O cenário legislativo atual tem suscitado o debate sobre os limites da interpretação do regimento interno das Casas legislativas e a possibilidade de controle judicial sobre o processo legislativo como um todo. Isso porque, em mais de uma oportunidade, matérias rejeitadas (PECs 171/93 e 182/2007) em uma sessão legislativa foram reexaminadas por meio de emenda aglutinativa (fenômeno que vem sendo denominado de “pedaladas regimentais”).
Nessa conjuntura, a tendência é a judicialização da questão, o que reacende o debate sobre os limites do controle jurisdicional sobre o processo legislativo, razão pela qual, no presente estudo, revisitar-se-á a matéria à luz do princípio do devido processo legal e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Para tanto, inicialmente será realizada uma pequena digressão sobre algumas noções conceituais inerentes ao princípio do devido processo legal, para ao final abordar a problemática objeto deste ensaio.
“O processo legislativo é ato complexo, na medida em que o seu produto final, que tem na Lei o seu principal instrumento, depende do desencadeamento de uma sucessão de atos, a exemplo da submissão do projeto à Comissão de Constituição e Justiça, órgão responsável pelo controle preventivo de constitucionalidade da matéria, bem como às demais Comissões Temáticas, culminando com sua aprovação pelo Plenário do Poder Legislativo respectivo e sanção pelo Chefe do Poder Executivo”[1].
Como todo processo, deve obediência ao princípio do devido processo legal, tanto em sua vertente formal quanto material. Sob o enfoque formal, o princípio do devido processo legal exige que sejam observadas, na tramitação dos processos (administrativos, judiciais ou legislativos), as garantias processuais que lhe são inerentes, a exemplo do contraditório, do juiz natural, da duração razoável, dentre outros.
No âmbito do processo legislativo, o princípio indica que, ao inovar a ordem jurídica, o legislador deve obediência às regras e princípios essenciais para legitimar a criação de uma nova espécie normativa. Assim, constitui o processo legislativo em um conjunto de fases (iniciativa, discussão, votação, sanção, promulgação e publicação) cuja observância é imprescindível para a válida criação da lei ou de outras espécies normativas. Noutras palavras, devido processo legislativo formal é o iter ou caminho para a confecção da lei, legitimando a inovação da ordem jurídica.
De outro lado, o devido processo legal material ou substancial é a fonte do princípio da razoabilidade, de modo que o juiz, o administrador e o legislador devem obedecer, na sua atuação, a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso das pessoas de prudência mediana.
Nesse cenário, assinala Fredie Didier Jr. que “[…] um processo devido não é apenas aquele em que se observam exigências formais: devido é o processo que gera decisões jurídicas substancialmente devidas […]”, acrescentando que “considerar o devido processo legal como fundamento dos deveres de proporcionalidade ou razoabilidade não significa dizer que esses deveres apenas se aplicam ao âmbito processual jurisdicional. Como já se disse, o devido processo legal é princípio que se aplica em qualquer produção normativa, inclusive no processo de produção dos negócios jurídicos, como será visto adiante.”[2].
Logo, até mesmo o processo legislativo deve observar o princípio do devido processo legal substancial, sob pena de macular a lei criada com a pecha de inconstitucionalidade material. Nesse contexto, o devido processo legislativo material ou substancial diz respeito à compatibilidade da lei ou ato normativo em relação ao texto constitucional e os seus princípios norteadores, sobretudo os da razoabilidade e da proporcionalidade. Vale dizer, cuida-se da adequação do conteúdo da espécie normativa às normas e princípios constitucionais que informam o sistema jurídico como um todo.
A propósito, Nelson Nery Junior ressalta que “a origem do substantive due process teve lugar justamente com o exame da questão dos limites do poder governamental, submetida à apreciação da Suprema Corte norte-americana no final do século XVIII. Decorre daí a imperatividade de o Legislativo produzir leis que satisfaçam o interesse público, traduzindo-se essa tarefa no princípio da razoabilidade das leis. Toda lei que não for razoável, isto é, que não seja a law of the land, é contrária ao direito e deve ser controlada pelo Poder Judiciário.”[3].
No mesmo sentido, o Min. Celso de Mello, em decisão proferida nos autos do RE 374.981/RS, j. 28.03.2005, salientou:
Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.): "O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV).Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador."(RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados
Portanto, a inobservância do devido processo legal, seja em sua vertente formal ou material, acarreta a inconstitucionalidade da norma produzida. No entanto, a questão que se coloca diz respeito a legitimidade do Poder Judiciário realizar controle preventivo de constitucionalidade para trancar o andamento de processo legislativo maculado por vício de procedimento decorrente da violação de normas constitucionais.
Sabe-se que o Regimento Interno das Casas Legislativas delimita o procedimento adequado para que seja possível ao Poder Legislativo realizar a sua função típica, que é a produção de normas jurídicas gerais e abstratas. Tal regramento normativo, obviamente, deve obediência à Constituição Federal, sem a qual não é possível o desempenho a contento da função legislativa.
Vale lembrar, nesse contexto, que a jurisprudência do STF assegura ao parlamentar (e somente a ele) a legitimidade para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com as disposições da Constituição Federal que disciplinam o processo legislativo.[4] Sobre o tema, elucidativa a seguinte passagem constante da ementa do MS 32.033/DF.
Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não.[5].
Logo, excepcionalmente é possível o controle jurisdicional de constitucionalidade formal de proposituras legislativas por meio de mandado de segurança, desde que o objeto da impetração seja a correção de vícios formais no processo legislativo, decorrentes da inobservância das regras constitucionais aplicáveis à espécie (violação ao devido processo legislativo formal). Entretanto, é inviável o controle jurisdicional quando se pretender com a impetração do mandamus a interpretação incidente de normas de cunho meramente regimentais, por se tratar de típica matéria interna corporis[6].
Por conseguinte, as propostas legislativas atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados poderão ser objeto de controle jurisdicional desde que demonstrado que o procedimento adotado pela Presidência daquela Casa de Leis fere diretamente disposição constitucional; caso contrário, eventuais mandados de segurança sequer serão conhecidos por impugnar matérias interna corporis, insuscetíveis de controle jurisdicional.
Notas
[1] MANUCCI, Renato Pessoa. O novo CPC e os limites à revisão das proposituras legislativas. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4328, 8 maio 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/38793>. Acesso em: 11 maio 2015.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01: Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 16ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 50 e 53.
[3] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 83.
[4] STF, MS 20.257/DF, Pleno, rel. Min. Décio Miranda, j. 08.10.1980, DJ 27.02.1981, p. 1304; MS 24.667-AgR/DF, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j. 04.12.2003, DJ 23.04.2004.
[5] STF, MS 32.033/DF, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki, j. 20.06.2013.
[6] STF, MS 20.509/DF, Pleno, rel. Min. Octávio Gallotti, j. 16.10.1985, DJ 14.11.1985; MS 23.920-MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, j. 28.03.2001, DJ 03.04.2001; MS 25.579-MC/DF, rel. p/ acórdão Min. Joaquim Barbosa, j. 19.10.2005, DJ 24.08.2007.