Controle do exercício de competência regulamentar do Poder Executivo: problemática introduzida pelo Decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013

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O presente artigo aborda a competência regulamentar do Poder Executivo, bem como as implicações introduzidas pelo Decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013.

         

Sumário: 1 Introdução. 2. Natureza Jurídica do Indulto. 2.1. Fiscalização da competência Regulamentar do Poder Executivo. Especificidades. 2.1. Competência para fiscalizar ato infra legal do Executivo regulador frontal do Texto Constitucional. 3.  Decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013. 3.1 Inaplicabilidades de cláusula de limitativa para incidência do indulto de multa. 4. Conclusão. 5. Referências.

Resumo O presente artigo aborda a competência regulamentar do Poder Executivo, sobretudo quando o ato infra legal regula direta e frontalmente a Constituição Federal, e outras peculiaridades, referentes à matéria, bem como as implicações introduzidas pelo Decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013, em relação ao indulto de multa.

Palavras chaves: indulto, crises legalidade, ato infra legal, competência regulamentar.

Abstract

            This article focuses on the regulation of the regulatory power of the Executive, particularly when the infra lawful act regulates directly and head-on the Federal Constitution and other peculiarities , related to the matter, and the implications introduced by Decree No. 8172 of 24 December 2013 for the pardon.

Key words: pardon , legality crisis , infra legal act, regulatory competence.

O indulto é uma das modalidades extintivas da punibilidade, conforme prevê o art. 107, inciso II, do Código Penal. É concedida, exclusivamente, por ato do Presidente da República, exteriorizado, mediante Decreto, ou por seus delegatários, nos termos da Constituição Federal, quais sejam, a Ministro de Estado, ao Procurador-Geral da República e ao Advogado-Geral da União, nos termos do inciso XII e parágrafo único do art. 84, da Constituição Federal. O indulto não demanda requerimento expresso dos interessados é um típico favor do rei, parafraseando as escrituras sagradas é um dom gratuito do “Rei”.

            O indulto pressupõe condenação. Todavia, vem sendo decretado, mesmo antes do trânsito em julgado, sob o fundamento de que é permitido aos presos provisórios gozar de benefícios da execução penal[i]. Essa questão é bastante interessante, pois alguém, que está em fase recursal pode ser agraciado com um perdão definitivo da pena, perdendo o recurso o objeto. Nesse caso, o perdão só teria cabimento, caso não houvesse recursos do MP, ou quando o trânsito julgado houvesse se verificado, em relação à acusação, pois, nessa situação, não haveria como a sanção aplicada aumentar, sob pena de violação do princípio da non reformatio in pejus.

            Passo à graça. Esta é chamada de indulto individual, pois é concedida, igualmente, pelo Presidente República, por meio de Decreto presidencial, incidindo sobre determinada pessoa. É, portanto, pontual. A graça vem sendo pouco recorrente, pois o indulto surte o mesmo efeito, sendo mais adequado ao princípio da isonomia, pois é um benefício extensivo a todos aqueles que se encontrarem nesta situação, diverso da graça que tem caráter mais identificado.

            O indulto ou graça podem ser parciais ou totais. Sendo totais, extinguem totalmente a pena e, por lógico, que sendo parciais extinguem a sanção, em parte. Importante frisar que, quando o indulto e a graça são parciais coincidem com a mesma razão de ser da comutação, pois esta, como regra, não extingue a pena, mas visa apenas ao decote de parcela desta, abreviando o final do cumprimento das disposições da sentença condenatória.

            Quanto à comutação, esta, numa primeira acepção, consiste em uma redução parcial da pena, que não conduz diretamente a extinção, mas sua aplicação sucessiva pode resultar. Pode a comutação, também, importar na substituição da pena, nesse caso, a eficácia do ato dependeria de concordância do apenado, ainda que importasse em cumprimento de pena menos branda.

            Na verdade, a extinção da punibilidade é matéria de ordem pública, independe de provocação. Assim, seus efeitos são inexoráveis e, como regra, independem de concordância do apenado, salvo hipótese acima exposta. Inusitado seria um apenado querer cumprir sua pena até o final, ou de forma mais gravosa, mesmo com benefício de extinção da pena ou comutação desta. Nessa hipótese insólita, seria o caso de analisar o estado mental do apenado. Brincadeiras à parte, a execução penal é matéria de ordem pública, se o apenado incidiu em alguma hipótese de extinção da pena deve ser imediatamente liberado, pois sua manutenção no cárcere, além de ser grave violação jurídica, é deveras custosa para os cofres públicos. Além do mais, não se trata de direito individual transacionável.

            Noutro giro, em sentido contrário, poder-se-ia sustentar que o apenado reconhecendo sua culpa, quisesse cumprir integralmente sua pena, como uma forma de redenção pessoal da sua alma e como meio de conferir satisfação aos familiares da vítima, informando-lhes que nada mais deve, buscando de forma direta ou indireta obter o perdão destes, estando pronto a se reintegrar à sociedade. É uma espécie de direito ao esquecimento sui generis às inversas, ou seja, o reeducando gostaria de ser lembrado não necessariamente pelo ato criminoso que praticou, mas pelo integral cumprimento da pena imposta, punição estatal adequada ao delito cometido, demandando, agora, respeito da sociedade e nova chance para nela se reinserir. Trata-se de decorrência do princípio da ressocialização, o qual impõe conceder nova chances àqueles, que já se desvencilharam da pena legitimamente, impondo que sejam respeitados, o que abrange a exclusão de antecedentes criminais do conhecimento do público, apenas sua manutenção para efeito da administração da justiça.

            Esse é um ponto relevante para plena ressocialização. O Poder Judiciário e os Órgãos de Polícia não devem certificar passagens criminais de crimes já integralmente cumpridos, pois isto dificulta o acesso do ressocializando ao mercado formal e termina, por lançar por terra os esforços, no sentido de reintegrar plenamente o apenado e estimular a criação de estigmas e mais truamas. Esses dados devem ser omitidos só interessando à própria Justiça, para outros fins, tal como aferir a reincidência. Não se pode estimular o culto aos estigmas, por violar o princípio da dignidade da pessoa humana.

            Todos têm direito de terem suas dívidas lançadas no mar do esquecimento, após o devido adimplemento. O reviver de fatos passados danosos traz dores e aflições não só ao apenado, mas também, à vítima e seus familiares, que a todo momento são relembrados da situação de que desejariam esquecer e de que nunca houvesse acontecido.

            Apenas, de relance, exponho outros institutos extintivos. A anistia decorre de ato legislativo federal, consoante se constata no art. 21, inciso XVII e art. 48, inciso VIII, da CF/88, ou seja, tem natureza jurídica de lei penal, demandando sanção do Poder Executivo, exterminando os efeitos penais (primários e secundários), mas não os efeitos civis. Pode ser própria, ou imprópria, restrita ou irrestrita.

            Vale frisar que a anistia é bem abrangente incidindo sobre fatos, não sobre pessoas. Essa temática é bem atual, pois ex-torturados políticos e os familiares dos desaparecidos que foram comprovadamente torturados detêm legitimidade para requerer reparação civil decorrente das violações que, mesmo com decurso do tempo, se protraem e se renovam a cada dia, por serem indeléveis, ou difícil esquecimento.

            Há fortes discussões sobre a possibilidade de se rever anistias concedidas preteritamente, relacionadas a crimes de violação de direitos humanos. O STF já se manifestou de forma contrária, por entender que a anistia política, ocorrida na passagem do período ditatorial para o democrático, foi necessária ao momento de transição, legitimando, portanto, o princípio da estabilidade das relações jurídicas, por ser um fato que não pode ser visto com a ótica de hoje, mas daquela época como necessário ao fim a que foi posto, in verbis, colaciono o julgado[ii]:

“ (...)1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida. 2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura. (...)”.

            Ao meu ver, tem-se aqui a temática do direito adquirido, pois os agraciados, de ambos os lados, não poderiam, a posteriori, serem surpreendidos por brusca mudança normativa e jurisprudencial que desconsiderasse as peculiaridades do fato passado, sendo verdadeira violação ao princípio da vedação à surpresa material, uma espécie de venire contra factum proprium aplicado à seara pública. O Estado não pode se comportar de forma contraditória, sob pena de subverter a paz e a estabilidade jurídica. Prima-se aqui pela boa-fé objetiva institucional.

            A decisão traz ainda o conceito de lei-medida e as distingue das demais leis estrito senso. Estas são revestidas de abstração e generalidade, com aptidão de produção de efeitos pro futuro. Aquelas se destinam a regular interesses pontuais, em dado momento, não possuindo efeitos futuros, devendo serem analisadas com base no momento em que foram elaboradas. Nesta decisão, constata-se que o STF admitiu a compatibilidade da Lei da anistia com a atual Constituição Federal.

            Há ainda quem possa afirmar que não há direito adquirido, ou manutenção de efeitos de “Lei Perdoadora”, em face de atos violadores de direitos humanos. Esse fundamento não se sustenta, pois a própria Constituição Federal vigente expressamente respaldou a anistia outrora conferida, como forma de inaugurar novo futuro, sem entraves. Os fundamentos para romper o liame de responsabilidades penais foi a necessidade de se recomeçar, sem prejuízo do dever de reparação cível do Estado, que pode indenizar às vítimas diretas e reflexas pelos abusos que seus agentes tenham cometido.

            A derrubada da Lei da Anistia poderia gerar o efeito cascata, atingindo situações pretéritas, tal como a Lei que aboliu a escravatura. A despeito de a referida Lei Áurea não ter, oficialmente, conferida anistia aos senhores de escravo, na prática, esta se efetivou, pois a escravidão era institucionalizada e, após o fim do período escravocrata, o Estado não buscou apurar as responsabilidades daqueles que cometeram tantos atos de brutalidade, tampouco, propiciou medidas reparatórias, ao recém libertos.

            O fim da escravatura, ao menos formalmente, não foi acompanhado de políticas afirmativas e de inclusão social, à época. A liberdade fática veio desacompanhada da alforria econômica, educacional, laboral, habitacional. O, então escravo étnico, se viu livre do sistema escravocrata, mas sem condições de se reintegrar na sociedade, pois não detinha condições para buscar bons empregos e sequer possuía moradia digna.

Essa situação mal resolvida, durante o período que se seguiu, somada a outros aspectos e elementos resultou na sociedade injusta, desigual e segregada, em que as pessoas, em razão de sua etnia, ainda hoje, podem ser alijadas de um melhor posicionamento social, econômico e laboral.

Hoje, seria impossível identificar os escravocratas, para fins de responsabilidades penais, em razão do decurso do tempo. Seus descendentes, também, não poderiam responder penalmente, por força do princípio da intranscedência da pena, e seria bastante difícil estabelecer o vínculo de responsabilidade civil para que estes descendentes dos escravagistas pudessem pagar com seu patrimônio herdado, pelos atos praticados por seus ascendentes.

Destarte, a solução mais acertada é recorrer ao Estado, pois a escravidão era institucionalizada, como dito, razão pela qual exsurge a legitimidade das políticas afirmativas, hoje aplicadas, como forma de reparação dessa enorme, pregressa e imprescritível dívida. Todavia, defendo que devem se perpetuar, enquanto permanecer a situação de flagrante disparidade entre os grupos étnicos, que geram diferenças nos postos de trabalhos, nas universidades, nos bens de consumo, nas moradias e na criminalidade.

Outra questão, seria a possibilidade de o Estado ser civilmente responsabilizado, pelos atos anteriormente praticados, a título individualizado. Creio que seja muito difícil provar com perfeição os elementos da configuração dessa responsabilidade, a título individual. Ademais, o próprio Estado não possuiria capacidade econômica para indenizar todos aqueles integrantes de determinada etnia que sofreram o ricochete da escravidão, em razão da grande miscigenação atual que inviabiliza expor com clareza, quem pertença exclusivamente a determinado grupo étnico. Aliás, hoje, é bastante dificultoso estabelecer, ao menos na teoria, porque na prática é fácil, quem é pertencente a determinada etnia mais vulnerável historicamente.

Digo na prática, pois os postos laborais que demandam menor qualificação profissional são, em sua maioria, preenchidos visivelmente por pessoas integrantes de uma dada etnia, em razão de não ter sido permitido adequadamente a esta etnia o acesso aos meios de formação profissional. Todavia, ainda assim, alguns usam o fundamento de que é inviável saber com precisão quem pertence a determinada etnia. Embora não descorde, afirmo que o reverso é verdadeiro, isto é, torna-se fácil dizer quem pertence. Basta ir aos altos escalões do serviço público, no parlamento, das altas empresas, na mídia escrita, ouvida e televisiva, nos condomínios residenciais de luxo. Então, o que precisamos, na verdade, é reconhecer que não é de todo acertado que vivemos numa democracia racial, pois, embora o racismo não seja institucionalizado, este se mascara na sociedade, inclusive, nas sutilezas das relações pessoais.

Não proponho revanchismos, mas dignidade a todos. É imperativo reconhecer nossas falhas e prosseguirmos para não errarmos mais, conferindo aos vitimados, oportunidade de plena inserção social em condições de igualdade com as demais etnias.

Aliás, esta questão é tão complexa, pois há antropólogos e sociólogos que não defendem o uso da palavra raça, ou cor, por entenderem que não correspondem a um critério biológico ou que carregam semântica pejorativa. Mais complicado ainda, são os nominativos para se definir a etnia a que se pertence. Por isso, tornam-se mais corretas as políticas de afirmativas de massa, pois atendem a coletividade e se afiguram em instrumentos democráticos de correção de erros históricos.

Esse panorama tem efeitos práticos e visíveis na comunidade carcerária, pois a clientela das Unidades Prisionais é componente, em sua maioria, de um grupo étnico específico e oriundo de classes pobres, sendo, por isso, a vulnerabilidade a tônica da população de encarcerados. Assim, torna-se imperiosa a manutenção de instrumentos de reparação étnica, como forma de permitir a reinserção social de grupos historicamente vulneráveis, cumprindo de forma mais efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana.

2. Natureza Jurídica do Indulto. Fiscalização da competência Regulamentar do Poder Executivo. Especificidades

            Após essa introdução crítica, impende esposar que o indulto, lei em sentido material, exteriorizado, mediante decreto, consiste em ato administrativo diretamente complementar à Constituição não se confundindo com as medidas provisórias, as quais têm força de lei. Aliás, na verdade, uma das poucas franquias do Texto Supremo para que o Chefe do Poder Executivo inove na ordem jurídica, sem ingerência do Poder Legislativo, sem prejuízo da competência fiscalizadora deste, caso o ato (infra legal) exorbite a competência constitucional outorgada.

            É inegável que o legislador Constituinte permitiu ao Poder Executivo, sem interveniência prévia, ou a posteriori, de outros Poderes, perdoar as “dívidas” de outrem, desde que preencham alguns requisitos, por se tratar de uma competência política humanitária do seu Chefe.

            O exercício desta competência fiscalizadora pelo Congresso Nacional, tendo por parâmetro Lei stricto sensu e ato infra legal do Poder Executivo não permite o conhecimento da controvérsia, em sede de controle concentrado, pelo STF, pois a violação não fere diretamente preceito constitucional inviável, portanto, de sindicância.

            A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal solidificou-se no sentido de que crises de legalidade, consistentes na inobservância, por parte da autoridade pública, do seu dever jurídico de subordinação normativa à lei – são insuscetíveis de controle jurisdicional concentrado, uma vez que, o objetivo do processo de fiscalização normativa abstrata vincula-se, apenas, à aferição de situações configuradoras de inconstitucionalidade direta, imediata e frontal à Constituição Federal. Vejamos, julgado da Suprema Corte[iii]:

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ITENS NS. 17.1.10 E 17.1.10.2 DO PROVIMENTO CGJ/PR Nº 88/93 – ATOS DESVESTIDOS DE NORMATIVIDADE QUALIFICADA PARA EFEITO DE IMPUGNAÇÃO EM SEDE DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE – NECESSÁRIA FORMULAÇÃO, EM REFERIDO CONTEXTO, DE JUÍZO PRELIMINAR DE LEGALIDADE – OBJETO JURIDICAMENTE INIDÔNEO EM SEDE DE AÇÃO DIRETA – CRISES DE LEGALIDADE SÃO INSUSCETÍVEIS DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE – AÇÃO DIRETA DE QUE NÃO SE CONHECE – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. CRISES DE LEGALIDADE NÃO LEGITIMAM A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO. - O controle normativo abstrato, para efeito de sua válida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menor positividade jurídica e o texto da própria Constituição Federal. - Mostra-se processualmente inviável a utilização da ação direta nos casos em que o reconhecimento da situação de inconstitucionalidade depende do prévio exame comparativo entre a regra estatal questionada (como a de um provimento meramente administrativo) e qualquer outra espécie jurídica de natureza infraconstitucional (como um diploma legislativo). - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que crises de legalidade – que irrompem no âmbito do sistema de direito positivo, caracterizadas pela inobservância, por parte da autoridade pública, do seu dever jurídico de subordinação normativa à lei – revelam-se, por sua natureza mesma, insuscetíveis de controle jurisdicional concentrado, pois a finalidade a que se acha vinculado o processo de fiscalização normativa abstrata restringe-se, tão-somente, à aferição de situações configuradoras de inconstitucionalidade direta, imediata e frontal. Precedentes.

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Translitero, excerto do voto[iv]:

“ ... Vê-se, desse modo, que a discussão prévia do tema – por situar-se, precisamente, no plano da estrita legalidade – torna inviável o próprio conhecimento da ação direta em questão.

                É que o desrespeito ao ordenamento infraconstitucional não pode fundamentar, em sede de controle abstrato, um juízo imediato de ilegitimidade constitucional. A inconstitucionalidade que autoriza o exercício do controle concentrado é apenas aquela que emerge de situação caracterizada por frontal e direta incompatibilidade com o texto da Carta Política. Esse entendimento sempre prevaleceu no âmbito desta Corte, mesmo na vigência do ordenamento constitucional anterior (Rp 1.266/DF, Rel. Min. CARLOS MADEIRA).

                Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que crises de legalidade – que irrompem no âmbito do sistema de direito positivo, caracterizadas pela inobservância, por parte da autoridade pública, do seu dever jurídico de subordinação normativa à lei – revelam-se, por sua natureza mesma, insuscetíveis de controle jurisdicional concentrado (RTJ 133/69 – RTJ 134/559), pois a finalidade a que se acha vinculado o processo de fiscalização normativa abstrata restringe-se, tão-somente, à aferição de situações configuradoras de inconstitucionalidade direta, imediata e frontal.

                O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que se acha materialmente vinculado poderá configurar insubordinação administrativa aos comandos da lei. Mesmo que desse vício jurídico resulte, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade meramente reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada ...”.

            Todavia, a competência jurisdicional do STF sobre esta matéria não é totalmente esvaziada, pois este pode se manifestar, em sede de controle difuso, para analisar aspectos formais do procedimento, ou eventual erro grotesco de enquadramento jurídico, quando da apreciação a exorbitância do poder regulamentar pelo Congresso Nacional. Nesses casos, o provimento seria tão somente para expurgar o vício do procedimento, determinando a repetição do ato podendo, inclusive, ser determinada a apreciação do ato pelo Congresso, com observância de determinado preceito normativo, com liberdade, quanto ao mérito, sem prejuízo de nova análise da legalidade da decisão proferida pelo Poder Legislativo.

            Se o Congresso Nacional se negasse a proceder novo julgamento, ou a anular o ato dito viciado, caberia ao STF, então, oficiar novamente as Casas Legislativas, para que procedessem o julgamento, em prazo razoável, sem imposição de quaisquer sanções pela inação, por se tratar de prerrogativa, a qual poderia ser exercida como bem entender o Congresso, óbvio, desde que pautada nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade. Nesse caso, não se poderia concluir que o ato infra legal analisado estaria inegavelmente contaminado com a nulidade decorrente de eventual aceite ou rejeição pelo Poder Legislativo, pois se a decisão do Congresso não se revestir de legalidade, por violar normas procedimentais, ou apresentar grave erro de enquadramento jurídico, por óbvio, não teria aptidão para produzir o fim que se destina, qual seja, analisar a exorbitância do poder regulamentar do Executivo, pois seria como um ato inválido.

             Portanto, o ato infra legal prevaleceria indene, em obséquio aos princípios da presunção de legalidade e constitucionalidade dos atos do Poder Público, sem prejuízo dos prejudicados buscarem os seus direitos em demandas individuais, perante o juiz de piso, observadas as regras legais de competência, podendo admitir-se que possam ser alçados ao STF, pela via difusa, mediante o aviamento de recursos.

            Todavia, eis o problema. Se a decisão do Congresso Nacional é inválida, por violação do rito procedimental e por ferir frontalmente o princípio do devido processo legal e se revestir de abstração e generalidade, é admissível o conhecimento pelo Poder Judiciário para afastá-la do mundo jurídico, impedindo que produza seus efeitos. Nesse caso, a decisão não atingira o ato analisado pelo Congresso Nacional. Apenas, afastaria a decisão deste que o invalidou, ou o legitimou. Teria a finalidade de tirar do mundo jurídico a decisão nula e inconstitucional e evitar que produza ou continue produzindo efeitos, podendo, inclusive, regular os atos praticados, em sede da decisão das Casas Legislativas, bem como modular os efeitos.

            Quanto à legitimidade para arguir os vícios do procedimento e eventual erro teratológico de direito, nos casos de crises de legalidade, é dos parlamentares do Congresso Nacional, ainda que individualmente considerados, valendo, aqui, a jurisprudência tranquila da Corte, aplicada ao rito legislativo. Poder-se-ia, cogitar a possibilidade dos legitimados para propositura da ADIN, desde que o ato a ser proferido pelo Congresso Nacional se revista dos requisitos necessários para ensejar o seu conhecimento, em sede de controle concentrado pelo STF. Nessa situação, os legitimados atuariam, em sede de controle difuso, em defesa da regularidade procedimental, isto é, da higidez procedimental, em obséquio aos princípios da legalidade e devido processo legal.

            Competiria, de igual modo, ao STF acudir o próprio Poder Executivo, caso houvesse abuso da competência fiscalizadora do Poder Legislativo Federal, sendo o Judiciário o revisor universal de atos de quaisquer Poderes, inclusive, os seus próprios, ressalvados hipóteses legais, tais como: atos interna corporis, em que pese discussões sobre a temática, por inadmitir atos que estejam excluídos da atuação jurisdicional.

            A própria CF/88 instituiu a jurisdição universal não estando o STF dependente de qualquer outro Poder para exercer a sua jurisdição, tampouco vinculado. Nada está excluída, a priori, da competência apreciativa do Poder Judiciário, princípio inafastabilidade de jurisdição, que é, portanto, universal.

            Hoje vivemos na era da judicialização. Tudo é judicializado. Todavia, em se tratando em se imiscuir em competência de outro Poder o próprio STF é reticente. Vem admitido ingerência excepcional em atos típicos do Poder Legislativo, em situações de violações formais do rito legislativo. Na doutrina, se defende a intervenção, quando houver clara violação de cláusulas pétreas e direitos fundamentais, em processo legislativo em trâmite, por exemplo, processo legislativo que visa reinstalar a escravidão étnica.

            Todavia, essa intervenção não pode impedir novo Poder Constituinte, que seria todo poderoso, em que pese o princípio da vedação ao retrocesso, norma impeditiva de retroação de direitos, ou melhor, de involução normativa. Essa tem sido a grande discussão sobre o drama de onipotência do Poder Constituinte, que não é mais tão ilimitado, incondicionado e livre, quanto se pensava.

2.1. Competência para fiscalizar ato infra legal do Executivo regulador frontal do Texto Constitucional

            Eis que introduzo nova questão. Se o parâmetro normativo direto e frontal for a Constituição Federal, não mais, uma Lei, teria o Supremo competência para apreciar a exorbitância de ato infra legal do Poder Executivo, em sede de controle abstrato, juntamente com o Congresso Nacional. Haveria prevalência de competências?

            Colaciono o art. 48, inciso V, da CF/88[v]:

(...) V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;(...)

            É possível, de logo, afastar a presente celeuma fazendo uma interpretação literal do Texto Normativo Maior, pela qual somente em situações em que a norma parâmetro seja a Lei é que caberia a atuação do Congresso Nacional. Em se tratando de norma parâmetro ser a Constituição, a atuação do Congresso Nacional estaria excluída, pois não se trata de delegação legislativa, mas da própria Constituição.

            Todavia, a situação não é tão simples assim, pois delegação legislativa não pode ser entendida como simplesmente a Lei, ato inferior à Constituição. A interpretação literal cede à sistemática e teleológica, pelas quais é inviável a compreensão da terminologia delegação legislativa, com sendo, apenas, decorrente de Lei subalterna à CF/88. Caso adote-se interpretação mais livre e desapegada da literalidade do texto, tratar-se-ia, de hipótese de aparentemente de embate constitucional de Poderes, no exercício do check and balances do Poder Executivo. Nesta senda, prossigo.

            Assim, admitindo-se que os Poderes Judiciário e Legislativo detivessem igual competência com mesma amplitude haveria, assim, competências “jurisdicionais”, esta empregada numa acepção dilatada, comuns e absolutas para apreciar a regularidade do exercício do poder regulamentar do Executivo.

            Pontuo que é manifestamente impossível dois órgãos com igual competência e poderes para apreciar determinada matéria, sem que se possa cogitar de normas de restrição temporal, circunstancial ou jurídica de competência, tal como a prevenção, pois fere o princípio da harmonia jurídica, pelo qual conferiu a cada órgão parcela de competência, para consecução de finalidade pública.

            Como já dito, tem o Congresso Nacional competência legislativa precípua para apreciar a exorbitância de ato do Poder Executivo, cujo parâmetro normativo é a Lei.

            Situação diversa, seria a contaminação com inconstitucionalidade de ato infra legal complementar à Constituição, ou seja, na hipótese aqui pensada, seria um indulto sendo contestado, por ser tachado de inconstitucional.

            O indulto, como dito, é ato infra legal diretamente complementar à Constituição, portanto, entre esta e aquele nada existe, podendo, assim, inovar na ordem jurídica, observada a pertinência temática estabelecida pela Constituição Federal. Não pode o indulto falar de direito comercial ou compra e venda. Deve abordar a temática da extinção da punibilidade.

            Nesse caso, surge-se aparente conflito de competências, pois caberia ao STF e ao Congresso Nacional apreciar a dita inconstitucionalidade. Aquele por existir permissivo expresso no Texto Magno, qual seja, conhecimento e julgamento de ADIN[vi], quando o ato afrontar diretamente à CF/88 e for desta diretamente complementar, sem interpolação normativa. Já o Poder Legislativo, também, teria competência, pois é sua prerrogativa inalienável apreciar atos que exorbitem da competência regulamentar conferida ao Poder Executivo, conforme prevê o Texto Maior.

            É cediço que cabe, tradicionalmente, ao Poder Legislativo elaborar normas e fiscalizar. Ao Poder Judiciário julgar, muito embora em situações especiais, o Poder Legislativo possa atuar como Corte de Justiça (impeachment do Presidente da República, a despeito de grande carga política deste julgamento, o que poderia retirar a força jurisdicional, já que, defende-se que julgamentos jurisdicionais, propriamente ditos, não devem ser políticos, mas estritamente jurídicos, tese esta incompatível com os atuais tempos de perfeita simbiose e entrelaçamento de matérias) e o Supremo Tribunal Federal pode normatizar, inclusive, com inovação na ordem jurídica, ainda que os atos tenham abrangência restrita (regimentos internos, resoluções).

            O STF e Congresso Nacional são órgãos de cúpula, em suas respectivas áreas, na estrutura federativa, não havendo superposição ou critério de prevalência, a priori.

            Nesse caso, deve-se fazer uma interpretação conciliadora, tendo em vista o encaminhamento constitucional vigente, como forma de assegurar a sistemática jurídica prevista pela CF/88. Nesse toar, é de se admitir a competência soberana da Corte Suprema de Justiça, por ser a guardiã do Texto Magno, tendo o controle de constitucionalidade de atos normativos.

            Essa conclusão tem em vista o caráter finalístico e funcional dos Órgãos em questão. A razão de ser do STF é dizer o direito, sob o prisma da Constituição, pois detém o monopólio da jurisdição constitucional.

            O Congresso Nacional, a teor da atual conformidade normativa vigente, não detém esse monopólio. Isso não importa em dizer que não pode exercer juízo de constitucionalidade, pois o faz, por meio de suas comissões legislativas, mas estes juízos são a priori, salvo hipóteses de medidas provisórias e leis delegadas[vii].

            Sendo o Poder Legislativo Federal, o primeiro a conhecer da matéria, havendo posterior provocação no STF, caberá àquele extinguir o feito, por ser o STF, aquele que compete dizer a última palavra sobre a constitucionalidade.

              No entanto, inexistindo provocação judicial, apenas do Poder Legislativo, o julgamento do ato seguirá perante as Casas legislativas. Após o julgamento realizado perante o Congresso Nacional, caberia recurso ao STF. Defendo que a possibilidade.

            Digo recurso, sem prazo para interposição, pois eventual inconstitucionalidade nunca se sanaria, em que pese o princípio da segurança jurídica, o que atrairia a aplicação analógica do previsto, em relação à medida provisória, no caso de sua rejeição, isto é, a aprovação de resolução para reger os atos praticados, durante a produção de efeitos, entre a decisão do Poder Legislativo e a decisão do STF, que reformou o pronunciamento legislativo, sem prejuízo dos prejudicados buscarem eventuais direitos individuais, sempre observando a diretriz estabelecida pela decisão vinculante e erga omnes do STF, que analisou a regularidade do poder regulamentar do Executivo, mediante esse recurso constitucional, por mim, assim chamado.

            Especificidade é que o STF se transmudaria em instância recursal, admitindo-se que esse recurso tenha livre fundamentação e a mesma finalidade que se buscaria com a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, no controle abstrato.

            Esse pensamento é arrojado, mas decorre de interpretação sistemática, com o fito de efetivar a competência de ambos os Poderes, que não pode ser esvaziada, como mandamento do livre exercício harmônico destes. Nesse caso, superlativar a competência do STF, em detrimento da competência normativa e fiscalizatória do Congresso Nacional consistiria em admitir que haveria superposição de Poderes, mesmo quando a Constituição conferiu-lhes harmonia.

            Tradicionalmente, dir-se-ia que a competência do pronunciamento do Congresso tem natureza de ato administrativo, incapaz de se sobrepujar à decisão oriunda do STF, quanto à mesma matéria, cabendo a propositura da ADIN diretamente do ato dito viciado, em manifesta revelia ao procedimento ocorrido perante o Congresso. Tenho que esse pensamento não se impõe, nesse âmbito, pois se trata de competência exclusiva do Congresso, da qual não pode dela se furtar. Ademais, lançar no mar do esquecimento o procedimento deflagrado nas Casas Legislativas violaria a harmonia de Poderes, da qual decorre respeito mútuo e ao princípio da efetividade e tempestividade da atuação estatal que impõe, maiores rendimentos com menores custos. Não se admite deflagrar todo um procedimento perante o Congresso, ante a inação dos legitimados para propositura da ADIN, e, tão somente, após o término, estes se manifestarem pela inconstitucionalidade do ato, com total ignorância ao rito ocorrido no Poder Legislativo.

            Por fim, sendo o ato infra legal regulamentador de Tratado Internacional de direitos Humanos, equiparado à emenda constitucional, por força do procedimento legislativo de sua incorporação, o raciocino acima exposto se aplica. Nesse caso, é um bloco de constitucionalidade fora do Texto Magno, com natureza jurídica equiparada às Emendas Constitucionais. Todavia, se se tratar de tratados de direito humano, que não tenham sido incorporados, segundo o rito dificultoso de aprovação de Emendas Constitucionais, passariam a ter natureza jurídica de ato supralegal, sendo típico caso de crises de legalidade.

            Gize-se que o Poder Legiferante Federal poderá elaborar lei, no mesmo sentido do indulto guerreado perante o STF, uma vez que, a decisão judicial não pode impedir o exercício das funções do Poder Legiferante. Nesse caso, o STF poderia, caso julgue inconstitucional o indulto, por arrastamento, declarar, também, a inconstitucionalidade da Lei, após o devido aditamento da petição inicial, ou, do recurso.

            No entanto, caso o Congresso crie uma Lei que vise regulamentar a expedição de indultos, isto é, estabelecer os parâmetros deste. Nessa hipótese, o Poder Executivo poderia contestar essa Lei, por violar a competência regulamentar que foi conferida pelo CF/88. Caso esta Lei seja julgada constitucional, então mudar-se-ia todo o panorama, pois seria situação de crises de legalidade, pois o parâmetro seria não mais a Constituição Federal, mas a “Lei dos Indultos”.

            Inexistem superpoderes, ou seja, a nenhum Poder é dado o exercício de faculdades e poderes absolutos, os quais devem ser exercidos no quadrante constitucional e infraconstitucional, sob pena de se caracterizar abuso de poder, ou seu exercício arbitrário, sujeitos a serem revistos judicialmente. Agora, é de se indagar, a quem caberia o controle da atuação, dita exorbitante ou abusiva, normativa do STF. De logo, afasto o CNJ, o qual não detém competência jurisdicional, insuscetível de atuação sobre a Corte Maior, ainda que seja na esfera administrativa. Todavia, essa temática é bastante palpitante e demandaria um artigo, ou quiçá, um livro específico, o que farei oportunamente. Mas, desde já, deixo indagação nas mentes de Vossas Excelências.

3. Decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013

            Passo, agora, a abordar as alterações introduzidas pelo decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013, quanto à pena de multa.

            Nesse diapasão, dispõe o art. 1º, inciso X, do Decreto nº 8.172, de 24 de dezembro de 2013, in verbis:

X - condenadas a pena de multa, ainda que não quitada, independentemente da fase executória ou juízo em que se encontre, aplicada cumulativamente com pena privativa de liberdade cumprida até 25 de dezembro de 2013, desde que não supere o valor mínimo para inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, estabelecido em ato do Ministro de Estado da Fazenda, e que não tenha capacidade econômica de quitá-la;

 Nesse foco, há casos em que, a despeito da extinção da pena privativa, remanesce a pena de multa imposta cumulativamente com aquela. Assim, o apenado é instado a pagá-la, cujo inadimplemento resulta no encaminhamento desta ao Fisco, seguindo, a partir daí, as regras da execução fiscal. Exaure-se, portanto, a jurisdição da execução penal, sem prejuízo deste juízo analisar a prescrição ou hipossuficiência do apenado, como forma de extinguir a pena e evitar o encaminhamento à execução fiscal. O inadimplemento da pena de multa cumulativa não pode importar na sua conversão em pena privativa, tampouco impede a extinção da punibilidade. Nesse sentido, é o precedente[viii] do STJ:

“(...)    A jurisprudência desta Corte de Justiça firmou compreensão de que, transitada em julgada a condenação, a pena pecuniária se converte em dívida de valor, devendo ser cobrada por meio de execução fiscal, pela Fazenda Pública, nos casos de inadimplemento.

2.         Cumprida a pena privativa de liberdade, correta a decisão agravada em declarar a extinção da punibilidade do réu, independentemente do adimplemento da pena de multa (...)”.

            Nesse enfoque, a hipótese extintiva de punibilidade incide sobre as pessoas condenadas a pena de multa, ainda que não quitada, independentemente da fase executória ou juízo em que se encontre, aplicada cumulativamente com pena privativa de liberdade cumprida até 25 de dezembro de 2013, desde que não supere o valor mínimo para inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, estabelecido em ato do Ministro de Estado da Fazenda, e que não tenha capacidade econômica de quitá-la. Vejamos o referido ato normativo:

“ Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012[ix]

(...) Art. 1º Determinar:

I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais)e;

II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

§ 1º Os limites estabelecidos no caput não se aplicam quando se tratar de débitos decorrentes de aplicação de multa criminal ...”.

            A teor do art. 1º, parágrafo 1º, da Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012, o valor mínimo atinente à inscrição da Dívida Ativa da União não se aplica às multas criminais.

            Surge-se daí interessante problemática, isto é, a aplicação de indulto, em relação às multas criminais, quando a norma remetida, de forma expressa, nega sua aplicação nesses casos.

3.1. Inaplicabilidade de cláusula de limitativa para incidência do indulto de multa

            Passo analisar a situação, como mais vagar.

            Como conciliar disposições antagônicas, sobretudo na seara penal, onde vige o primado da inocência e a dúvida é sempre sopesada em favor do acusado.

            Assim, por óbvio, sob pena de se fazer do indulto letra morta e consagrar a odiosa e proscrita interpretação em prejuízo do apendo, in malam partem, conclui-se que o indulto natalino de multa, ao condicionar a concessão da benesse ao preenchimento de requisitos constantes em ato normativo infra legal e este, por sua vez, expressamente, ao excluir a multa criminal, de seu âmbito de incidência, torna-se forçoso reconhecer que não há limites para concessão da benesse, em se tratando de multas criminais, por ser este um entendimento que se amolda à interpretação in bonam partem, que veda a adoção de juízos, em desfavor do apenado, na hipótese de dúvidas objetivas.

            O que se vê, no caso em tela, é que o indulto, ao tentar impor um teto para a concessão da benesse fiscal, terminou mesmo por derrubar todas as barreiras dessa proibição, uma vez que, a vedação de aplicação do benefício fiscal constante da norma remetida, não pode ser tido por inexorável, ao ponto de, impedir a aplicação do indulto de 2013, sobretudo, quando se vislumbra a presente questão, sob uma ótica teleológica e sistêmica.

            Digo isto, pois a razão do indulto é extinguir a pena daqueles que se enquadrem em suas disposições é um perdão do Rei.

             A situação vertida é bem complexa, pois a norma referida (Portaria do Ministro da Fazenda) expressamente veda a aplicação da benesse fiscal às multas criminais.

            Nesse caso, ou se nega totalmente a incidência do indulto, algo inconcebível, sobretudo, quando se tem em vista a hierarquia normativa, qual seja, o indulto sobrepõe-se à uma Portaria, editada esta, por um auxiliar do “Rei”, o que torna claro que não pode obstar norma superior de produzir seus efeitos. Ademais, o indulto é norma complementar direta da CF/88, tendo possibilidade plena de inovar na ordem jurídica. Exemplificativamente, não pode um Decreto contrariar a Lei que visa regulamentar, a função daquele, nas hipóteses legais, é minudenciar, jamais inovar na ordem jurídica.

            Trata-se de típico caso de crises de legalidade, em que se deve afastar a norma inferior, por inobservar preceito de norma superior, ou por contradizê-lo. Não é demais ressaltar que uma norma de hierarquia superior não pode revogar norma inferior, pois há âmbitos de incidências diversos. A norma inferior, no caso, seria norma regulamentar, pois foi criada previamente à situação e, não para regular situações criminais, tanto é que, expressamente, retirou sua incidência dos feitos criminais não podendo, dessa forma, contradizer a norma superior, tampouco ser aplicada a casos penais, por faltar pertinência temática.

            Dito isto, torna-se claro que não se pode negar o direito ao apenado, pois este foi assegurado, por norma de cunho superior. Igualmente, a concessão do benefício não pode estar limitada a um teto, pois a Portaria não prevê sua aplicação às multas criminais.        Discute-se aqui, também, a possibilidade de um indulto ser complementado por outra norma, como se norma penal em branco fosse. Sabe-se que a norma penal em branco é uma forma do direito de acompanhar as constantes mudanças da vida. Em que pese as críticas contra esse estilo normativo, por violação da legalidade, taxativamente e reserva legal, tal estilo normativo tem sido aceito pelas Cortes Superiores.

A norma penal em branco é aquela em que seu conteúdo, ou essência, qual seja, parte do seu preceito primário é oco e vazio sendo complementado por outra norma, oriunda da mesma fonte normativa ou de diversa. Explico. A norma prevê que determinada conduta é criminosa, porém, as características desta conduta estão previstas em outra norma. Acontece que a elaboração de normas penais é de competência normativa da União, por meio do Congresso Nacional. O Poder Executivo não detém a competência de elaborar norma penal stricto sensu.

Todavia, o indulto é norma penal, por tratar de extinção de punibilidade, excepcionalmente elaborada pelo Poder Executivo, conforme franquia Constitucional.

Por sua vez, o “Decreto perdoador” não poderia fazer remissão a outra norma infra legal para que esta completasse seu conteúdo, pois, apenas lei em sentido estrito, isto é, aquelas elaboradas pelo Poder Legislativo poderiam ter seu conteúdo complementado por outras normas. Ademais, essa remissão não poderia agravar a situação do apenado, por violação clara do princípio da legalidade e burla ao mandamento constitucional.

A normas penais por dizerem respeito ao direito de locomoção dos indivíduos devem obedecer a legalidade estrita. Assim, nem mesmo o Poder Legislativo pode elaborar norma penal, mediante ato infra legal, com dispositivos sem complementação, remetendo o aplicador a normas infra legais, para fins de colmatação, em clara infração ao princípio da legalidade (taxatividade, certeza e clareza).

 É cristalino que o Executivo não pode agravar a situação do apenado, tampouco, pode estabelecer requisitos para extinção da pena, com remissão a ato normativo infra legal, que havia sido elaborado para regulamentar outro normativo, pois seria uma verdadeira teratologia jurídica. A Portaria do Ministro da Fazenda é ato de caráter eminentemente tributário, atrelado finalísticamente às normas legais tributárias, não suscetíveis de serem empregadas na seara penal, por falta de pertinência temática.

            Esta norma regulamentar não possui pertinência temática com o indulto que visa regular, devendo ser afastada aplicando-se, assim, o indulto, sem qualquer remissão a esta norma, e, portanto, limites pecuniários. As normas regulamentares de lei material penal devem guardar pertinência temática, se é que é possível admissão dessas. Assim como o indulto não pode versar sobre matéria indenizatória, é inviável norma regulamentar de leis tributárias ser aplicada para regulamentar lei penal, a qual demanda norma específica, em obséquio ao princípio da legalidade.

Ademais, ainda conforme a Portaria, acima citada, há uma distinção entre valor para inscrição e valor para execução. Ocorre que este pressupõe o primeiro. Ou seja, é inviável a execução fiscal, mesmo havendo valor inscrito, se for inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Dessa forma, o juízo da execução penal, ao analisar a multa imposta deve verificar se esta excede o montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), pois se for inferior seria inútil a remessa da multa à esfera da Fazenda Pública, pois esta não seria executada, devendo a decisão amoldar-se à razoabilidade, efetividade e praticidade da atuação jurisdicional.

 4.Conclusão

            Desse modo, quando o Judiciário atua como legislador positivo viola o princípio da separação de Poderes que assegura o monopólio da produção normativa ao Legislativo.

             Não é dado ao juiz elaborar a norma e aplicá-la, como bem entende adequado, pois termina por violar o equilíbrio entre os Poderes. Não pode o magistrado dizer que aplica o indulto, mas limitado a um teto, quando este limite máximo está fixado para dívidas de natureza não criminal, não podendo servir de parâmetro às multas criminais.

             Outra questão bastante relevante é a competência de juízo estadual para apreciar questão que envolve ato normativo Federal. Ao analisar a legalidade ou constitucionalidade de portaria federal este juízo estaria usurpando competência de outro órgão judicial, pois envolveria interesse direto da União, dívida ativa da União, caso a multa seja destinada ao Fundo Nacional Penitenciário.

             Dessa forma, por todo o exposto, não há outra solução, senão a aplicação do indulto, sem levar em consideração qualquer redutor, de forma a consagrar a interpretação sistemática e teleológica que rechaçam quaisquer entendimentos violadores dos princípios da razoabilidade, isonomia material e ressocialização.

            A dúvida normativa ou eventual atecnia do legislador não podem ser consideradas, em prejuízo do apenado, que nada contribuiu para a confusão normativa. Este, na verdade, está sendo cerceado em gozar de um direito que lhe fora concedido pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional, sendo um odioso bis in idem, pois está sendo duplamente punido.

            Portanto, é de se esposar que na dúvida, indulta-se, pois noutro sentido, deve-se, desde já, decretar a falência do referido inciso, pois este é manifestamente inaplicável,

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Sobre o autor
Bruno Joviniano de Santana Silva

Defensor Público. Ex Advogado da Petrobrás. Ex Analista Judiciário do TJDFT. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp.

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Mais informações

O presente artigo visa suscitar reflexões sobre a competência regulamentar do Poder executivo e questões introduzidas sobre o Decreto natalino de 2013.

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