2. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGINIFICÂNCIA AOS ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
Apesar de contar com algum suporte doutrinário, a tese da insignificância de certos atos de improbidade encontra escassa repercussão no âmbito jurisprudencial. A seguir, apresentaremos alguns julgados em que foi reconhecida e aplicada.
Processual civil e direito público sancionador. Ação de responsabilidade por improbidade administrativa. Conduta destituída de significância e de dolo.
Se a insignificância material do ato o destitui de aptidão para atingir os bens jurídicos tutelados pela norma dita violada, e as circunstâncias em que foi praticado convergem para a exclusão de conduta dolosa, tem-se por descaracterizada improbidade administrativa.
Hipótese de rejeição da ação.
(TJRS, 22ª Câmara Cível, Apelação em Ação de Improbidade Administrativa nº 70006239339, Rel. Mara Larsen Chechi, Comarca De Gravataí, DJ 30.09.2003).
No referido precedente, se atribuiu ao réu a prática, em tese, da conduta tipificada nos artigos 9º, caput, e inc. IV, e 11, caput, da Lei nº 8.429/9216, porque, em 2000, teria se utilizado, em proveito próprio, de material e serviços da procuradoria do município, para patrocínio de sua defesa na investigação eleitoral que tramitou na 173ª zona eleitoral, sob nº 88/00, instaurada por representação do Ministério Público estadual. A conduta em questão teria consistido no emprego de 05 (cinco) folhas de propriedade do Município de Gravataí, no valor individual de cinco centavos e na determinação de que a então Procuradora-Geral do Município praticasse dois singelos atos processuais de prestação de informações.
O órgão julgador entendeu que o ajuizamento da ação civil em questão feriria o princípio da razoabilidade, uma vez que a prática de atos de nenhuma transcendência não deveria ensejar a incidência de sanções tão severas. Cientes da fraqueza da tese da insignificância adotada isoladamente como razão de decidir, os desembargadores fizeram questão de destacar, no entanto, que as circunstâncias em que os atos foram praticados afastariam o dolo da conduta, levando-se em conta justamente o equívoco que existiu no encaminhamento do mandado de intimação por parte do cartório eleitoral ao Município e não ao prefeito, pessoa física, e considerando-se ainda o exíguo prazo para apresentar resposta, de apenas quarenta e oito horas.
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE. USO DE PAPEL TIMBRADO. INSIGNIFICÂNCIA DO FATO MÍNIMO.
1. A ação civil pública para coibir atos de improbidade administrativa não pode ser amesquinhada e utilizada para reprimir o uso de quatorze folhas de papel timbrado da Câmara de Vereadores em defesa prévia, assinada por Assessor Jurídico do Legislativo em outra ação da mesma natureza. Princípio da insignificância dos fatos mínimos.
2. APELAÇÃO DESPROVIDA.
(TJRS, 4ª Câmara Cível, Apelação na Ação de Improbidade Administrativa nº 70011242963, Rel. Araken de Assis, Comarca de Novo Hamburgo, DJ 25.05.2005).
Nesse precedente, muito semelhante ao anterior, o Ministério Público estadual postulou o reconhecimento da prática de atos de improbidade administrativa por parte de Vereador Presidente da Câmara Municipal de Novo Hamburgo, consistentes na utilização, para defesa pessoal, de advogado da respectiva Câmara, pago pelos contribuintes, capitulando a sua conduta nos incs. IV e XII do art. 9º da Lei 8.429/9217. Os julgadores entenderam que seria muito forçado divisar no emprego de quatorze folhas de papel de propriedade do Município e na prática de singelos atos de informação pelo assessor legislativo da Casa Legislativa o “uso da máquina pública” a justificar a punição na seara da improbidade.
Muito mais se teria gastado provocando-se a Jurisdição para punir o fato insignificante do que o dano ao erário em questão. Também aqui, entretanto, a Câmara Cível, para que não houvesse possibilidade de questionamento da decisão, frisou que, ainda que não se aceitasse a tese da bagatela, as circunstâncias do caso afastavam o dolo da conduta, elemento imprescindível do tipo de improbidade, máxime porque a ação em que atuou o assessor jurídico da Câmara, por ordem do seu Presidente, teria sido dirigida, ainda que erroneamente, à própria Câmara Municipal de Novo Hamburgo e não ao seu Presidente, pessoa física, o que tornava o seu proceder compreensível nas circunstâncias e excluía a má-fé.
Agravo de instrumento. Direito público não especificado. Ação civil pública. Ato de improbidade administrativa. Escolha de placa de automóvel. Aplicação por analogia do princípio da insignificância (bagatela).
Caso concreto em que a ação deve ser extinta sem resolução de mérito, de plano, por falta de interesse de agir, por ser aplicável, por analogia, o princípio da insignificância ao ato dito ímprobo (escolha de número de placa de automóvel, no valor de R$ 169,94), sendo que tal valor não foi arcado pelo Município, logo inexistindo prejuízo ao erário. Ressaltando que, posteriormente, houve alteração da placa.
Quando há incidência do princípio da insignificância, resta afastada a ocorrência de crime ou contravenção, razão pela qual na hipótese afasto a ocorrência de ato de improbidade administrativa. A circunstância em tela é excepcional, por ser ínfimo o valor do bem supostamente ofendido, sendo mínima a reprovabilidade do ato de improbidade.
Segundo o princípio da insignificância, sobre algumas condutas, embora típicas, não deve incidir o direito penal, por não atingirem patrimônio considerável, o que é perfeitamente aplicável ao caso em tela, tendo em vista o valor do possível prejuízo com a escolha do número da placa de automóvel é irrisório.
Não é proporcional ou razoável movimentar todo o aparato judicial com intuito de punir conduta que não gerou prejuízo ao patrimônio público.
Agravo de instrumento provido e agravo regimental julgado prejudicado.
(TJRS, 1ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento na Ação de Improbidade de nº 70026712927, Relator Jorge Maraschin dos Santos, Comarca de Cerro Largo, DJ 10.12.2008).
O ato que o Ministério Público estadual pretendeu que fosse considerado ímprobo, neste caso, foi a escolha ou a reserva pelo Prefeito do Município de Cerro Largo da placa de um automóvel de propriedade da Prefeitura, de maneira que contivesse o número da sigla e da coligação à qual pertencia. O valor da placa, no entanto, não foi arcado pelo Município, mas pelo próprio edil.
A Câmara Cível entendeu que deveria aplicar analogicamente a tese da insignificância, em razão de não ter havido prejuízo algum para a Administração Pública, sendo ínfima a reprovabilidade da conduta em questão, não devendo o aparato judiciário ser movimentado para decidir questões ínfimas, ridículas, de nenhuma consequência. O Tribunal entendia que se configurava uma situação de falta de interesse de agir por parte da autoridade ministerial, devendo a ação ser extinta por inexistência de ato de improbidade nos termos do art. 17, § 8º da Lei 8.492/199218.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DANO IRRELEVANTE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
A prosaica importância de oito reais e quarenta e sete centavos que ensejou toda a movimentação do aparato judiciário, desde o inquérito civil até a propositura da ação civil pública, culminando em desproporcional sanção, poderia ensejar, quando muito, multa do mesmo porte, também por isso irrelevante.
O princípio da insignificância, cunhado pelos penalistas, tem como atípicas ações ou omissões que de modo ínfimo afetem o bem jurídico tutelado. Na verdade, tanto na esfera penal quanto se tratando de ato ímprobo, a incidência indiscriminada da norma, sem que tenha o julgador a noção da proporcionalidade e da razoabilidade, importa materializar a opressão e a injustiça.
Por isso, condutas que do ponto de vista formal se amoldam ao tipo não devem ensejar punição, quando de nenhuma relevância material. O princípio da insignificância dá solução a situações de iniquidade na medida em que “descriminaliza” condutas que embora formalmente típicas, não atingem o bem jurídico protegido ou o atingem de modo irrelevante. Apelo provido.
(TJ/RS, 21ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70012886412, Relator: Genaro José Baroni Borges, Comarca de Vacaria, DJ 08/02/2006).
Neste último julgado, o Ministério Público gaúcho moveu ação de improbidade contra o Chefe de Gabinete da Prefeitura de Vacaria, o qual empregou veículo de propriedade do Município, bem como a força de trabalho de três Guardas Municipais, para transportar móveis (mesa, cadeiras, cristaleira e algumas caixas com louças etc.), de sua propriedade e retirados de sua residência, para doação. Ação foi julgada procedente em primeira instância e lhe foi aplicada a sanção isolada de multa civil, visto que já havia sido promovido o ressarcimento dos gastos apurados em processo administrativo movido pela Prefeitura.
Cabe destacarmos enxerto da decisão que contém a síntese da fundamentação empregada pelo relator do acórdão:
Custo acreditar que a prosaica importância de oito reais e quarenta e sete centavos, risível mesmo, tenha ensejado toda a movimentação do aparato judiciário, desde o inquérito civil até a propositura da ação civil pública, tanto mais quando culmina em desproporcional sanção. Quando muito poderia ensejar multa do mesmo porte, também por isso irrelevante. Certo é que a ação civil pública não pode ser apequenada, diminuída, amesquinhada. Na verdade mais se gastou com o processo do que com o “dano” ao erário.
Vem a pelo, por isso, o princípio da insignificância cunhado pelos penalistas, que têm como atípicas ações ou omissões que de modo ínfimo afetem o bem jurídico tutelado. Na verdade, tanto na esfera penal quanto tratando-se de ato ímprobo, a incidência indiscriminada da norma, sem que tenha o julgador a noção da proporcionalidade e da razoabilidade, importa materializar a opressão e a injustiça.
Por isso condutas que do ponto de vista formal se amoldam ao tipo não devem ensejar punição, quando de nenhuma relevância material. O princípio da insignificância, portanto, dá solução a situações de iniquidade na medida em que “descriminaliza” condutas que embora formalmente típicas, não atingem o bem jurídico protegido ou o atingem de modo irrelevante, como no caso, tanto mais que de pronto ressarcido o apontado dano ao erário
(TJ/RS, 21ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70012886412, Relator: Genaro José Baroni Borges, Comarca de Vacaria, DJ 08/02/2006).
O referido julgado foi revertido no Superior Tribunal de Justiça, havendo este fixado o entendimento predominante, desde então, na Justiça dos Estados e da União, mesmo no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde podem ser encontrados alguns julgamentos em sentido contrário, sobre a aplicação do princípio da insignificância nas ações de improbidade. Segue a ementa do voto, longa, porém instrutiva:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. MERA IRREGULARIDADE ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DISTINÇÃO ENTRE JUÍZO DE IMPROBIDADE DA CONDUTA E JUÍZO DE DOSIMETRIA DA SANÇÃO.
1. Hipótese em que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou Ação Civil Pública contra o Chefe de Gabinete do Município de Vacaria/RS, por ter utilizado veículo de propriedade municipal e força de trabalho de três membros da Guarda Municipal para transportar utensílios e bens particulares.
2. Não se deve trivializar a Lei da Improbidade Administrativa, seja porque a severidade das punições nela previstas recomenda cautela e equilíbrio na sua aplicação, seja porque os remédios jurídicos para as desconformidades entre o ideal e o real da Administração brasileira não se resumem às sanções impostas ao administrador, tanto mais quando nosso ordenamento atribui ao juiz, pela ferramenta da Ação Civil Pública, amplos e genéricos poderes de editar provimentos mandamentais de regularização do funcionamento das atividades do Estado.
3. A implementação judicial da Lei da Improbidade Administrativa segue uma espécie de silogismo – concretizado em dois momentos, distintos e consecutivos, da sentença ou acórdão – que deságua no dispositivo final de condenação: o juízo de improbidade da conduta (= premissa maior) e o juízo de dosimetria da sanção (= premissa menor).
4. Para que o defeito de uma conduta seja considerado mera irregularidade administrativa, exige-se valoração nos planos quantitativo e qualitativo, com atenção especial para os bens jurídicos tutelados pela Constituição, pela Lei da Improbidade Administrativa, pela Lei das Licitações, pela Lei da Responsabilidade Fiscal e por outras normas aplicáveis à espécie. Trata-se de exame que deve ser minucioso, sob pena de transmudar-se a irregularidade administrativa banal ou trivial, noção que legitimamente suaviza a severidade da Lei da Improbidade Administrativa, em senha para a impunidade, business as usual.
5. Nem toda irregularidade administrativa caracteriza improbidade, nem se confunde o administrador inábil com o administrador ímprobo. Contudo, se o juiz, mesmo que implicitamente, declara ou insinua ser ímproba a conduta do agente, ou reconhece violação aos bens e valores protegidos pela Lei da Improbidade Administrativa (= juízo de improbidade da conduta), já não lhe é facultado – sob o influxo do princípio da insignificância, mormente se por "insignificância" se entender somente o impacto monetário direto da conduta nos cofres públicos – evitar o juízo de dosimetria da sanção, pois seria o mesmo que, por inteiro, excluir (e não apenas dosar) as penas legalmente previstas.
6. Iniquidade é tanto punir como improbidade, quando desnecessário (por atipicidade, p. ex.) ou além do necessário (= iniquidade individual), como absolver comportamento social e legalmente reprovado (= iniquidade coletiva), incompatível com o marco constitucional e a legislação que consagram e garantem os princípios estruturantes da boa administração.
7. O juiz, na medida da reprimenda (= juízo de dosimetria da sanção), deve levar em conta a gravidade, ou não, da conduta do agente, sob o manto dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que têm necessária e ampla incidência no campo da Lei da Improbidade Administrativa.
8. Como o seu próprio nomen iuris indica, a Lei 8.429/92 tem na moralidade administrativa o bem jurídico protegido por excelência, valor abstrato e intangível, nem sempre reduzido ou reduzível à moeda corrente.
9. A conduta ímproba não é apenas aquela que causa dano financeiro ao Erário. Se assim fosse, a Lei da Improbidade Administrativa se resumiria ao art. 10, emparedados e esvaziados de sentido, por essa ótica, os arts. 9º e 11. Logo, sobretudo no campo dos princípios administrativos, não há como aplicar a lei com calculadora na mão, tudo expressando, ou querendo expressar, na forma de reais e centavos.
10. A insatisfação dos eminentes julgadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com o resultado do juízo de dosimetria da sanção, efetuado pela sentença, levou-os, em momento inoportuno (isto é, após eles mesmos reconhecerem implicitamente a improbidade), a invalidar ou tornar sem efeito o próprio juízo de improbidade da conduta, um equívoco nos planos técnico, lógico e jurídico.
11. A Quinta Turma do STJ, em relação a crime de responsabilidade, já se pronunciou no sentido de que “deve ser afastada a aplicação do princípio da insignificância, não obstante a pequena quantia desviada, diante da própria condição de Prefeito do réu, de quem se exige um comportamento adequado, isto é, dentro do que a sociedade considera correto, do ponto de vista ético e moral.” (REsp 769317/AL, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 27/3/2006). Ora, se é assim no campo penal, com maior razão no universo da Lei de Improbidade Administrativa, que tem caráter civil.
12. Recurso Especial provido, somente para restabelecer a multa civil de R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais), afastadas as sanções de suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público, pretendidas originalmente, pelo Ministério Público.
(REsp 892.818/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/11/2008, DJe 10/02/2010).
O referido precedente é muito mal compreendido. É preciso observar que na questão concreta submetida ao Tribunal não se decidiu pela absoluta impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos atos de improbidade administrativa. Como expressamente admitiu o relator do acórdão, a questão posta no recurso não tratava da possibilidade, em tese, da aplicação do princípio da insignificância ao Direito da Improbidade Administrativa. O ponto especificamente controvertido foi se o julgador, uma vez alcançado o entendimento, ainda que implicitamente, de que determinado ato configuraria uma conduta ímproba (juízo de improbidade), poderia afastar toda e qualquer sanção com fundamento no princípio da insignificância e na proporcionalidade/razoabilidade (juízo de dosimetria).
A resposta do Superior Tribunal de Justiça foi negativa. Se há juízo de improbidade, impõe-se a aplicação das sanções da Lei, ainda que harmonizadas ao desvalor da conduta e/ou do resultado. O que não é o mesmo que concluir, para todos os casos, que a ausência de lesividade da conduta nunca poderia desconstituir a improbidade prima facie do ato, atribuindo-lhe a condição de mera irregularidade administrativa. Os Ministros do Superior Tribunal de Justiça, em verdade apenas corrigiram o que entenderam, na sua interpretação da decisão da instância ordinária, como uma inconsistência lógica fundamental na motivação do julgado.
Fica claro, no entanto, haver o Superior Tribunal de Justiça sinalizado que, em regra, não haveria incidência do princípio da insignificância nos atos de improbidade administrativa, pela mesma razão que, de ordinário, ele não deve ser aplicado em casos de crimes contra a Administração Pública. Tal entendimento assume a premissa da indisponibilidade do interesse público e da inegociável obrigatoriedade de os agentes públicos manterem, a todo o momento, uma conduta proba, em obediência ao princípio da moralidade, o qual não admitiria exclusões ou gradações.
O entendimento do Tribunal, baseado em um juízo normativo e valorativo e não na constatação de um fato, é de que não haveria condutas que ofendessem “só um pouco” a moralidade. Uma conduta seria proba ou imoral. Por sua função estruturante no ordenamento jurídico brasileiro, a moralidade administrativa não admitiria relativização. Não existiria meia probidade, quase probidade ou semiprobidade. Tertium non datur. 19
Na síntese do relator do acórdão, Ministro Herman Benjamin:
Como já referimos, considerado em si mesmo e no contexto da teia do ordenamento brasileiro, o bem jurídico protegido pela Lei 8.429/92 – a moralidade dos atos da Administração Pública – não pode ser relativizado, pois ocupa o patamar de sobrebem ou hiperbem, representando para a integridade e viabilidade do Estado o que a vida e a liberdade simbolizam para a existência das pessoas naturais. Numa palavra, mostra-se tecnicamente ilógico ou juridicamente bizarro que se pretenda seja uma conduta imoral, em grau capaz de disparar a Lei da Improbidade Administrativa, e, ao mesmo tempo, irrelevante perante o Direito. O fato imoral, sobretudo o de índole administrativa, essencial e inevitavelmente de impacto coletivo, é reprovável e, como tal, deve ser enfrentado pelo aplicador do sistema.
(REsp 892.818/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/11/2008, DJe 10/02/2010)
Ora, isso equivale a dizer que qualquer desvio de conduta intencional ou gravemente negligente, qualquer descumprimento voluntário da finalidade dos poderes e das atribuições conferidos ao agente público implicaria numa agressão ao princípio da moralidade e, portanto, em um ato de improbidade, devendo a proporcionalidade ter incidência apenas no juízo de dosimetria da sanção a ser aplicada à conduta especificamente considerada.
Ousamos discordar desse entendimento. Não é necessário fazermos uma incursão pelos campos da Ética e da Teologia para confirmarmos que o conceito de moralidade/imoralidade é perfeitamente passível de gradações em abstrato e em concreto20. Essa compreensão é intuitiva. É perfeitamente possível visualizarmos, embora encontrar um consenso nessas questões seja efetivamente difícil, que distintas condutas ofendem o dever de moralidade em níveis distintos. Afirmar-se que não haveria uma imoralidade insignificante para fins jurídicos, devendo esse tipo de consideração ser relegado ao juízo de dosimetria da pena, é uma opção de política criminal, ou mais genericamente, de política de controle social e não um imperativo lógico-jurídico. Essa opção é prudente e se justifica em grande medida pelo histórico de desmandos na Administração brasileira. Não pode, entretanto, ser tornado absoluto.
A questão é saber até que ponto um comportamento contrário à moral administrativa é também lesivo a um bem jurídico fundamental. Porque afirmar que ele sempre o será é questão de fé e não um juízo concreto. Atos que acarretem uma lesão ínfima ao bem jurídico tutelado pelo dever de moralidade ou o coloquem em uma levíssima situação de perigo, atos que denotem lesão irrelevante aos interesses do cargo, “não possuem a aptidão necessária ao delineamento de um perfil ímprobo” 21.
A mera aplicação das sanções de improbidade, ainda que no mínimo legal, nessas hipóteses, acarretaria uma lesão muito maior ao agente do que qualquer efeito negativo eventualmente sofrido pelo Estado, resultando em grave quebra da segurança jurídica. A improbidade formal, aquelas condutas com roupagem aparente de improbidade, deve estar “associada à improbidade material, a qual não restará configurada quando a distorção comportamental do agente importar em lesão ou enriquecimento de ínfimo ou de nenhum valor” 22, ou, acrescentamos, quando o desvio moral, a ofensa à moralidade administrativa, for de nenhuma transcendência.
Essa é a opinião abalizada de diversos especialistas na seara do Direito Administrativo da Improbidade, como refletem os excertos seguintes, especialmente selecionados, em síntese da argumentação desenvolvida até o momento:
As mesmas considerações de tipificação material da ilicitude estendem-se ao campo punitivo da improbidade administrativa. Não é qualquer ofensa à probidade administrativa que justifica acionar o dever-poder punitivo cristalizado e fundamentado no artigo 37, §4° da Constituição. Por força do princípio da proporcionalidade, somente havendo agressão em nível suficiente para abalar os bens jurídicos tutelados. Condutas ilegais formalmente ímprobas podem deixar de ser reprimidas no nível do sistema de improbidade, sem prejuízo de que venham seus responsáveis sofrer sanções jurídicas em outras órbitas de responsabilização. 23
A aplicação da lei de improbidade administrativa também deve sofrer a incidência do princípio [da insignificância]. Isso significa dizer que a conduta do agente público deve ser lesiva. Nos casos em que se conjugarem os fatores a seguir a ilicitude da conduta fica excluída: "a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) a nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada". 24
Ora, aceitando o princípio da tipicidade para o ilícito administrativo disciplinar de elevado ou médio potencial ofensivo à Administração e a seus fins, deve-se aceitar o princípio da insignificância ou da bagatela para excluir a referida tipicidade, em casos de irrelevância material dos danos causados. Tanto assim o é que dificilmente se defenderia a responsabilização, em sede judicial, por ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei n.° 8.429/92, do servidor público que se utilizou do telefone da repartição para fazer uma ligação de interesse particular, ou se utilizou de uma caneta fornecida pela repartição par assinar diversos cheques particulares. 25
Assim, não é qualquer aparente inobservância dos tipos da Lei de Improbidade que dará ensejo à responsabilidade do agente público. Especialmente, quando se está em face de exigências eminentemente formais, como são as dos incisos II, III, VI, VII, XI, XIV e XV do art. 10 da LGIA26. Se não há prejuízo ao funcionamento dos serviços públicos, nem relevante afetação de direitos de terceiros ou do interesse público, a simples omissão de uma formalidade, como a ausência de inserção de uma data em determinado documento não será considerada ilícito material. 27
Igualmente, a pequena ou nenhuma expressividade do dano causado por uma única ligação particular isolada feita por servidor público com o telefone funcional, ou pela utilização de envelopes e pastas da repartição, para o acondicionamento de documentos particulares, ou ainda pelo emprego de uma folha de papel da repartição para anotar um recado pessoal ou pelo uso de clipes de propriedade do órgão público em atividades não relacionadas ao serviço, práticas essas que são corriqueiras e largamente disseminadas em todos os setores da Administração, não justifica o acionamento dos mecanismos da LGIA, apesar de as referidas condutas serem formalmente enquadráveis em tipos de improbidade administrativa. A “reprimenda a esses atos não encontraria reflexo no consenso social” 28.
A movimentação do aparato judicial para a persecução de condutas de conteúdo violador ínfimo ao interesse público acarretaria mais danos à sociedade do que as referidas práticas que se procura coibir. Acreditamos que, dificilmente, encontrar-se-ia servidor público que não houvesse praticado, em toda a sua carreira, ato formalmente ímprobo, embora materialmente irrelevante, de maneira que caso os órgãos de controle internos e externos sucumbissem à tentação de tratar com radicalismo e irracionalidade a questão, o funcionamento da Administração Pública brasileira ficaria seriamente comprometido29.
Não custa lembrar, como já referido, que os mecanismos sancionatórios, especialmente, aqueles de maior gravidade, não são os únicos instrumentos para aproximar o comportamento dos agentes públicos do padrão ideal e normativamente exigido. Não são mesmo os mais indicados e com maior eficácia sócio-pedagógica no combate às infrações bagatelares.
O fato de a vítima ser o Estado não deve alterar o raciocínio quanto à aplicabilidade do princípio da bagatela. Isso seria inverter a ordem de prioridades. “Se o Estado considera que certa agressão a um cidadão não é suficiente para fazer incidir normas jurídicas punitivas, tampouco poderá fazê-lo quando o próprio Estado for a vítima” 30. O sistema jurídico existe prioritariamente para a proteção do indivíduo e não da sociedade, que não se distingue do conjunto de sujeitos que a compõe. Não tem existência própria ou importância per se.
Essa sensibilidade à questão das infrações bagatelares é necessária, precisamente, para que se evite a trivialização das ações de improbidade, a sua instrumentalização por motivações políticas inconfessáveis e a sua consequente deslegitimação. Isso não significa, por outro lado, dar ensejo à impunidade dos atos ímprobos. Significa apenas reconhecer que não se pode punir a qualquer custo, de maneira desproporcional, desarrazoada, injusta e inútil.
Assim, sempre que, recebida a inicial da ação de improbidade e a manifestação prévia do requerido, o magistrado reconhecer de plano que a ofensa produzida pela conduta do agente público ou de terceiro colaborador, formalmente enquadrada em um dos tipos de improbidade administrativa, não tem relevância bastante para justificar a incidência das gravosas sanções da LGIA, deve, no prazo de trinta dias, rejeitar a ação de improbidade, em decisão fundamentada, externando o seu convencimento acerca da inexistência de improbidade material (Art. 17, § 8º da LGIA). Também, em qualquer fase do processo, reconhecida a inadequação da ação de improbidade, pela ausência de substrato material, o juiz extinguirá o processo sem julgamento de mérito (Art. 17, § 11 da LGIA31). Embora se trate de extinção do processo sem julgamento de mérito, entendemos que não poderá ser proposta nova ação de improbidade com base nos mesmos fatos. A aplicação do princípio da insignificância acarreta a declaração judicial de que a conduta em questão não consiste em ato de improbidade, o que tem o mesmo efeito de uma absolvição por atipicidade da conduta na esfera criminal, ou seja, neste ponto a questão está definitivamente decidida.