Fiança policial na Lei Maria da Penha: possibilidade

30/05/2015 às 10:48
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Pode a autoridade policial conceder fiança ao preso em flagrante por crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, abrangido pela Lei Maria da Penha?

SUMÁRIO. 1 INTRODUÇÃO. 2 BREVE EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. 2.1 Lei n. 6.416/1977. 2.2 Constituição Federal. 2.3 Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006). 2.4 Lei n. 12.403/2011. 3 LEI MARIA DA PENHA E FIANÇA POLICIAL. 3.1 Corrente contrária à fiança policial. 3.2 Corrente favorável à fiança policial. 4 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

Preocupada com a crescente violência doméstica e familiar, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 8º, determinou ao Estado a criação de mecanismos para coibi-la, a fim de assegurar assistência a cada integrante da família. A Lei n. 11.340/2006 - conhecida por “Lei Maria da Penha”, uma homenagem à cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que sobreviveu à tentativa de homicídio praticada por seu então marido e passou a atuar em movimentos de combate à violência familiar contra a mulher – criou diversos instrumentos para efetivar a diretriz constitucional, dentre eles, a previsão de prisão preventiva do agressor.

Sobreveio, então, o debate sobre a possibilidade de a autoridade policial arbitrar fiança ao preso em flagrante por crime envolvendo violência doméstica. Mesmo após a edição da Lei n. 12.403/2011, que manteve a prisão preventiva no âmbito da Lei Maria da Penha, mas alterou a redação do art. 322 do CPP, continuaram as discussões sobre o arbitramento da fiança pelo delegado de polícia.

Revisando-se a legislação que envolve o tema, pretende-se solucionar a questão apresentada, longe de esgotar a pesquisa e o debate. Para facilitar a leitura, a fiança arbitrada pelo delegado de polícia será chamada também de fiança policial.

2 BREVE EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

Não são muitos os diplomas legais a serem estudados, para resolver a questão. Demandam, porém, exame cuidadoso, haja vista a peculiaridade da matéria que envolvem.

2.1 Lei n. 6.416/1977

O tratamento legal da violência doméstica e da fiança sofreu mudanças ao longo do tempo. A redação anterior do artigo 322 do Código de Processo Penal, dada pela Lei n. 6.416/1977, permitia à autoridade policial arbitrar fiança nos casos de infração penal com pena de detenção ou prisão simples, incumbindo ao Juiz decidir os demais casos (“Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples. Parágrafo único.  Nos demais casos do art. 323, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 horas.”).

O inciso V do art. 323 do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n. 6.416/1977, proibia a fiança nos crimes punidos com reclusão, que tivessem sido cometidos com violência contra a pessoa ou grave ameaça. Assim, os crimes de lesão corporal leve e ameaça continuavam sujeitos à fiança, pois são punidos com detenção, não com reclusão. Mesmo com a inclusão do § 9º do art. 129 do Código Penal, pela Lei n. 10.886/2004, depois alterado pela Lei n. 11.340/2006, o crime de lesão corporal leve, em situação de violência doméstica contra a mulher, permaneceu descrevendo apenas pena de detenção.

Desse modo, os crimes mais comuns que envolvem violência doméstica contra a mulher (artigos 129, § 9º, 138, 139, 140 e 147 do Código Penal), que sempre prescreveram pena de detenção, admitiam a fiança policial, pois o obstáculo do inciso V do art. 323 do CPP atingia apenas os delitos punidos com reclusão.

2.2 Constituição Federal

Em 1988, o § 8º do artigo 226 da Constituição Federal dispôs: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Como forma de efetivar esse preceito, o Brasil aderiu à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, mediante Decretos n. 1.973/1996 e n. 4.316/2002, respectivamente. Ainda nesse contexto, a Lei n. 10.455/2002 alterou a redação do parágrafo único do art. 69 da Lei n. 9.099/1995, criando, em sede penal, a medida cautelar de afastamento do agressor do lar. Esse instrumento alcançava crimes domésticos contra a mulher, acima indicados, que, à época, eram abrangidos pelos Juizados Especiais Criminais. Nas razões do veto do artigo 2º da citada lei modificadora – que tratava apenas do momento da vigência -, constou a seguinte explicação sobre a importância dessa mudança legislativa:

O que se acresce ao parágrafo único do art. 69 é o poder de cautela consistente no afastamento do indiciado ou réu do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. Tal providência, consoante justificativa parlamentar, fulmina o processo de agressão contra o ente familiar, sem que haja imposição de medida restritiva de liberdade.”

2.3 Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006)

No ano de 2006, entrou em vigor a Lei n. 11.340/2006, mais conhecida por “Lei Maria da Penha”, nome da mulher que serviu de principal inspiração para a luta contra a violência familiar. Dentre várias novidades, criou as medidas protetivas de urgência à ofendida (artigo 23) e as que obrigam o agressor (artigo 22), e autorizou o cabimento da prisão preventiva do acusado em determinadas circunstâncias (artigo 20), inclusive acrescentando a nova hipótese ao artigo 313 do Código de Processo Penal (artigo 42): “IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.

Além disso, a Lei n. 11.340/2006 determinou que não se aplica a Lei n. 9.099/1995 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 41), ou seja, não cabem a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo, e tornou de iniciativa pública incondicionada a ação penal dos crimes de lesão leve e culposa incondicionada.

Saliente-se que, em 2010, o STJ, no julgamento do RE 1097042, sob regime de recursos repetitivos, decidiu que o art. 89 da Lei dos Juizados Criminais continuava sendo aplicado aos crimes de lesão corporal leve e culposa. Porém, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC 19, em 9 de fevereiro de 2012, declarou, por unanimidade, a constitucionalidade do art. 41 da Lei Maria da Penha, confirmando, portanto, que nenhum procedimento ou medida da Lei n. 9.099/1995 incidia sobre os crimes tutelados pela Lei n. 11.340/2006.

2.4 Lei n. 12.403/2011

Retornando ao tema, a Lei n. 12.403/2011 criou várias medidas cautelares alternativas à prisão preventiva, dentre elas a fiança (arts. 319 e 320 do CPP: comparecimento periódico em juízo, proibição de acesso a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoas determinadas, proibição de ausentar-se da Comarca, recolhimento domiciliar em determinados períodos, suspensão do exercício de função pública ou de atividade econômica, internação provisória do acusado inimputável ou semi-imputável, monitoração eletrônica e proibição de ausentar-se do País), e alterou o referido art. 322 do CPP, dispondo sobre a concessão da fiança policial pela quantidade da pena, não por sua natureza.

Em vez de limitar-se à detenção ou prisão simples, a lei estipulou que a autoridade policial poderá conceder fiança nos casos de infração penal cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos (“A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos”).

A vedação de fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312) permaneceu no inciso IV do art. 324 do CPP. O citado inciso IV do artigo 313 – antes criado pela Lei n. 11.340/2006 - foi revogado, mas sua essência foi mantida como hipótese de cabimento de prisão preventiva no novo inciso III do mesmo artigo, que, além da violência doméstica e familiar contra mulher, possibilitou a prisão quando o sujeito passivo for outros grupos vulneráveis: “III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.

As circunstâncias do clamor público, violência ou grave ameaça, porém, não foram repetidas pela atual legislação (artigos 323 e 324 do Código de Processo Penal), de modo que não impedem a concessão da fiança em qualquer de suas modalidades.

3 LEI MARIA DA PENHA E FIANÇA POLICIAL

Com a nova redação do art. 322 do CPP, os acusados de crimes de violência doméstica contra a mulher de maior incidência (lesão corporal, crimes contra a honra e ameaça) continuavam, em tese, sendo beneficiários da fiança a ser arbitrada pela autoridade policial por ocasião da prisão em flagrante, pois a pena máxima de cada uma dessas infrações não excede quatro anos. Ressalte-se que os crimes contra a honra são apurados mediante ação pena privada (art. 145 do CP) e, mesmo cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha e excluída a aplicação do Juizado Especial Criminal, ainda é possível a audiência de reconciliação (artigos 521 e 522 do CPP).

Entretanto, abriram-se debates sobre a possibilidade de o delegado de polícia arbitrar fiança aos autuados em flagrante por crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha. Alguns defendem a proibição, pois a previsão de prisão preventiva impede a fiança. Outros argumentam que a lei expressamente a admite. Saliente-se que crimes de lesões corporais mais graves e homicídio, por exemplo, têm sanção máxima superior a quatro anos, impedindo a fiança policial.

3.1 Corrente contrária à fiança policial

Apesar de o limite para o arbitramento da fiança policial ter sido ampliado para as infrações cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos, alguns doutrinadores sustentam que o art. 322 do CPP – com redação antiga ou atual – não se aplica aos crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha.

Argumenta-se, em síntese, que a Lei n. 11.340/2006 tinha possibilitado a decretação da prisão preventiva aos agressores domésticos - autorização mantida pela Lei n. 12.403/2011 -, de modo que, não tendo o delegado de polícia atribuição para decretá-la – assunto reservado à jurisdição - , também não poderia fazer o exame do cabimento da fiança.

Logo após a edição da Lei Maria da Penha e antes da Lei n. 12.403/2001, Oliveira, J. (2006) discorria nesse mesmo sentido, de que autoridade policial não poderia conceder a fiança, visto a necessidade de análise dos motivos autorizadores da prisão preventiva, de competência exclusiva do Juiz de Direito:

Em conclusão, ante a inclusão da prisão preventiva, operada pelo artigo 20 da Lei 11.340/06, nos casos tratados nesta lei, deflui-se que, nestes casos, a autoridade policial não poderá conceder a fiança, visto a necessidade de análise de ausência ou presença dos motivos autorizadores da prisão preventiva, ato este de exclusivo controle jurisdicional.”

Lima, F. (2012), já após a promulgação da Lei n. 12.403.2011, igualmente articula que a autoridade policial não pode arbitrar a fiança nos casos de violência doméstica contra a mulher:

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Com a Lei Maria da Penha, os crimes envolvendo violência doméstica contra a mulher, independentemente da pena prevista, entraram no rol dos que se proíbe a liberdade mediante fiança no âmbito policial.

[…]

Assim, o dispositivo previsto no artigo 322, que permite a concessão de fiança pelo delegado nos crimes punidos com pena até quatro anos, não se aplica à violência doméstica, em face das inovações introduzidas no próprio CPP pela Lei Maria da Penha e pela Lei 12.403/11.

Com efeito, todos os crimes punidos com pena até quatro anos de prisão estão agora sujeitos à prisão preventiva, nos termos do aludido artigo 313, inc. III. Logo, não será concedida a fiança se presentes os requisitos da prisão preventiva (art. 324, IV), apreciação a ser feita pelo juiz, nos termos do artigo 311.”

Nesse entendimento, a previsão genérica de vedação de fiança para os crimes que admitem prisão preventiva – como é a hipótese do inciso III do art. 313 do CPP - impede a aplicação do art. 322 do CPP, pois, nessa situação, somente o Juiz poderia examinar o cabimento da prisão preventiva ou o arbitramento da fiança (parágrafo único do artigo 322).

Como forma de uniformização, os Promotores de Justiça do Núcleo de Gênero Pró-Mulher de Fortaleza, com amparo nas disposições dos arts. 129, I, II e XII, da Constituição da República Federativa do Brasil; 130, I e VI, da Constituição do Estado do Ceará; 27, parágrafo único, IV, da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e 127, I, parágrafo único alínea “d”, da Lei Complementar n.º 72, de 12 de dezembro de 2008, que instituiu a Lei Orgânica e o Estatuto do Ministério Público do Ceará, e do provimento 40/2010, PGJ/CE, recomendaram às autoridades policiais que oficiam junto à Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza que não concedessem, de ofício ou a requerimento do acautelado, fiança, remetendo o pedido imediatamente ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, acompanhado dos documentos necessários (Recomendação n. 001/2012-NGPMF).

A Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica do Brasil - COPEVID, pertencente ao Grupo Nacional de Direitos Humanos, que é subordinado ao Conselho Nacional Procuradores-Gerais também lançou entendimento sobre a proibição de a autoridade policial arbitrar fiança nos casos de violência doméstica:

Enunciado n. 6: Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, é vedada a concessão de fiança pela autoridade policial, considerando tratar-se de situação que autoriza a decretação da prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, CPP.

Haja vista a diversidade de iniciativa da ação penal, Lima, F. (2012) faz a ressalva a essa vedação, concluindo pela possibilidade de a autoridade policial arbitrar fiança nos crimes sujeitos a ação privada e contravenções:

Com a Lei Maria da Penha, reforçada e ampliada pela Lei 12.403/2011, a concessão de liberdade provisória pela polícia mediante fiança: 1. É vedada nos crimes praticados em violência doméstica contra a mulher e contra o homem-vulnerável (menor, idoso, enfermo ou deficiente); 2. É possível, nas hipóteses do item anterior, apenas nos crimes sujeitos a ação penal privada e nas contravenções penais, em respeito ao princípio da proporcionalidade.”

Em comentário sobre o art. 322 do Código de Processo Penal, ainda com a redação antiga, Auad Filho (2007) mantinha entendimento semelhante ao de Lima, F., de inviabilidade da fiança policial, pois a lei permite a prisão preventiva para os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher:

Permitir o arbitramento de fiança pela autoridade policial, no caso em que é possível a decretação de prisão preventiva, além de causar desvirtuamento do ordenamento jurídico, ainda acarretará perplexidade em posicionamentos contraditórios, bem como usurpação da função jurisdicional do juiz.

[…]

'2. Nos casos previstos na Lei nº 11.340/2006, a concessão de liberdade provisória é competência exclusiva da autoridade judiciária, não cabendo o arbitramento de fiança pelo delegado de polícia, diante da necessidade do juiz averiguar previamente a possibilidade ou não de manutenção da prisão provisória.”

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar situações de violência contra a mulher no Brasil apresentou o Projeto de Lei n. 6.008, de 2013, propondo a alteração da Lei n. 11.340/2006 para, dentre outros dispositivos, vedar expressamente a concessão de fiança pela autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o artigo 4º do projeto, o parágrafo único do art. 322 do CPP passaria a vigorar com a seguinte redação, excluindo a incidência do seu caput: “Art. 322.........Parágrafo único. Nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher e nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em quarenta e oito horas. (NR)” (DIÁRIO, 2013)

A justificava do projeto de lei é que, embora o Código de Processo Penal proíba o arbitramento de fiança pela autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, pois incumbe à alçada judicial analisar os requisitos da prisão preventiva (artigos 313, III, e 324, IV, do CPP), o sistema de Justiça tem desprezado esse comando para tolerar a liberdade imediata dos agressores na própria delegacia, fato que tem causado a continuidade da violência e até assassinatos de mulheres após o pagamento de fiança arbitrada pela polícia.

Como se observa, essa corrente escora-se, essencialmente, na previsão abstrata e genérica da prisão preventiva nos crimes em que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher e outras pessoas vulneráveis (criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência), disposta no art. 313, III, do CPP.

Ressalte-se que o delegado de polícia, evidentemente, negará a fiança nas outras hipóteses de inafiançabilidade constitucional (art. 5º, XLII, XLIII, XLIV, da CF, repetidas no art. 323 do CPP) ou de vedação à fiança (art. 324, I e II, do CPP), que são objetivas e cuja verificação não é privativa do Juiz de Direito - como ocorre na decretação da prisão preventiva.

3.2 Corrente favorável à fiança policial

O artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso LXVI, determina que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. O artigo 322 do Código de Processo Penal expressamente dispõe que “A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos”, reservando, em seu parágrafo único, os demais casos à apreciação judicial.

Mesmo com a edição da Lei Maria da Penha, em 2006, e antes da reformulação do processo penal em 2011, outros doutrinadores aceitavam a liberdade do preso em flagrante mediante pagamento de fiança arbitrada pelo delegado de polícia. Referindo-se à redação anterior do art. 322 do Código de Processo Penal, Dias (2008, p.128) não se opunha à aplicação da fiança nos crimes de violência doméstica contra a mulher:

Sem embargo do rigor com que a lei tratou a infração penal voltada contra a mulher, não há nenhum impedimento à concessão da liberdade provisória, que pode ser concedida com ou sem fiança. Se a infração for punida com pena de detenção ou prisão simples, a fiança é deferida pela autoridade policial (CPP, art. 322). Nos demais casos, pelo juiz (CPP, art. 322, parágrafo único)”

De igual forma, Pinto (2012) anunciava que a Lei n. 12.403/2011 alterara objetivamente o artigo 322 do Código de Processo Penal, de modo a permitir o arbitramento da fiança pela autoridade policial em qualquer crime punido com pena até quatro anos, não podendo o intérprete restringir esse direito. Quisesse o legislador proibir esse benefício, teria disposto expressamente, como o fez nos artigos 17 e 41 da Lei n. 11.343/2006, que vedam a aplicação de pena de cesta básica e a incidência da Lei n. 9.099/1995, respectivamente. Além disso, explica que decretação de prisão preventiva somente cabe na situação de descumprimento de medidas protetivas anteriores:

Concluímos, bem por isso, que; 1) à autoridade policial, como regra, cumpre arbitrar fiança em prol do autor preso em flagrante pela prática de um delito em situação de violência doméstica, desde que a pena máxima cominada não exceda a quatro anos e 2) esse direito do agente somente será negado (quando caberá, então, ao juiz de direito apreciar a questão), se ele, com sua ação, descumpriu medidas protetivas que, antes, foram deferidas em favor da vítima.

Os argumentos de que o artigo 20 da Lei Maria da Penha e artigo 313, inciso III, do Código de Processo Penal possibilitam a prisão preventiva do agressor, e que o artigo 324, inciso IV, do mesmo código, veda a fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva não afastam a aplicação do art. 322 do CPP, pelo contrário, confirmam-no, pois, não tendo a autoridade policial atribuição para decretar a prisão, não pode negar a fiança sob argumento da necessidade dessa espécie de custódia.

Para se impedir a fiança com base na vedação do art. 324, IV, do CPP exige-se o preenchimento concreto de algum motivo do art. 312 e também de alguma hipótese do art. 313, ambos do CPP, não bastando a previsão em abstrato. Se for pela condição do inciso III, a prisão preventiva servirá para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, ou seja, pressupõe-se seu deferimento anterior e o descumprimento injustificado. Ressalte-se que, em regra, antes de decretar a prisão é necessária a prévia oitiva do investigado.

Não dispondo de todas informações, nem de atribuição legal para decretar a prisão preventiva, a autoridade policial pode arbitrar a fiança nos casos envolvidos na Lei Maria da Penha, cuja pena não supere quatro anos. Nada impede que, posteriormente, o Juiz decrete a custódia preventiva, observando-se o art. 310, II, do CPP, se forem apresentados elementos fáticos que demonstrem as presenças da hipótese do inciso III do art. 313 do CPP e de algum dos requisitos do art. 312 (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares).

O Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Estado de Goiás (2011), em reunião ordinária no dia 25 de fevereiro de 2011, por unanimidade de seus integrantes, concluiu que “A Lei Maria da Penha não vedou o arbitramento de fiança pela autoridade policial, incidindo a regra geral sobre o instituto”.

Em sua obra, Lima, R. (2013, p. 987) discorda da corrente que proíbe a fiança policial nos casos de violência doméstica e ensina que é possível a autoridade policial estipular a fiança para os agressores abrangidos pela Lei n. 11.340/2006:

Se o art. 322 do CPP dispõe que a autoridade policial poderá conceder fiança às infrações penais cuja pena máxima não seja superior a 4 (quatro) anos, não se pode estabelecer qualquer outro requisito para a concessão do referido benefício, sob pena de indevida violação ao princípio da legalidade. De mais a mais, o simples fato de um crime estar sujeito à decretação da prisão preventiva não é óbice à concessão da fiança pela autoridade policial. O art. 324, IV, do CPP, proíbe a concessão da fiança apenas quando presentes os motivos que autorizam a preventiva, leia-se, garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou garantia da aplicação da lei penal – perceba-se que o próprio dispositivo faz referência ao art. 312 do CPP - , sem estabelecer qualquer relação com as hipóteses de admissibilidade da prisão preventiva previstas nos incisos do art. 313 do CPP. Logo, a autoridade policial não poderá negar a concessão de fiança sob o simples argumento de que o crime fora praticado no contexto de violência doméstica e familiar (CPP, art. 313, III). Para além disso, também deverá demonstrar que teria havido descumprimento de anterior medida protetiva de urgência imposta pelo juiz e que a permanência do agressor em liberdade poderia, por exemplo, colocar em risco a garantia da ordem pública, haja vista a possibilidade de reiteração delitiva (CPP, art. 312).

4 CONCLUSÃO

Revisando a legislação, observa-se que a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) buscou tratar os agressores com maior rigor, em defesa das mulheres vítimas de violência doméstica em suas variadas modalidades. Dentre várias medidas, vedou a incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais (artigo 41) e autorizou o cabimento da prisão preventiva do acusado (artigos 20 e 41). Surgiu, então, o debate sobre a possibilidade de a autoridade policial arbitrar fiança aos agressores que cometem crimes contra a mulher com incidência da Lei Maria da Penha, sobretudo após a edição da Lei n. 12.403/2011.

A previsão abstrata de prisão preventiva do artigo 313, inciso III, do CPP, cumulada com a vedação do artigo 314, IV, do CPP, devem ser verificados na situação concreta e, exclusivamente, se houver notícia de descumprimento injustificado de medidas protetivas antes aplicadas. A proibição genérica não é suficiente para afastar o artigo 322 do CPP. O exercício do Direito não se faz apenas no âmbito teórico, exigindo-se a exame do caso concreto para aplicar ou deixar de aplicar um dispositivo legal.

Uma vez concedida a fiança pelo delegado de polícia, incumbe a ele garantir proteção policial, conforme art. 11 da Lei Maria da Penha. E nada impede que o Juiz de Direito – única autoridade competente - decrete a prisão preventiva, desde que a autoridade policial ou o Ministério Público apresentem elementos concretos que indiquem seu cabimento e necessidade, nos termos dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. A aparente inconveniência de liberar o preso por fiança e posteriormente prendê-lo preventivamente não é expressão da lei nem pode ser suportada exclusivamente pelo investigado.

O Código de Processo Penal não veda expressamente a concessão de fiança pela autoridade policial, tanto que há o Projeto de Lei n. 6.008/2013, para alteração da Lei n. 11.340/2006, a fim de atribuir somente ao Juiz esse exame. Enquanto não houver alteração legislativa, o artigo 322 do Código de Processo Penal continua autorizando a fiança policial para crimes com pena máxima até quatro anos, inclusive para os crimes envolvendo violência doméstica contra a mulher.

Bezerra e Lima (2015) ressaltam a necessidade de se observar o princípio da legalidade:

Mas a resposta do Estado e da sociedade deve sempre se dar no limite da lei, nunca além ou aquém. Devassar a letra legal com um entendimento doutrinário do que se pensa, é eivar de achismos a própria segurança do cidadão confiada na lei da qual se espera dele a obediência, e do Estado, a razoabilidade.

[...]

'Onde a lei não restringiu, não cabe ao intérprete fazê-lo. Se a lei quis dizer o que não disse, cabe ser clara. Se a lei está errada, mude-se a lei. Nesse sentido, há um Projeto de lei nº 156 a propor tal alteração expressa.

Enfim, a liberdade continua sendo regra e a prisão provisória, exceção. A garantia do inciso LXVI do artigo 5º da Constituição Federal e a permissão do artigo 322 do Código de Processo Penal autorizam o arbitramento de fiança pela autoridade policial, nos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, cuja pena privativa de liberdade máxima não ultrapasse os quatro anos. O cabimento da prisão preventiva deverá ser apreciado posteriormente pelo juiz de direito, na forma dos artigos 310 a 313 do CPP.

REFERÊNCIAS

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BEZERRA, Cláudio Jenner de Moura. LIMA, Lucas Correia de. O direito a quem é de direito: a (im) possibilidade de arbitramento de fiança aos crimes de violência doméstica e familiar pela autoridade policial. Disponível em: <http://www.mpba.mp.br/atuacao/criminal/material/2014/artigo_violencia_domestica_e_possibilidade_de_fianca.pdf>. Acesso em: 23 maio 2015.

CONSELHO NACIONAL PROCURADORES-GERAIS: Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica do Brasil – COPEVID (GNDH/CNPG). Enunciado n. 6 da COPEVID. Brasília. In: Ministério Público do Estado da Paraná: centro de apoio operacional das promotorias de direitos constitucionais, Curitiba. Disponível em: <http://www.direito.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=87>. Acesso em: 28 mar. 2014.

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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 3.tir. 160 p.

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Sobre o autor
Augusto Yuzo Jouti

Juiz de Direito - TJBA

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Trecho conclusivo do trabalho de conclusão de curso apresentado em abril de 2014, como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista no Curso de Pós-graduação em Atividade Judicante, da Escola de Magistrados da Bahia em parceria com a Universidade Federal da Bahia, revisado em maio de 2015.

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