A ação de improbidade administrativa e o princípio da insignificância

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Resumo:


  • O princípio da insignificância ou bagatela pode ser aplicado aos atos de improbidade administrativa quando a conduta do agente público é materialmente irrelevante, não justificando a aplicação das severas sanções da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92).

  • Há entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que admitem a aplicação do princípio da insignificância em casos de atos de improbidade, considerando a ausência de dano significativo ao erário ou a mínima ofensividade da conduta.

  • O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no entanto, tem sinalizado que, em regra, o princípio da insignificância não se aplica aos atos de improbidade administrativa, priorizando a proteção da moralidade administrativa como um valor intangível e essencial para o funcionamento do Estado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Investiga-se a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nas ações civis públicas de improbidade administrativa, analisando julgados representativos sobre a matéria.

1. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS.

A Constituição da República inaugura o capítulo que trata da Administração Pública elencando os princípios gerais que têm aplicação nas atividades do Estado. Dispõe que qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, seja atuando diretamente, por meio dos respectivos órgãos, ou indiretamente, por meio das pessoas jurídicas descentralizadas por ele constituídas, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista, dentre outras, deverá obedecer às normas balizadoras do regime jurídico de direito público, especialmente, à legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, da CF).

A moralidade administrativa determina que os agentes do Poder Público atuem em cumprimento de uma pauta ética. A violação do padrão de comportamento esperado dos servidores da Administração dá ensejo à invalidação dessas condutas praticadas com vícios. A moralidade é incorporada pelo código específico do Direito, auxiliando na definição dos limites do que é lícito. A moralidade como norma do regime jurídico administrativo, no entanto, não se confunde com a moral social, com os padrões de conduta majoritariamente aceitos pelos integrantes do corpo político, embora deva em alguma medida refleti-la, estando mais propriamente ligada à honra funcional, ao adequado cumprimento, pelo agente público, de suas atribuições.

A lealdade e a boa-fé objetiva, que se exigem dos agentes da Administração Pública, decorrem do postulado da moralidade administrativa. Ao Poder Público estão interditas posturas maliciosas, praticadas com o intuito de confundir o particular, dificultando-lhe o exercício ou a defesa de direitos, impondo-se uma atuação honesta, sincera e coerente com os posicionamentos e decisões anteriores que produziram legítimas expectativas.

Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Márcio Cammarosano, em monografia de indiscutível valor, sustenta que o princípio da moralidade não é uma remissão à moral comum, mas está reportado aos valores morais albergados nas normas jurídicas. Quanto a nós, também entendendo que não é qualquer ofensa à moral social que se considerará idônea para dizer-se ofensiva ao princípio jurídico da moralidade administrativa, entendemos que este será havido como transgredido quando houver violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado. Significa, portanto, um reforço ao princípio da legalidade, dando-lhe um âmbito mais compreensivo do que normalmente teria.” 1

A moralidade administrativa, como se percebe, não é um bem em si. Ao Direito não interessam as razões íntimas e as questões de consciência dos sujeitos de uma relação. Para serem juridicamente valorados, pensamentos e motivações devem se materializar em ações que concretamente afetem bens jurídicos (lesionando-os ou colocando-os em perigo). A moralidade enquanto norma jurídica, portanto, incide sobre condutas, sobre ações humanas, no sentido de definir se foram válidas e legitimamente produzidas. Cogitationes poenam nemo patitur.

Além de ampliar a abrangência do imperativo da legalidade, fulminando com a invalidade não apenas as condutas que se contraponham, de modo imediato, à literalidade das regras administrativas, mas ainda aquelas que se desviem da finalidade pública e de interesse geral, expressa nos dispositivos legais, a moralidade também se associa ao princípio da impessoalidade, uma vez que a sua violação, nos dizeres de Carvalho Filho, em algumas ocasiões, “residirá no tratamento discriminatório, positivo ou negativo, dispensado ao administrado”2.

Para garantia da moralidade e da lisura no funcionamento da Administração Pública, a Constituição Federal se valeu de diversos mecanismos. Previu o cabimento da ação popular para promover a invalidação de ato lesivo à moralidade administrativa (art. 5º, LXXIII da CF), configurou como crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra a probidade na Administração (art. 85, V da CF) e, o mais importante para os fins deste artigo, dispôs que os atos de improbidades administrativa dos servidores públicos importarão na suspensão dos direitos políticos, na perda da função pública, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível (art. 37, § 4º da CF).

Observe-se, neste ponto, que o ordenamento jurídico brasileiro admite a possibilidade da tríplice responsabilidade do funcionário público, sendo possível que, pela prática de um mesmo fato, seja o agente submetido a punições civis, penais e disciplinares, de modo cumulativo, sem que tal fenômeno configure afronta à regra do non bis in idem. 3

No intuito de regulamentar o referido mandamento constitucional, foi editada a Lei Federal nº 8.492/1992 (Lei Geral de Improbidade Administrativa). O referido diploma prevê os tipos e modalidades de atos de improbidade, bem como as respectivas sanções que acarretam aos agentes públicos e eventuais terceiros neles implicados. Disciplina ainda as medidas adequadas à proteção e reparação do erário, dentre as quais, o arresto, o sequestro e o bloqueio de bens, garantidores de uma posterior ação principal de perdimento de bens proposta pela pessoa de direito público afetada ou pelo Ministério Público.

A Lei Geral de Improbidade Administrativa (LGIA) disciplina, em especial, a ação de improbidade administrativa, na qual se postula o reconhecimento judicial da prática de condutas ímprobas e a correlata aplicação das sanções correspondentes. Nesse sentido, a lei define cinco tópicos essenciais da ação de improbidade: o sujeito ativo da conduta, o sujeito passivo, a tipologia da conduta, as sanções e o procedimento judicial (bem como o procedimento administrativo que vier a antecedê-lo).

A improbidade administrativa não consiste no mero comportamento incompatível com a função pública. É preciso que o ato em questão esteja intimamente ligado às atribuições do agente público. As normas de improbidade não tutelam a honra privada e seus reflexos na função pública, mas sim a honra diretamente vinculada às funções públicas. Improbidade é desonestidade funcional, má-fé do agente público ou pelo menos injustificável negligência no exercício de seu dever. 4

Não é o objetivo deste trabalho esmiuçar as variadas controvérsias suscitadas pela LGIA, já objeto de farta produção doutrinária. A questão a ser especificamente discutida é de aplicação mais recente e ainda bastante incipiente. Trata-se de debater sobre a possibilidade de remissão ao princípio da insignificância nas ações de improbidade administrativa.

Antes mesmo de enfrentarmos a questão essencial do artigo, no entanto, é preciso que se fixem algumas premissas do raciocínio a ser desenvolvido. Em primeiro lugar, devemos considerar se seria possível empregar-se, por analogia, institutos e conceitos típicos da dogmática do direito penal, por ela construídos e reformulados, em séculos de desenvolvimento doutrinário, ao direito administrativo, em especial, ao que define deveres, proibições e sanções, ou seja, o direito administrativo disciplinar.

Ora, diferença ontológica alguma existe entre o ilícito penal e o ilícito administrativo, ambos são apenas formas específicas da antijuridicidade, da contrariedade ao Direito, que é uma só. São manifestações de um mesmo conceito lógico-jurídico de validez universal. Se diferença há entre estas variedades de ilícito, concentram-se, fundamentalmente, no grau diverso das sanções a elas cominadas. Ao ilícito penal se reserva a modalidade mais grave de restrição de direitos imposta pelo Estado, com caráter sancionatório, a pena privativa de liberdade. Como reza o Art. 1º do Decreto-Lei 3.914/1941 (Lei de Introdução ao Código Penal), “considera-se crime a infração penal a que a Lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com a pena de multa”. Não havendo descrição de ameaça de sanção em conformidade com esses termos no preceito secundário da norma em questão, o ilícito será administrativo e não penal. A ilicitude civil, de ordinário, é reparada com o ressarcimento dos danos e o correlato retorno do patrimônio material e moral do ofendido ao estado anterior.

Já Nelson Hungria, em clássica lição, afirmava a ausência de distinção de fundo entre os ilícitos administrativo e penal:

A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência é o dever jurídico. Dizia BENTHAM que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas "sobre um mesmo plano, sobre um só mapa mundi".

Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal [...]

Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre uma e outra, posto que pena, seja de um lado, o mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito à semelhança das penas criminais. 5

Inexistindo distinção essencial, mas antes, pelo contrário, havendo profunda similitude entre os tipos de ilícito, não seria difícil visualizarmos um conjunto mínimo de princípios estruturantes comuns a todas as formas de condutas antinormativas e orientadores da incidência das respectivas sanções. Seria uma espécie de Direito Público Sancionador ou Direito Punitivo Geral, do qual o Direito Penal e o Direito Administrativo Disciplinar seriam subconjuntos. Como conclui Marcelo Harger:

“[...] as limitações à aplicação do poder punitivo estatal são extraídas diretamente do princípio constitucional do Estado de Direito, e isso faz com que as noções de teoria geral do direito que foram aprofundadas pelos estudiosos do direito penal possam ser aplicadas às demais categorias de ilícitos. Garante-se, assim, que a repressão administrativa ou judicial de condutas ilícitas ocorra de modo não arbitrário.6

Ainda que assim não se entenda, hoje não há discussão quanto à larga esfera de aplicação do princípio da proporcionalidade no Direito Administrativo Disciplinar. Qualquer imposição de natureza punitiva deve guardar correspondência com a concreta gravidade da conduta infringente da norma por ela garantida. A não ser assim, as sanções aplicadas, além de se constituírem em injusta violência, malferindo o princípio da dignidade humana (art. 1º, III da CF), perderiam toda a sua utilidade na promoção do regular funcionamento e do aperfeiçoamento da Administração Pública. De fato, para que a finalidade dos mecanismos disciplinares seja alcançada, é preciso que haja uma adequada correspondência entre o mal praticado e a retribuição deste mal. A função de prevenção geral da punição aplicada só se faz eficaz quando a pena imposta é previsível. Os sujeitos destinatários da norma não inserem em seus cálculos, não orientam suas condutas incluindo no seu horizonte de possibilidades a imposição de uma pena diabólica, draconiana, desumana. A quebra desse equilíbrio dosimétrico acarreta, necessariamente, desvio de poder, e os excessos sancionatórios não retornam em benefício da sociedade, porque enfraquecem o sistema de direitos e garantias fundamentais.

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Na lição de Regis Fernandes de Oliveira:

“Não se pode atribuir à administração o descomedimento sancionatório. Nem mesmo a lei pode estipular gravame incompatível com a falta que se pretende punir. Comentando as penas pecuniárias, escreve García de Enterría que “pelo jogo combinado e sistemático de outros princípios do ordenamento não pode admitir-se, pois, uma interpretação simplista dessas leis que facultam multas ilimitadas”. Em outro tópico afirma que “a possibilidade de um poder sancionatório desta gravidade é absolutamente injustificável”.7

A proporcionalidade, embora não tenha recebido expressa previsão constitucional, é princípio amplamente reconhecido. Decorre mesmo do modelo de Estado de Direito, submetido ao império da lei (proporcional) e direcionado à pacificação das relações sociais com justiça e segurança. Com o advento da Lei nº 9.784/1999 (que disciplina o processo administrativo federal), a proporcionalidade mereceu reconhecimento explícito (art. 2º), como norma estruturante de toda atuação administrativa. A exigência de que a imposição de sanções obedeça ao postulado da proporcionalidade pode mesmo ser garantida com o recurso à justiça, como umas das formas de controle da legalidade da atuação administrativa. De fato, embora, à primeira vista, a verificação da relação de harmonia e coerência entre o ilícito e sua sanção traduza um juízo de valor, estando, nesse sentido, na zona de penumbra do mérito administrativo, expressando um juízo discricionário sobre o merecimento de sanção, verifica-se que, na verdade, a razoabilidade consiste em elemento integrativo da extensão de legalidade do poder disciplinar, acessível, portanto, como elemento extrínseco, ao controle do Judiciário. 8

O princípio da proporcionalidade, dessa forma, deve orientar a aplicação das sanções na seara administrativista, inclusive no âmbito da improbidade administrativa, conforme lição pioneira de José Armando da Costa:

Em relação aos delitos disciplinares de improbidade administrativa previstos nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/1992, destaque-se que somente de modo aparente, estão infensos aos temperamentos oriundos do princípio da proporcionalidade ora em exame.

Embora o art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União) articule fria e singelamente que a improbidade administrativa é punível com pena de demissão, destaque-se, contudo que, por força do princípio da proporcionalidade, a improbidade que é punível com a pena disciplinar capital (demissão) é aquela que se revista de certa gravidade.

Aliás, é a própria Carta Maior que, ao reprovar de modo veemente os atos de improbidade administrativa, determina que o legislador ordinário, ao tratar dessa matéria, lance mão do critério da proporcionalidade. Confira-se, então, nesse sentido, as verba legis do diploma político referido: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (CF/1988, art. 37, § 4º).

Vê-se, então, que a própria Constituição manda que o legislador observe a gradação dos atos de improbidade.

Se toda dimensão jurídica, por natureza, já comporta em si escala de gradação, deve-se concluir que a matéria de direito que recebe essa recomendação constitucional deva, com muito mais forte razão, observar tal imposição.9

Ora, o princípio da insignificância tem estreita ligação com o postulado da proporcionalidade/razoabilidade. É possível concebê-lo como uma sua específica manifestação. A noção de bagatela surgiu mesmo como um preceito de política criminal, para aqueles casos em que a eventual pena a ser aplicada traria mais malefícios à sociedade do que o próprio crime. De fato, não havendo relevante afetação do bem jurídico tutelado pela norma e que justifica a existência das penalidades por ela cominadas, as restrições de direitos que se impusessem sobre o autor da conduta prima facie ilícita – porque formalmente subsumida ao tipo, sendo o próprio tipo indício de antijuridicidade – acarretariam mais prejuízo à sociedade que o próprio delito, gerando insegurança jurídica e deslegitimando o ordenamento jurídico, pelo seu desligamento e distanciamento dos fatos e pela injustiça das consequências normativas. O Direito não se sustenta com a sistemática produção de decisões iníquas, ainda que derivem elas da simples aplicação da lei.

Defende-se, tradicionalmente, que o princípio da insignificância só teria reconhecimento no Direito Penal, em virtude de ser uma das manifestações do princípio da intervenção mínima. A intervenção mínima conectar-se-ia indissoluvelmente ao Direito Penal, por ser o castigo penal a forma mais drástica de reação do Estado ao delito. O Direito Penal tem condições de oferecer aos bens jurídicos uma proteção qualificada, diferenciada pela peculiaridade agressiva, traumatizante e estigmatizante da pena privativa de liberdade, a extrema ratio, o mais grave exercício de força da comunidade política sobre o indivíduo autorizado pelo Direito. A intervenção mínima, como postulado de política-criminal, agregaria dois importantes aspectos à forma de atuação específica da norma penal, a fragmentariedade e a subsidiariedade. Sobre ambas as facetas nos ensina Luiz Flávio Gomes que:

A fragmentariedade pretende que o Direito Penal somente tenha intervenção diante dos ataques especialmente graves a bens jurídicos que ostentem grande relevância social. [...] A subsidiariedade do Direito Penal, por seu turno, significa sua posição de ultima ratio frente aos demais sistemas de controle social formal ou informal. Se outros setores do ordenamento jurídico se apresentam como suficientes e, portanto, como mais idôneos para a tutela de um determinado bem jurídico, não se deve utilizar o Direito Penal para atender essa finalidade. [...] De acordo com o princípio da fragmentariedade, o Direito penal só deve se ocupar dos ataques (lesões ou perigo concreto de lesão) mais graves para o bem jurídico, ou seja, dos mais insuportáveis ou intoleráveis. Não deve se preocupar em sancionar todas as condutas lesivas ao bem jurídico, senão as ofensas que contam com especial gravidade. Com isso se chega à conclusão de que a proteção de bens jurídicos, como missão primordial do Direito Penal, só pode ser cumprida de modo seletivo, devendo o legislador descrever taxativa, rígida e determinantemente a forma do ataque intolerável e penalmente relevante, evitando-se que pela interpretação se chegue a resultados expansivos do espectro de incidência do tipo penal. [...] Necessidade, em suma, constitui o núcleo essencial da subsidiariedade do Direito Penal. A reação penal deve ser adequada e necessária para a prevenção da danosidade social. A intervenção penal, desse modo, não pode produzir efeitos mais lesivos que benéficos. A liberdade não pode ser sacrificada desproporcionalmente. Bem jurídico-penal, de outro lado, somente pode ser o que atende os requisitos do merecimento e da necessidade (de tutela). 10

No entanto, essa visão restritiva do âmbito de incidência do princípio da insignificância, que revela certa cautela e o temor de que a sua vulgarização seja acompanhada pela sua deslegitimação, não tem suporte lógico-jurídico. Em verdade, a insignificância ou bagatela tem reconhecimento amplo no ordenamento jurídico, como decorrência do princípio da ofensividade, imperativo ao qual deve se submeter qualquer preceito que contenha previsão de sanção. De fato, se o Direito surge, precisamente, para fazer frente ao arbítrio, ao uso ilegítimo da força, ao poder sem freios, necessário se faz que toda norma jurídica que comine uma pena ao seu descumprimento, exista para cumprir uma finalidade pública, vale dizer, a sua validade depende de estar associada a um bem jurídico de reconhecida importância social. Sem essa vinculação, a sanção, de qualquer natureza, se deslegitima. A lei não é um bem em si. A vigência das normas jurídicas não se autojustifica. O Direito é meio para a proteção e promoção de bens e interesses individuais e comunitários. A insignificância incide, exatamente, quando a conduta, à primeira vista ilícita, de um agente, ou seja, que infringe a letra da lei, em nada afeta o bem jurídico por ela tutelado ou não o afeta de modo relevante, a ponto de justificar os efeitos negativos que invariavelmente acompanham a punição.

Também normas jurídicas administrativo-disciplinares existem para a tutela de bens jurídicos. Em termos genéricos, garantem o adequado funcionamento dos serviços públicos. E também esses bens jurídicos podem ser insignificantemente afetados por uma conduta ilegal, o que equivale a uma sua não afetação. A ofensividade ou lesividade é expressão do preceito geral do direito, segundo o qual não é dado a ninguém lesar a outrem (neminem laedere/alterum non laedere).

É incompatível com o Estado de Direito a concepção do delito, da conduta ilícita, como violação de um dever ou infração de mera desobediência. A infração de uma norma exige a ofensa a um bem jurídico ou ao menos a sua colocação em perigo concreto. Podemos até admitir que as técnicas de tutela administrativa pudessem dar vida a figuras de ilícito menos rigorosamente ligadas ao princípio da necessária lesividade, fundando-se sobre premissas de legalidade mais ágeis. Nunca poderiam, no entanto, simplesmente dispensá-lo, tutelando a simples vigência do ordenamento ou ofensas desprezíveis. É o milenar brocardo de minimis non curat pretor.

Também os atos de improbidade administrativa não dispensam o necessário componente de lesividade, na doutrina de Fabio Medina Osório:

A nota da gravidade do ato agressor, a dimensão da lesão e o elemento subjetivo serão sempre avaliados. [...] Para a reprovação de uma conduta, interessa não só a vontade na ação, mas também seus efeitos. As consequências são consideradas, e muito, no campo da reprovabilidade da conduta ilícita. Deve-se ter em conta a finalidade protetiva da norma, assim como a vontade do autor. Já o dissemos, os fundamentos ético-normativos da imputação residem não só nas atuações intencionais ou negligentes, mas também nos tipos de resultados produzidos. 11

Como derradeiro argumento para a incidência do princípio da insignificância aos atos de improbidade administrativa, acrescente-se que a natureza das sanções cominadas a esses atos, embora não possa ser considerada precisamente como de tipo penal é algo mais que uma simples punição civil. É uma sanção política, o que justifica a especial cautela que deve presidir a sua aplicação.

Há mesmo quem considere que os tipos de improbidade seriam verdadeiros tipos penais. Foi esse o entendimento do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem:

[...] inaceitável é (...) a concepção que tenta vislumbrar as ações de improbidade como um simples mecanismo de responsabilização civil. De fato, não é correto tomar as sanções por improbidade como sanções de índole meramente civil. Ao contrário, as sanções de suspensão de direitos políticos e de perda da função pública demonstram, de modo inequívoco, que as ações de improbidade possuem, sobretudo, natureza penal. Não é difícil perceber a gravidade de tais sanções e a sua implicação na esfera de liberdade daqueles agentes políticos. No âmbito da ação de improbidade, em verdade, verifica-se que os efeitos da condenação podem superar aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, podendo conter, também, efeitos mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal. 12

De fato, sanções como a perda da função pública, a suspensão de direitos políticos e a interdição de contratação com a Administração Pública têm forte similitude com a sanção penal. O seu cunho retributivo, aflitivo, preventivo e não meramente ressarcitório, afasta a sua consideração como simples penas civis. 13

Para que seja possível a aplicação do princípio da insignificância, é preciso que a noção de tipo formal, material e subjetivo se aplique, ainda que não com a mesma rigidez analítica encontrada na dogmática penal, aos ilícitos administrativos. A insignificância afastaria a tipicidade material de condutas subsimíveis à letra da lei, mas que não atentariam contra o bem existencial por ela protegido. Não restando configurada a tipicidade, não seria mesmo necessário avançar sobre os juízos de antijuridicidade e culpabilidade.

Embora, tradicionalmente, na seara administrativo-disciplinar tenha predominado o princípio da atipicidade segundo o qual o ilícito prescindiria de “descrição típica legal, podendo ser caracterizado através de preceitos fluidos, os quais dão margem discricionária à autoridade julgadora, para que esta possa entender violado o preceito primário (tipo), independentemente de 'perfeita subsunção'” 14, hoje predomina o entendimento de que a noção de conduta típica pertence à teoria geral das sanções, assumindo importância nos diversos ramos do Direito.

Como sintetiza Fabio Osório Medina:

O processo de adequação típica não é fenômeno privativo do direito penal, conquista histórica da humanidade. Trata-se de exigência que se estende para além dos domínios penais, perpassando todo o campo punitivo, inclusive o direito administrativo sancionador, por força do devido processo legal e da legalidade que embasam o Estado Democrático de Direito. Em especial, os atos ímprobos demandam esse requisito estrutural, eis que se submetem ao regime jurídico do direito administrativo sancionador. Um ato ímprobo é, por definição, típico. O tipo expressa o modelo de conduta proibida [...] Não se pode dissociar o ato ímprobo do processo de adequação típica e do reconhecimento da culpabilidade constitucional, aquela da qual dolo e culpa derivam diretamente. A responsabilidade subjetiva, no bojo do tipo proibitivo, é inerente à improbidade administrativa, sendo exigíveis o dolo ou a culpa grave [...] Isto se dá, como já dissemos à exaustão, por força dos textos constitucionais que consagram responsabilidades subjetivas dos agentes públicos em geral, nas ações regressivas, e que contemplam o devido processo legal, a proporcionalidade, a legalidade e a interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos no desempenho de suas funções sancionatórias. 15

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Sobre o autor
Marcel Fortes de Oliveira Portela

Bacharel em Direito pela FD/UnB. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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