma vez que a legislação seca não impede que as sanções penais sejam aplicadas para bens jurídicos cuja relevância não as justifiquem – critério da ultima ratio. Destarte, o postulado da intervenção mínima estabelece limites para o legislador, haja vista que resplandece o feitio do fragmentário e do subsidiário do Direito Penal (critérios de elaboração da norma penal).

Assim, ao aplicar-se desmedidamente o Direito Penal, sua função resta inevitavelmente ineficaz, deixando de proteger os bens jurídicos realmente relevantes. Em decorrência dessa má aplicação, a pena acaba sendo apenas um meio de punição, não atingindo sua real função ressocializadora.

Desse modo, como antes salientado acerca do Direito Penal do Inimigo e sua função simbólica, o excesso de sanção criminal não necessariamente induz uma proteção dos bens jurídicos; ao revés, sentencia o sistema penal a uma função simplesmente simbólica negativa.

Antes que o Direito Penal seja aplicado a qualquer conflito proveniente das relações sociais, devem-se observar outros meios possíveis para a solução do conflito, como as searas civil e/ou administrativa (BITENCOURT, 2008, p.12). Portanto, ao utilizar-se dos meios para a solução do conflito (civil e administrativo), não conseguindo estes solucionar a lide penal, aplicará, assim, o direito penal “quando fracassam as demais maneiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do direito[16]”.

O Direito Penal não se deve ocupar com comportamentos de somenos importância, mesmo que encarados como violadores da boa convivência social, resguardando-se apenas para aqueles que são intoleráveis e lesivos aos bens jurídicos mais importantes.

Nesse descortino, pode-se entender que a aplicação do princípio da intervenção mínima ao caso concreto, no qual o agente causador lesa de forma ínfima o bem jurídico protegido, poderá ser considerado como fato atípico. Isso porque a função precípua do Direito Penal é tutelar bens jurídicos relevantes para a vida em sociedade, sob pena de incorremos em “inflação penal” e seus efeitos deletérios, dentre os quais se destaca a vulgarização da norma penal.

Como resultado da intervenção mínima, há no mesmo campo dogmático o princípio da insignificância[17], que tem o igual sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como um crime; por isso, sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição e substituição da pena ou na sua não aplicação. Para ser utilizado, faz-se necessária a presença de certos requisitos, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada[18].

A aplicação do princípio da insignificância é orientada pelo plexo de valores da intervenção mínima: o Direito Penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

O teórico do princípio da insignificância, Claus Roxin (1972, p.52), delinea os pilares de sua tese, propondo a introdução, no sistema penal, de uma nova forma da determinação do injusto:

[...] o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de exegese, mediante recurso à interpretação restritiva dos delitos penais, tendo em vista a necessidade de se atualizar a função maior da lei penal, valorizando-se adequadamente a sua natureza fragmentária, de forma que se entenda, dentro do âmbito da punibilidade, somente o que seja indispensável para a efetivação do bem jurídico. Por meio desse princípio geral do Direito — princípio da insignificância — permite-se, na maioria dos tipos, excluir, desde logo, danos de pouca importância, havendo de se partir da asserção de que uma conduta somente pode ser proibida com uma pena quando resulta de todo incompatível com os pressupostos de uma vida pacífica, livre e materialmente assegurada. O moderno Direito Penal não se vincula a uma imoralidade da conduta, senão ao seu potencial de dano social.

Os princípios da intervenção mínima e da significância enquadram-se no chamado Direito Penal Mínimo, o qual se contrapõe ao Direito Penal Máximo, supra referido, este albergando o Direito Penal do Inimigo e a Teoria das Janelas Quebradas.

Nesse sentido, congregando ambos, GRECO (2012, p. 24) destaca o Direito Penal do Equilíbrio:

Direito Penal do Equilíbrio é uma posição intermediária entre dois pontos extremos que são: o abolicionismo penal, que busca o fim do Direito Penal e, de outro lado, o movimento de lei e ordem, que objetiva a aplicação de um Direito Penal Máximo; O Direito Penal do Equilíbrio almeja resolver os conflitos sociais com seriedade, protegendo, assim, os bens que julgar mais importantes para o convívio em sociedade. Para a plena aplicação desse Direito, devem ser obedecidos obrigatoriamente alguns princípios básicos. São eles: da intervenção mínima, lesividade, adequação social, limitação das penas, culpabilidade e legalidade.

Sobreleva notar, repise-se, que, em sede de controle social, propostas científicas simplistas, como o Direito Penal do Inimigo e a Teoria das Janelas Quebradas, produzem efeitos políticos perversos: a violência autoritária e repressora das classes dominantes das sociedades contemporâneas costuma existir sob a forma de primários programas repressivos de controle da criminalidade.

Na contemporaneidade, essa ingênua ciência do controle social oscila entre o discurso da tolerância zero, que significa intolerância absoluta, e o discurso do Direito Penal do Inimigo, que significa extermínio de seres humanos, ambos propostos como controle antecipado de hipotéticos crimes futuros: a teoria simplista da relação desordem urbana/criminalidade de rua do discurso de tolerância zero explica a criminalização da pobreza, de infrações de bagatela (pequenos delitos contra o patrimônio, contravenções penais etc.); a teoria simplista dos defeitos de personalidade do discurso do Direito Penal do Inimigo propõe a neutralização/extermínio de futuros e eventuais autores de crimes, ainda que bagatelares, relegando a segundo plano princípios norteadores da ciência criminal, como o da intervenção mínima.

A credulidade do direito penal do inimigo não está em investir na violência do Estado sobre o indivíduo, mas em desconhecer as recentes aquisições científicas sobre crime e controle social nas sociedades atuais. O fato de imputar apenas ao indivíduo o cometimento de um crime implicar sonegar estudos históricos do influxo social sobre a natureza humana.

Importante notar que a teoria de JAKOBS não percebe que a exclusão das massas marginalizadas do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania – condições reais de prosperidade, repitam-se – explica os chamados “distúrbios” individuais, subjetivos, relacionados aos crimes da modernidade:

[...] as ideias complementares de estabilização das expectativas normativas do Direito Penal do cidadão e de eliminação antecipada do Direito Penal do inimigo integram o tradicional discurso ideológico encobridor da função real de garantia das desigualdades sociais realizada pelo Direito Penal nas sociedades modernas, mas com uma diferença essencial: a forma igual do Direito Penal do cidadão garante as desigualdades sociais, a forma desigual do Direito Penal do inimigo amplia as desigualdades sociais garantidas. (grifos do autor) (SANTOS, 2014).

De igual maneira, o equívoco da Teoria das Janelas Quebradas está em associar, de forma ingênua, o crime tão somente à limpeza urbana. Ambientes aprazíveis, segundo os ditames da teoria, afastam o crime (concordamos que contribuem imensamente para a sua redução, mas cremos ser medida paliativa). A desconsideração de fatores sociais de desenvolvimento, acaba por tornar a teoria monocular, enxergando apenas uma face do problema.

Por outro lado, é preciso ter cautela na aplicação dos princípios da intervenção mínima e da insignificância, a fim de que não permaneçam impunes os atos de desordem e criminalidade[19], favorecendo a ocorrência de delitos de maior potencial ofensivo. Não se devem aplicar os princípios aqui mencionados de forma indiscriminada, de forma a criar um cenário “perfeito” para o desenvolvimento de crimes mais graves.

A adoção descuidada do princípio da insignificância, desobediente aos comandos de: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada (exemplo: o furto de algo de baixo valor), de acordo com a sistematização adota pelo Supremo Tribunal Federal a partir do precedente HC 98.152, pode conduzir ao cenário de proteção deficiente.

Não é só pobreza fator determinante à criminalidade, ou seja, à prática de crimes, mas também impunidade - e sua crença - quando se está diante de crimes de pequena gravidade. Com a devida vênia, há que se repudiar a recorrente aplicação do princípio da insignificância para inúmeros fatos típicos porque, desta forma, estimula-se a reiteração criminosa, estabelecendo um equilíbrio entre a repressão e o garantismo.

Portanto, ainda que o delito não tenha gravidade exacerbada, há que se punir – em alguns casos, a depender do caso concreto –, sob pena de estimular crimes mais graves. Em suma, delitos mais graves e condutas criminosas mais gravosas surgem em sociedades em que crimes pequenos ou menores não são punidos.

É certo que a lei penal não deve ser invocada para atuar em hipóteses desprovidas de significação social, razão pela qual os princípios da insignificância e da intervenção mínima surgem para evitar situações dessa natureza, atuando como instrumentos de interpretação restrita do tipo penal.

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Sobre o autor
André Bernardes Dias

Especialista em Direito Público pela PUC-MG. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNESA. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Assessor no TJDFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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