Soluções de big data, quando aplicadas à prevenção de crimes, transformam em realidade aquilo que antes era ficção. O policiamento preditivo (predictive policing) é uma prática de segurança pública utilizada em diversos países, e que consiste, basicamente, na indicação de futuras e prováveis cenas criminosas com base em análise de dados que são obtidos de diversas fontes (até mesmo de redes sociais, suspeita-se).
Nos Estados Unidos, soluções como estas vêm sendo utilizadas desde 2011, quando um algoritmo desenvolvido pelo pesquisador George Mohler, em conjunto com um antropólogo e um criminalista, foi utilizado pela primeira vez pelo Departamento Policial de Santa Cruz, na Califórnia. Os resultados obtidos permitiram a atuação antecipada da polícia em locais apontados pelo algoritmo, que analisou registros de ocorrências, informações sobre suspeitos e forma de execução dos crimes para indicar, com precisão, os locais e horários onde um crime poderia ocorrer. Policiais relataram que em algumas situações chegaram ao local indicado e encontram pessoas roubando carros. Estatística ou adivinhação, fato é que a ferramenta levou a uma redução de até 30% da ocorrência de crimes contra o patrimônio.
O experimento funcionou e atualmente zonas de risco em grandes cidades americanas são mapeadas. Potenciais criminosos chegam a ser previamente abordados pela polícia, ainda que não tenham cometido nenhum crime. A polícia de Chicago tem uma unidade inteira destinada à predição de crimes. Policiais elaboram listas (heat lists) de possíveis infratores, e chegam a bater em suas residências para advertir diretamente: “If you commit any crimes, there will be major consequences. We’re watching you”.(Se você cometer alguma crime, haverá consequências. Nos estamos de olho em você”.
Na Inglaterra, a polícia utiliza o Crush (sigla para Criminal Reduction Utilizing Statistical History), sistema que analisa registros de crimes passados e até informações sobre o clima para fazer as suas previsões.
Recentemente, a prefeitura de São Paulo adquiriu o Detecta, sistema de monitoramento criminal desenvolvido pela Microsoft em parceria com a prefeitura de Nova York. O software deverá analisar os dados obtidos pelo Infocrim e pelo Registro Digital de Ocorrências e funcionar como um buscador, para auxiliar nas investigações. Aparentemente, o sistema não faz previsões, mas deverá orientar o policiamento ostensivo.
Até este ponto, nenhuma inconstitucionalidade gritante. Mas vamos a um exemplo mais perturbador, ainda nos Estados Unidos, e que poderá um dia chegar ao Brasil. Os departamentos de liberdade condicional em mais da metade dos estados americanos usam previsões baseadas em análises de dados para decidir se devem ou não liberar alguém da prisão. Isso significa que os sistemas informatizados de análise estão dando o parecer final sobre a concessão do benefício. Assim, um algoritmo auxilia — ou substitui? — o julgamento dos juízes, e condenados podem ser privados da liberdade em razão de dados e estatísticas.
Aqui podem surgir alguns questionamentos graves. Isso porque o uso da probabilidade impede que fatores futuros atuem na consumação ou não do crime, ao dar por certo o que era apenas uma hipótese. Ao utilizar as análises de big data, o estado poderá passar a punir as pessoas pelas suas propensões, e não por suas ações. Afasta-se a causalidade, renega-se o livre arbítrio e anula-se a possibilidade de que uma pessoa escolha um caminho diferente.
Contudo, o criminoso não é criminoso até cometer o crime. Antes disso, é no máximo um sujeito suscetível ao comportamento delinquente. “Se, por meio do big data, podemos prever quem pode cometer um crime no futuro, talvez não nos contentemos apenas em evitar que o crime aconteça, provavelmente também vamos querer punir o provável perpetrador”, conforme alertam Viktor Mayer-schönberger e Kenneth Cukier, autores do livro Big Data - Como Extrair Volume, Variedade, Velocidade e Valor da Avalanche de Informação Cotidiana.
A ONG Eletronic Frontier Foundation, destinada à defesa das liberdades humanas na era digital, já manifestou sua inquietude. O temor da organização é que a utilização desses sistemas abra a possibilidade de que a polícia possa adentrar na porta de qualquer cidadão a qualquer momento, sem motivo consistente.
A atuação policial prematura pode também ser discriminatória e violar outros preceitos constitucionais, tal como a igualdade e a presunção de inocência. Conhecendo-se a truculência com que a polícia brasileira atua em alguns casos, o risco de lesão a indivíduos ou classes menos favorecidas é preocupante, e a segregação racial ou econômica é iminente.
O uso de soluções de big data na segurança pública é bem vindo. Contudo, alguns problemas sociais surgem em contrapartida a estas soluções, dificuldades que serão enfrentadas principalmente por profissionais do direito. Será elogiável se a abordagem policial for efetivamente preventiva, disponibilizando ao propenso infrator soluções de cunho educacional e social, capazes de oferecer caminhos mais compensadores do que o crime.
A conversa está apenas começando, e nos próximos anos discussões intermináveis sobre a constitucionalidade de softwares serão travadas. Contudo, é preciso aceitar que o futuro chegou. Os precogs, os mutantes criados por Philip K. Dick na obra Minority Report, já existem, mas na forma de algoritmo. Discussões de cunho moral e filosófico envolvendo a repressão estatal e a finalidade das penas terão que ser revistas, diante de uma nova forma de encarar o mundo, trazida pela tecnologia.