O dever estatal de fornecer medicamento e os requisitos para sua concessão na via judicial

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O presente artigo, partindo de uma hermenêutica tópica e concretista, propõe requisitos para que sejam concedidas tutelas jurisdicionais para fornecimento de medicamento não disponibilizado pelo SUS.

1. INTRODUÇÃO – PANORAMA ATUAL E RELEVÂNCIA DO TEMA

Nos últimos anos viu-se um exponencial crescimento do número de ações judiciais propostas com o objetivo de obter tutela jurisdicional que determine ao Poder Público o fornecimento de medicamento não disponibilizado ordinariamente pelo Sistema Único de Saúde – SUS.

Na verdade, a litigiosidade social envolvendo a temática do direito à saúde[1] vai muito além, abrangendo também pedidos para o custeio da realização, por unidades hospitalares privadas, de procedimento cirúrgico não coberto pelo mesmo sistema; a realização de tratamentos alternativos ou experimentais que se pretendem inovadores e milagrosos; o envio de pacientes ao exterior para serem submetidos às mais avançadas técnicas médicas desenvolvidas por universidades e centros de pesquisa estrangeiros; a quebra da ordem na fila para o recebimento de órgãos doados a serem transplantados; dentre outros inúmeros casos, os quais – seja pela multiplicidade e diversidade das enfermidades que infelizmente acometem o ser humano[2], seja pela rapidez com que avança a ciência médica, com o constante lançamento pela indústria farmacêutica de novos tratamentos, fármacos e congêneres – são praticamente impossível de serem listados exaustivamente. De todo modo, no presente trabalho, focaremos nossa investigação nos pleitos de fornecimento de medicamentos e congêneres, sem perder de vista, contudo, os aspectos gerais do fenômeno da Judicialização das Políticas Públicas de Saúde.

Pois bem, para se ter uma ideia do dimensionamento que a questão tomou, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, somente no ano de 2010 foram ajuizadas aproximadamente 200 mil ações do gênero em todo o território nacional[3]. No âmbito da Justiça Federal, conforme apontou estudo da Advocacia-Geral da União – Consultoria Jurídica/Ministério da Saúde, apenas contra a União foram propostos, no ano de 2011, 12.436 (doze mil, quatrocentas e trinta e seis) processos judiciais postulando o fornecimento de medicamentos, um aumento de quase 20% se comparado com os números de processos iniciados em 2009, quando foram protocoladas 10.486 (dez mil, quatrocentos e oitenta e seis) novas ações[4].

Essa verdadeira avalanche de processos representou, como não poderia deixar de ser, um crescente aumento dos gastos estatais com a aquisição dos fármacos e congêneres solicitados na via judicial. Ainda de acordo com fontes da Advocacia-Geral da União, o Ministério da Saúde despendeu com a aquisição de medicamentos, equipamentos e insumos concedidos por decisões judiciais – provisórias ou definitivas – pouco mais de 170 mil reais no ano de 2003, contudo no ano de 2007 esse gasto já ultrapassava a marca de 17 milhões de reais e, no ano de 2011, chegava a quase 250 milhões[5].

Esse vertiginoso crescimento das demandas judiciais relacionadas ao serviço público de assistência à saúde, acompanhado da inevitável repercussão financeira nos cofres do Estado, chamou a atenção não só da Academia – com destaque para os estudiosos da Análise Econômica do Direito[6] – como também dos gestores públicos e dos próprios órgãos do Poder Judiciário responsáveis pela uniformização da interpretação constitucional e pelo controle de sua atuação administrativa e financeira, respectivamente o Supremo Tribunal Federal (art. 102, CF/88) e o Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, § 4º, CF/88), preocupados que ficaram com os problemas que a massificação desse tipo de lide poderia gerar, em uma típica postura gerencial de administração judiciária, pautada em um planejamento estratégico de enfrentamento de desafios organizacionais emergentes[7].

De fato, diante de Pedidos de Suspensão pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal – circunstância que não deixa de denotar a medida como efeito sintomático da súbita importância que ganhou o tema no cenário jurídico nacional –, aquela Corte Superior, por iniciativa de seu então Ministro Presidente Gilmar Mendes, convocou a Audiência Pública nº 4, com o objetivo de esclarecer questões técnicas, científicas, administrativas, políticas e econômicas envolvidas nas decisões judiciais sobre o direito à saúde. Na referida Audiência, que transcorreu entre os meses de abril e maio de 2009, ouviu-se aproximadamente 50 especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores, procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do Sistema Único de Saúde[8].

A relevância desse descrito movimento de Judicialização da Política Pública de Saúde foi reconhecida e enfatizada pelo próprio Ministro Presidente da Suprema Corte Brasileira quando da abertura da mencionada Audiência Pública. Nas palavras do Min. Gilmar Mendes, “o fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo.”[9] De fato, a interdisciplinaridade está sempre presente na atuação do magistrado responsável pela resolução de lide envolvendo o referido tema, vez que além da análise do manancial normativo regulador da matéria, aqui incluídos os preceitos constitucionais pertinentes[10], também necessita o julgador de conhecimentos de medicina aplicada e farmacologia – os quais são fornecidos, via de regra, por peritos e outros órgãos auxiliares da Justiça –, além de dados sociológicos sobre o perfil socioeconômico e cultural da figura do demandante.

Ainda como nota introdutória, registre-se desde já que, no tocante ao aspecto jurídico do conflito de interesses causador das demandas judiciais em análise, a importância do tema posto reside não propriamente no questionamento acerca da existência abstrata do direito invocado, que se sabe presente em nosso Texto Constitucional (art. 6º, caput, e art. 196, caput, CF/88), mas antes na tensão gerada entre esse direito, enquanto potencialidade normativa, e o contexto fático-jurídico[11] circundante quando de sua invocação, verificada por ocasião de cada resolução concreta das querelas posta a desate, o que reflete na intensidade da carga eficacial a ser dada àquele direito pelo órgão aplicador.

Presente esse contexto fático-jurídico-institucional e ciente das múltiplas peculiaridades que gravitam em torno dos pleitos judiciais envolvendo o direito fundamental à saúde, notadamente em razão da reconhecida limitação financeira do Estado, tentar-se-á por meio deste singelo artigo – respeitadas as limitações inerentes ao seu formato e brevidade – fixar critérios, os mais objetivos possíveis, que se possam utilizar no julgamento de tais querelas. Para tanto, primeiramente, abordar-se-á a questão da legitimidade passiva ad causam nos processos dessa natureza, ponto relevante da problemática, dada a insistente tentativa dos entes federados de esquivarem-se da responsabilidade pela prestação requestada, imputando-a uns aos outros. Em seguida, tratar-se-á do tema relativo à efetividade dos direitos fundamentais, em especial daqueles denominados prestacionais ou de segunda geração, no que incluído o direito à saúde. Após, imbricar-se-á na complexa e instigante temática da “força normativa do fato”, relacionando-a com o atual cenário em que a satisfação do constitucional direito à saúde encontra resistência na carência de recursos estatais. Por fim, sem temer o desafio e tomando o cuidado para não sermos simplistas, propor-se-á requisitos para o reconhecimento do direito à prestação vindicada judicialmente, a fim de determinar se o demandante possui ou não direito ao fármaco solicitado. Com as conclusões propostas, espera-se poder contribuir de alguma forma para o estudo acadêmico de tão relevante tema e, também, para a solução prática das lides com ele relacionadas.

2. O DEVER DE FORNECER MEDICAMENTO DIANTE DA ESTRUTURA FEDERATIVA DE ESTADO

A primeira questão que se coloca quando se analisa as ações judiciais que buscam a declaração do direito ao recebimento de medicamento não disponibilizado ordinariamente pelo SUS é saber sobre qual das esferas federativas há de recair a responsabilidade financeira pela aquisição do fármaco solicitado. O questionamento surge, pois nossa ordem constitucional assevera ser o Brasil um Estado Federal, formado pela união indissolúvel dos Estados Membros, Municípios e Distrito Federal (art. 1º, CF/88). Seguindo essa lógica estrutural, nossa Lei Fundamental, em seu art. 18, também estipula que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição.

Dizer que o nosso país adota uma forma federativa de Estado significa afirmar que seu poder de governo interno – o equivalente da soberania no plano exterior –, originário do povo e exercido em nome deste (art. 1º, parágrafo único), é dividido entre entidades estatais menores e autônomas entre si, no nosso caso, União, Estados, Distrito Federal e Municípios. É importante aqui perceber ser consequência direita e inevitável dessa divisão interna de poder a correspondente repartição, entre aquelas mesmas entidades, de atribuições administrativas, para além das de natureza legislativa. Ou seja, na exata medida em que se parcela o poder estatal, a princípio unitário, entre as distintas figuras federativas, repartem-se igualmente entre estas as competências para a execução de atos materiais tendentes à consecução dos fins próprios do Estado. É nesse sentido a lição do professor JOSÉ AFONSO DA SILVA. In litteris:

Quando se fala em federalismo, em Direito Constitucional, quer-se referir a uma forma de Estado, denominada federação ou Estado federal, caracterizada pela união de coletividades públicas dotadas de autonomia político-constitucional, autonomia federativa. (...) A autonomia federativa assenta-se em dois elementos básicos: (a) na existência de órgãos governamentais próprios, isto é, que não dependam dos órgãos federais quanto à forma de seleção e investidura; (b) na posse de competências exclusivas, um mínimo, ao menos, que não seja ridiculamente reduzido. Esses pressupostos da autonomia federativa estão configurados na Constituição (arts. 18 e 42). A repartição de competências entre a União e os Estados-membros constitui o fulcro do Estado Federal, e dá origem a uma estrutura estatal complexa, que apresenta, a um tempo, aspectos unitário e federativo.”[12]

Entra-se, então, na questão de saber sobre a competência para prestação dos serviços públicos de saúde, a qual abrange, dentre outros, o dever de fornecer medicamentos aos que dele necessitem, foco de nossa investigação. O ponto é relevante para o objeto de nosso estudo, pois é do reconhecimento dessa competência material que surge, como consectário lógico no plano jurídico-processual, a legitimidade passiva para as ações judiciais postulantes de medicação.

Pois bem, nos termos dos arts. 6º e 196, caput, da Constituição Federal de 1988, a saúde, ao mesmo tempo em que constitui um direito fundamental garantido a todos, assume a feição de dever irrenunciável do Estado, o qual deve ser satisfeito mediante a execução de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. E quando se diz que a garantia da saúde é dever do Estado, deve-se tomar este termo em sua acepção genérica, ou seja, como Poder Estatal latu sensu, englobando ao mesmo tempo, assim, a União, os Estados Federados e os Municípios. Nesse sentido, aliás, estabelece expressamente o art. 23, II, da Carta da República ser de competência comum de todas essas entidades federativas “cuidar da saúde” da população.

Em nível infraconstitucional, a Lei nº 8.080/90, seguindo os parâmetros traçados pela Constituição, estipula em seu art. 2º ser a saúde um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. O caráter cooperativo da atuação das distintas esferas da Federação na prestação dos serviços públicos voltados à promoção e recuperação da saúde é reforçado pelo art. 4º da citada lei, o qual dispõe que o conjunto de ações e serviços de saúde, a serem prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o chamado Sistema Único de Saúde –SUS, do qual a iniciativa privada pode participar em caráter complementar (§ 2º).

O art. 8º da mencionada lei, por sua vez, esclarece que ao SUS compete executar todas as ações e serviços de saúde, seja diretamente ou mediante participação complementar da iniciativa privada, serviços esses que devem ser organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente. Já o art. 9º, observando o arquétipo traçado pelo art. 198 da Carta Magna, estipula que a direção do sistema é única em cada esfera de governo, cabendo ao Ministério da Saúde no âmbito da União e às respectivas Secretarias de Saúde ou órgãos equivalentes no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Diante das disposições legais e constitucionais acima mencionadas, pode-se concluir como toda a segurança que a responsabilidade pelo fornecimento de medicamento não disponibilizado ordinariamente pelo SUS para quem dele necessite é solidária de todos os entes políticos integrantes da Federação, ou seja, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, observada apenas a pertinência geográfica das entidades menores em relação ao domicílio do doente. Deste modo, todos eles possuem legitimidade passiva disjuntiva ou alternativa para figurarem como réus nas referidas ações judiciais, o que significa dizer que ao autor cabe, como exclusividade, decidir se ingressa contra apenas um daqueles entes, contra dois deles ou contra todos.

Nesse exato sentido, já afirmou o Supremo Tribunal Federal que “o recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional.” (RE 607381 AgR/SC, 1ª Turma, Min. Rel. LUIZ FUX, DJe: 17/06/2011).

Segue o mesmo rumo o Superior Tribunal de Justiça, o qual já decidiu que “sendo o Sistema Único de Saúde (SUS) composto pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, impõe-se o reconhecimento da responsabilidade solidária dos aludidos entes federativos, de modo que qualquer um deles tem legitimidade para figurar no pólo passivo das demandas que objetivam assegurar o acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros.” (AGA 886974, 2ª Turma, Min. Rel. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ: 29/10/2007).

Faz coro ainda o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, para quem “a responsabilidade da União, Estados e Municípios é solidária em demanda que se objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros, de modo que qualquer uma dessas entidades públicas tem legitimidade passiva ad causam para figurar no pólo passivo da ação.” (TRF-5. APELREEX 9233, 2ª Turma, Des. Rel. RUBENS DE MENDONÇA CANUTO, DJE: 07/07/2011).

Pela mesma razão acima apontada – a existência de solidariedade passiva ad causam disjuntiva de todos os entes federativos –, proposta a ação contra uma ou duas das pessoas jurídicas políticas, não é admitido o chamamento ao processo daquela ou daquelas que não foram incluídas pela parte autora com rés da demanda. É que, não obstante tratar-se de obrigação solidária, a solidariedade aqui diz respeito ao dever de dar coisa certa, ao passo que a aludida forma de intervenção de terceiro é admitida apenas em se tratando de obrigação de pagar quantia, não sendo possível conferir-lhe interpretação extensiva para abarcar aquele tipo de situação. São inúmeros os precedentes do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido (AgRg no Ag 1.243.450/SC, 1ª Turma, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe: 10.2.2012; AgRg no REsp 1.114.974/SC, 2ª Turma, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, DJe: 15.2.2012; REsp 1.150.283/SC, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe 16.2.2012).

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Vale ressaltar, por fim, que o reconhecimento da responsabilidade solidária dos três entes públicos e a consequente declaração de suas legitimidades para responderem a ações que objetivam o fornecimento de medicamentos não impede que, cumprida a determinação judicial, em um momento posterior as esferas federativas se compensem recíproca e proporcionalmente, caso a instauração da demanda tenha sido motivada pela indevida omissão de algum deles, segundo acertada distribuição interna de atribuições. Distribuição essa, insista-se, que não interfere na solidariedade de todos frente ao dever de prestar assistência ao doente.

3. A EFICÁCIA JURÍDICA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Como dito acima, o direito à saúde foi positivado por nossa Constituição (art. 196) e pela lei de regência (art. 2º da Lei nº 8.080/90) como direito fundamental cujo objeto é a prestação de serviços públicos – de acesso universal e igualitário – que visem sua promoção, proteção e recuperação, além da instituição de políticas sociais e econômicas tendentes à redução do risco de doença e de outros agravos. Cuida-se de um direito social – assim expressamente declarado pela Lei Maior (art. 6º, CF/88) – inserido pela doutrina na categoria dos chamados direitos fundamentais de 2ª geração[13], emergente que é da transição do Estado Liberal absenteísta, defensor da intervenção mínima do Poder Público na vida coletiva, para o Estado Social ou Provedor, o qual passa a assumir responsabilidades de caráter assistencial ou prestacional com o objetivo garantir uma qualidade de vida mínima à sua população.

Desta forma, temos que o mencionado direito fundamental pode ser classificado como direito a uma prestação[14], em contraposição aos direitos de proteção ou de defesa. É que, enquanto estes últimos – tidos como direitos fundamentais de 1ª geração – possuem uma feição essencialmente negativa, na medida em que estabelecem limites, contenções, restrições à atuação do Poder Público com a finalidade de preservar determinadas esferas jurídicas de interesses dos particulares, notadamente relacionadas ao valor “liberdade”, aqueles assumem uma conotação notoriamente positiva, já que o conteúdo do direito, aqui, é a prestação de um serviço ou a oferta de um bem pelo Estado ao particular, geralmente fundamentando-se no valor “igualdade”, tomado esse em seu aspecto material. Sobre o tema, trazemos os preciosos ensinamentos de INGO WOLFGANG SARLET:

Enquanto a função precípua dos direitos de defesa é a de limitar o poder estatal, os direitos sociais (como direitos a prestações) reclamam uma crescente posição ativa do Estado na esfera econômica e social. Diversamente dos direitos de defesa, mediante os quais se cuida de preservar e proteger determinada posição (conservação de uma situação existente), os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõe seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que objetivam a realização da igualdade material, no sentido de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais.[15]

Justamente em razão dessa natureza prestacional do direito à saúde, a exigir sempre uma atuação concreta por parte do Poder Público a fim de que aquele se torne efetivo, é que emerge o questionamento sobre o grau de sua eficácia jurídica[16]. Com efeito, não obstante o § 1º do art. 5º da Carta da República asseverar que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, com elevada frequência a Administração Pública, demandada judicialmente a fornecer um medicamento ou a custear na seara privada a realização de uma cirurgia, argumenta que os preceitos constitucionais que preveem o direito à saúde são veiculados por meio de normas-princípios, de caráter puramente programático, de forma que sua carga eficacial seria mínima, a depender sempre do teor de intervenções legislativas hierarquicamente inferiores e do contexto histórico-material em que inserida a lide, ao ponto de não se autorizar o acolhimento do pleito autoral com base apenas naquelas previsões constitucionais.

Ocorre não é bem assim. Na verdade, aderir inteiramente à tese da Fazenda Pública implicaria no esvaziamento normativo do próprio direito fundamental á saúde, o qual é emanação do direito à vida (art. 5º, caput, CF/88) - bem primordial pressuposto do gozo de todos os outros direitos – e que se relaciona diretamente com o hoje onipresente princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), já que não há vida digna sem saúde. Por outro lado, já está bastante consolidado na doutrina constitucionalista o reconhecimento da força normativa dos princípios, notadamente os de estatura constitucional, ante a inegável carga valorativa que veiculam, que, no mais das vezes, por sinal, é de intensidade muito superior que à inserida nas normas-regras.

É claro que, em se tratando da aplicabilidade dos princípios, é insuficiente o clássico método racional-dedutivo utilizado na incidência das normas jurídicas ordinárias, donde, dado um fato que se subsume na previsão legal, tem-se como certa conclusão ali determinada, cabendo aos órgãos estatais competentes apenas fazer com que aquela seja cumprida. Da mesma forma, não guarda pertinência com o sistema de aplicação principiológica, porque discrepante com sua natureza, a lógica do tudo ou nada, regedora da normatização por regras, segundo a qual ou a norma incide no caso e deve ser aplicada ou não incide e deve ser ignorada.

Cuidando-se de princípios constitucionais representativos de valores caros à sociedade em determinado tempo e lugar, sua aplicabilidade é condicionada, em certa medida, pela eventual contraposição de outro valor albergado pela Constituição, quando, então, deve-se sopesar a força concreta dos valores colidentes segundo o princípio da proporcionalidade, também chamado princípio da concordância prática, ou, ainda, pelas limitações emergentes da realidade dos fatos, de onde se extrai o fundamento da teoria da reserva do possível, a qual, dada a limitação inerente ao formato do presente trabalho, não será aqui analisada.

Por outro lado, também não se nega o caráter programático do preceito inserto no art. 196 da Lei Fundamental. Contudo, a feição normativa mais fluida, diluída e abrangente do dispositivo constitucional, dado seu formato de “programa a ser concretizado”, não deve ser entendida como significando uma promessa descompromissada do constituinte, mas sim como um mandado de otimização ou de maximização, na terminologia adotada por Alexy[17], no sentido de que cabe ao Estado, aqui novamente tomado em seu sentido latu, envidar todos os esforços e empregar todos os meios disponíveis para tornar concreta a regra-princípio constitucional – ainda que a concretização seja implementada aos poucos, progressivamente –, sob pena de tonar a Lei Magna vazia de significado jurídico prático.

Como já teve a oportunidade de assentar o Supremo Tribunal Federal, “o caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.” (RE 393175 AgR/RS, 2ª Turma, Min. Rel. CELSO DE MELLO, DJ: 02/02/2007).

O eventual descumprimento pelo Estado do dever constitucionalmente imposto de zelar, preservar e promover a saúde da população deve ser obstado pelo Judiciário quando assim provocado, cabendo a este assegurar a eficácia prática do direito fundamental que restou desatendido, inclusive, se for o caso, adotando medidas coercitivas contra os entes estatais omissos. Sobre o tema, valemo-nos mais uma vez da lição de INGO WOLFGANG SARLET:

Em face do dever de respeito e aplicação imediata dos direitos fundamentais em cada caso concreto, o Poder Judiciário encontra-se in vestido do poder-dever de aplicar imediatamente as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, assegurando-lhes sua plena eficácia. A falta de concretização não poderá, de tal sorte, constituir obstáculo à aplicação imediata pelos juízes e tribunais, na medida em que o Judiciário – por força do disposto no art. 5º, § 1º, da CF –, não apenas se encontra na obrigação de assegurar a plena eficácia dos direitos fundamentais, mas também autorizado a remover eventual lacuna oriunda da falta de concretização.[18]

Não se pode, portanto, negar eficácia jurídica ao direito fundamental à saúde, positivado que está em nossa Carta Constitucional, o qual há de ser assegurado e provido pelo Estado. Daí já se pode concluir pela possibilidade da veiculação de pretensões na via judicial por aqueles que julguem ter tal direito violado pelo Poder Público, já que inegável a condição subjetiva de credor (da correspondente prestação) que a Constituição outorga ao indivíduo. Ocorre que a norma – especialmente a de estatura constitucional – não reina só nos campos da normatividade, não vive ela dissociada dos fatos que regula. Não é ela pura e impassível diante da realidade, como já se defendeu um dia. Os fatos pulsantes da vida condicionam e moldam o feitio dos preceitos normativos, inclusive daqueles que veiculam direitos fundamentais. Nesta seara, há um recíproco influxo entre “norma” e “fato”, e esse fenômeno deve ser levado em conta pelo hermenêuta-aplicador na hora de determinar a extensão da eficácia jurídica de certo direito. Aprofundemos a temática.

4. A NECESSIDADE DA CONSTRUÇÃO DE UMA SOLUÇÃO TÓPICA E CONCRETISTA

Como se adiantou acima, a despeito da reconhecida eficácia normativa dos preceitos constitucionais, não se pode ignorar completamente a força limitadora da realidade fática e do restante da ordem jurídica estabelecida, que estão subjacentes à pretensão pelo gozo dos direitos deles decorrentes. É que estes dois elementos invariavelmente influenciam na determinação do sentido e do alcance normativo do preceptivo constitucional.

Para usarmos a nomenclatura proposta por Friedrich Müller, o processo estruturante de concretização dos preceitos constitucionais instituidores de direitos fundamentais pressupõe a conjugação de dois estágios normativos: o “programa da norma” (normprogramm), resultante da interpretação da disposição constitucional aplicanda – não ignorada aqui a influência exercida pela pré-compreensão do intérprete[19] –, e o “âmbito da norma” (normbereich), consistente na realidade fática regulada que se apresenta diante do magistrado-hermenêuta no momento de decidir[20]. Nestes termos, segundo expõe Müller, não é possível isolar a norma da realidade, pois é esta, compreendida como “o círculo ou âmbito da norma”, que vai determinar o alcance e o real significado normativo que a disposição constitucional revela em cada caso posto a solução que demande sua interpretação/aplicação.

Sobre o ponto, transcreve-se elucidativa passagem em que o professor Paulo Bonavides discorre sobre a doutrina do juspublicista alemão:

Considerada em nível abstrato, a normatividade do texto é, num primeiro momento, a potencialidade da eficácia; não é ainda a eficácia propriamente dita. Esta só ocorre, e deixa de ser uma potencialidade, quando o texto normativo se vincula ao caso constitucional, isto é, ao problema que se coloca perante a Constituição em busca de solução; em outras palavras, quando se incorpora ao processo de concretização nos moldes pragmáticos que vão, segundo Müller, em sua Teoria Estruturante do Direito, da norma-texto à norma-decisão[21].

Nesse sentido, e voltando nossa atenção agora para o tema objeto de estudo, se é certo que as necessidades da população na área da assistência à saúde tendem potencialmente ao infinito, os recursos financeiros do Estado são finitos, limitados, o que gera a necessidade de os órgãos competentes efetuarem, por meio de apreciações discricionárias, as chamadas “escolhas dramáticas[22], que consistem na necessidade de eleger somente alguns dos possíveis beneficiários de políticas públicas destinadas à satisfação de direitos sociais, diante, como se disse, da contingência financeira. Ou seja, na impossibilidade de se prestar um serviço, por assim dizer, “pleno em todos os seus aspectos” – o qual abrangeria todos os casos, satisfazendo todas as necessidades, em qualquer situação e sempre da forma ideal segundo o atual estágio científico e tecnológico –, faz-se necessário “escolher” em que áreas e em que extenção o serviço público será prestado.

Essa escolha, até por força de comandos vetores do comportamento da Administração Pública em um Estado Democrático de Direito, como são os princípios da legalidade e da publicidade (art. 37, CF/88), é feita, em um primeiro momento, através de uma decisão política emanada do Parlamento, que divide e direciona previamente os gastos públicos, à vista do lastro financeiro existente, por meio das chamadas leis orçamentárias. Em síntese, nos termos do art. 165 da Constituição Federal, estas se dividem em três espécies: I - o plano plurianual, que estabelece de forma regionalizada as diretrizes, objetivos e metas para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada; II – as leis de diretrizes orçamentárias, que preveem metas e prioridades para o exercício financeiro subsequente, orientando a elaboração da lei orçamentária anual; III – as leis orçamentárias ou orçamentos anuais, que compreende o orçamento fiscal, o orçamento de investimento das empresas estatais e o orçamento da seguridade social.

O segundo momento das mencionadas “escolhas dramáticas” cabe ao Administrador Público e devem ser exercidas dentro dos limites de liberdade de atuação deixados pelas leis orçamentárias e por outros diplomas legais que disciplinam sua atuação funcional.

Tem-se, então, um potencial choque entre valores igualmente protegidos pela Constituição. De um lado, direitos fundamentais sociais de cunho prestacional para cuja satisfação demanda-se a realização de gastos públicos – entre os quais se inclui o direito á saúde –, de outro, a necessidade de serem respeitadas as escolhas políticas concretizadas nas leis orçamentárias, as quais, em última instância, são manifestações da contingência financeira do Estado, que impede, ao menos a princípio, seja plenamente satisfeita a totalidade das pretensões relacionadas àqueles direitos. Ora, está-se diante de um autêntico hard case, segundo a formulação teórica de Ronald Dworkin[23], cuja solução deve ser buscada através da aplicação do princípio da proporcionalidade.

Segundo este princípio, que se tem como implícito em nossa ordem constitucional[24], deve ser feita a ponderação da relevância prática de cada um desses preceitos tendo em vista as especificidades do caso concreto, de modo que, sem que nenhum dos dois seja extirpado do ordenamento – lembremos que, ainda na linha dogmática de Dworkin, em se tratando de princípios não vale a “regra do tudo ou nada” (an all or nothing), mas sim o sopesamento da dimensão de peso (valor) que cada um apresente diante da situação concreta a ser solucionada[25] –, prevaleça na hipótese aquele cuja observância melhor atinja os objetivos da Carta Constitucional, tomada esta seu conjunto, como um bloco de valores, a chamada tábua axiológica constitucional[26].

Diante de tal tensão, cremos que no processo de interpretação/aplicação de tais preceitos se faz imperioso adotar uma metódica concretista de feição tópica para, superando o dogma positivista sobre a existência de uma absoluta dicotomia entre “direito” e “realidade” e abdicando do inalcançável ideal de objetividade pregado pela Escola de Viena, tentar-se harmonizar os momentos “normativo” e “fático” da concretização da norma[27]. É que a normatividade não é um fenômeno estático, amarrada pela expressão linguística da lei, mostrando-se, pelo contrário, dinâmica, maleável, mutável, na medida em que ordena e regulamenta a realidade social e, reflexa e simultaneamente, é influenciada e condicionada por essa mesma realidade. É o que se costuma chamar de “normatividade materialmente determinada”.

Justamente por conta dessa relação recíproca “norma X fato”, que há de se exigir do intérprete/aplicador das normas constitucionais o abandono – ao menos como instrumental único – da lógica formal racionalista, tão do gosto dos positivistas, para, deixando de contemplar o Ordenamento Jurídico como obra perfeita e formalmente completa, assumir a insuficiência e as deficiências das proposições normativas frente à multifacetada, hipercomplexa e efêmera realidade contemporânea de nosso mundo pós-moderno[28]. Assim sendo, deve-se ter ciência de que cada individual situação conflituosa posta diante do intérprete/aplicador irá influenciar o processo de concretização da norma aplicanda, condicionando a própria construção de seu significado jurídico. Através desse processo, conforme acentua Agassiz Almeida Filho, “a Constituição torna-se dinâmica em decorrência da potencialidade normativa – capacidade para a resolução de casos jurídicos concretos – apresentados pela abertura das normas constitucionais.[29]

Tem-se, deste modo, que a compreensão e a concretização da norma constitucional só são possíveis em face de um problema concreto a demandar sua incidência, de forma que a determinação de sentido da proposição normativa e sua aplicação passam a ser encaradas como um processo unitário, global e incindível. Na esteira da metodologia tópica e concretista de Hesse (1998, p.20), “não há interpretação da Constituição independentemente de problemas concretos[30]. Na dinâmica da práxis judiciária, assim, a normatividade se apresenta como um processo estruturado, no qual “direito” e “realidade” não se comportam como esferas incomunicáveis ou categorias autônomas subsistentes por si mesmas, mas sim como elementos indissociáveis e imprescindíveis para se chegar ao sentido da norma que melhor se adeque às peculiaridades do caso a ser decidido.

Ora, se estamos concluindo que a normatividade da prescrição jurídica se fundamenta e assume sua feição concreta através da realidade fática sobre a qual incide, a qual, por sua vez, é condicionada pelo contexto social, cultural e econômico do momento histórico, devemos também ter em mente que estes elementos hão de ser necessariamente analisados, estudados e sopesados pelo hermeneuta quando da interpretação/aplicação da norma, sob pena de o processo de concretização dar-se dissociado de seu segundo momento normativo, qual seja, o constituído pelo “âmbito da norma”, novamente aqui valendo-nos da expressão consagrada por Müller.

Um ponto, contudo, merece nossa preocupação dentro dessa assunção sobre a relatividade do conteúdo normativo dos preceitos constitucionais.  Cuida-se do risco de a metodologia proposta desaguar em um decisionismo relativista ou um subjetivismo interpretativo, o que, levado a um extremo, acabaria por dissolver a própria força normativa da Constituição. A fim de se evitar uma porosidade excessiva do texto constitucional, o que permitiria impingir-lhe sempre o significado desejado pelo intérprete, mesmo que destoante do contexto fático circundante, deve-se construir, dentro de uma hermenêutica constitucional, parâmetros mínimos de controle que permitam racionalizar o processo de concretização da norma, de modo que a atividade interpretativa, “deixada aberta pela tópica, possa com a racionalização metodológica ficar vinculada, não se dissolvendo o teor de obrigatoriedade ou normatividade da regra constitucional[31]. Procedendo desse modo, lograr-se-á evitar a separação entre as duas Constituições – a formal e a material[32] –, sem deixar, contudo, que o processo hermenêutico desprenda-se de sua base sólida, de seu lastro uniformizador.

Fixada a premissa metodológica acima explicitada, passemos, agora, a analisar os requisitos que, sob nossa ótica, devem estar presentes para que se tenha como configurado o direito ao recebimento do medicamento pretendido.

5. OS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO JUDICIAL DE MEDICAMENTO

Insistiu-se acima na necessidade de o intérprete/aplicador – aqui incluído, por óbvio, o magistrado –, quando da concretização de determinado preceito constitucional ou mesmo de um direito constitucionalmente assegurado, tomar em conta no processo de determinação de seu sentido e na fixação de seu alcance normativo ou âmbito de proteção as peculiaridades e vicissitudes do caso concreto a ser decidido, as nuances do problema que clama por solução, as circunstâncias fáticas circundantes, o contexto social, cultural e econômico do momento, além, é claro, das demais disposições normativas integrantes do ordenamento jurídico. Este ritual – ou itinerário procedimental hermenêutico, se assim se preferir – há de ser observado também, como não poderia deixar de ser, nos casos em que se está julgando ações nas quais se postula a concessão judicial de medicamentos não fornecidos pelo SUS, nos quais se invoca como substrato normativo da pretensão o direito fundamental à saúde, positivado no art. 196 da constituição Federal.

Cremos que assim deva ser, pois tal postura metodológica facilita que se chegue, frente a cada caso litigioso posto a julgamento, à solução ótima, porque mais justa, não só sob a ótica subjetiva do postulante, mas à vista da sustentabilidade do sistema, o que representa, em última análise, a satisfação daquele mesmo direito fundamental à saúde em sua dimensão coletiva ou difusa[33].

Se assim é, partindo de uma concepção estruturante dos direitos fundamentais e presente a contingência da capacidade financeira do Estado, passamos a listar abaixo os pressupostos que entendemos devam estar presentes em cada caso concreto posto a julgamento para que se reconheça o direito do autor ao recebimento do fármaco solicitado, pressupostos estes que são construídos levando-se em conta também aquela ponderação prática concreta de que se falou acima, ou ao menos o foram com esse objetivo.

Pois bem, a nosso ver, para que se tenha como consubstanciado o direito ao fornecimento do medicamento, devem estar cumulativamente presentes as seguintes condições:

1 – a insuficiência de recursos financeiros do requerente;

2 – a comprovada eficácia terapêutica do medicamento pleiteado, somada à sua essencialidade para o tratamento;

3 – a inexistência de tratamento eficaz fornecido pelo SUS que substitua aquele pretendido.

Analisemos separadamente e com mais detalhes cada um desses requisitos.

Em relação ao primeiro, cabe-nos, desde já, afastar a perplexidade causada pelo fato de se erigir como requisito para a obtenção de um serviço público o fato de a pessoa requerente não poder custeá-lo, cientes que somos de que a Constituição Federal afirma ser dever do Estado prestá-lo a todos indistintamente. A solução para esse difícil dilema mais uma vez ampara-se na limitação financeira do Estado. É que, se este não pode atender a todos isonomicamente em se estabelecendo um alto padrão de qualidade (leia-se “alto custo”) e se lhe cumpre tratar desigualmente aqueles que se encontrem em situações díspares, na medida de suas desigualdades – tomado aqui o conceito de igualdade material, propagada desde Aristóteles –, deve-se concluir que quem possui condições financeiras de arcar com a aquisição do medicamente de que necessita e que não é fornecido ordinariamente pelo SUS, deve fazê-lo às suas expensas, pelo menos até que o Estado atinja um patamar de desenvolvimento econômico tal que lhe permita custear o melhor tratamento para toda a sua população.

No mais, ainda no que se fere ao primeiro requisito, deve-se compreendê-lo através de uma perspectiva relativista. Isto porque a carência econômica do demandante, a autorizar o acolhimento do pleito, deve ser verificada não em termos quantitativos absolutos, mas sim frente ao custo mensal para a aquisição do fármaco. Desse modo, mais importa a porcentagem da remuneração do sujeito que será destinada à aquisição do medicamento, do que propriamente o custo unitário deste, ou o volume dos ganhos habituais ou da classe social daquele. Se a mencionada proporção for tal que comprometa a satisfação de necessidades materiais básicas, relacionadas ao chamado mínimo existencial, deve-se reconhecer a presença da insuficiência financeira.

No tocante ao segundo requisito, primeiramente, para que se tenha como comprovada a eficácia terapêutica da droga pretendida, exige-se, antes de tudo, tenha sido ela registrada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, autarquia federal sob regime especial, cuja finalidade institucional é promover a proteção da saúde da população. Entre suas competências está a de autorizar a fabricação, distribuição, importação e exportação de medicamentos de uso humano, além de registrar esses produtos, estabelecendo, coordenando e monitorando os sistemas de vigilância toxicológica e farmacológica, além de lhe caber promover a revisão e atualização periódica da farmacopeia brasileira (arts. 3º, 6º e 7º, VII, VIII, IX, XVIII e XIX, e 8ª da Lei nº 9.782/99). Isto porque o aludido registro é precedido de pesquisas, experimentos e estudos randômicos que procuram atestar a eficácia terapêutica da droga, detectar eventuais efeitos colaterais indesejados e afastar a possibilidade do fármaco ser prejudicial à saúde humana ou à de um determinado grupo de pessoas.

Seguindo, mas ainda em relação ao segundo requisito, deve-se asseverar que, por “essencial para o tratamento”, deve-se entender não só o medicamento que tenha pretensões curativas, mas também aquele que, comprovadamente, melhore a qualidade de vida do paciente, prolongue sua expectativa de sobrevida ou reduza o índice mortalidade da doença, ressalvado-se que qualquer desses efeitos somente deve ser considerado se for de grau significativo. Ou seja, um medicamento importado de última geração – supondo-se aqui de custo bem mais elevado que o tradicionalmente encontrado no mercado e disponibilizado pelo SUS – que atue somente como um paliativo ao mal que acomete o autor, ou que aumente tão só modicamente sua sobrevida, ou, ainda, que tenha uma eficácia terapêutica apenas infimamente superior à droga já disponibilizada, não pode ser considerado “essencial para o tratamento”.

Ingressamos, então, no terceiro e último dos requisitos acima listados: a inexistência de tratamento fornecido pelo SUS que possa eficazmente substituir o medicamento pretendido. Quando falamos de “tratamento” nos referimos a qualquer espécie de intervenção médica ou análoga no doente tendente a tratar sua enfermidade. Assim, em já sendo disponibilizado pela rede pública de saúde tratamento medicamentoso, cirúrgico, fisioterápico, ou de qualquer outro tipo que tenha efeito terapêutico idêntico ou similar ao do fármaco solicitado, assim reconhecido pela comunidade científica-médica, deve ser rejeitado o pedido autoral para que seja o Estado obrigado a fornecer a droga excepcional.

O pleito deve ser negado ainda que os tratamentos adotados pelo SUS não sejam os mais modernos ou avançados do ponto de vista da ciência médica, desde que possuam eficácia comprovada contra a enfermidade. É que, na presente quadra da história, no atual estágio de desenvolvimento tecnológico que alcançamos, inclusive nas áreas da química, farmacologia, biotecnologia e correlatas, as drogas, os procedimentos cirúrgicos e as terapias de um modo geral estão em constante e rápida evolução, de modo que sempre há um “novo e milagroso remédio no mercado”, uma “nova promessa de cura”.

Contudo, para que o Judiciário possa validamente afastar o óbice representado pela contingência financeira do Estado – cujo maior símbolo e manifestação formal é a própria lei orçamentária –, e assim determine que este adquira e forneça um medicamento de alto custo não previamente disponibilizado, ou seja, cujo gasto não estava previsto e inserido no orçamento respectivo, é necessário que a droga judicialmente postulada revele-se, do ponto de vista terapêutico, substancialmente superior à adotada pelo SUS, seja porque  melhore significativamente a qualidade de vida do paciente, prolongue significativamente sua expectativa de sobrevida ou reduza significativamente o índice mortalidade da doença. A repetição do advérbio de modo “significativamente” não foi em vão. Teve a finalidade de enfatizar que qualquer desses efeitos gerados pelo fármaco solicitado devem ser marcadamente superiores à do congênere disponibilizado pelo SUS, de modo a justificar a intervenção estatal na “escolha dramática” feita pelo legislador ou pelo administrador público, pois somente assim ter-se-á como não invadido o chamado “mérito administrativo”.

Lembre-se que, se por um lado cumpre ao Estado garantir os meios necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde da pessoa, por outro, em razão de suas limitações financeiras, não está necessariamente obrigado a garantir sempre, em quaisquer casos e condições, o tratamento mais moderno, pois o fornecimento desse para umas poucas pessoas pode gerar, paralelamente, a insuficiência de recursos indispensáveis à preservação da vida de outras dezenas, centenas ou milhares de pacientes igualmente carentes e necessitados apenas de medicamentos básicos ou tratamentos de baixo custo.

Enquanto não atingirmos um nível de desenvolvimento tal que permita ao Poder Público garantir o fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo a todos quanto deles necessitem sem que para tanto se prejudique a prestação de serviços médicos elementares, usufruídos por toda a população, o direito fundamental à saúde, no que se inclui o direito ao recebimento de medicamentos pelo Estado, deverá ter sua conformação ajustada às condicionantes acima elencadas, sob pena de privilegiarmos uns em detrimento de muitos, o que, de forma alguma, atende à carga axiológica emanada da Constituição, muito pelo contrário, à viola frontalmente.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MORAES, Germana de Oliveira: Controle Jurisdicional da Administração Pública, 2ª ed., São Paulo. Editora Dialética, 2ª Ed., São Paulo, 2004.

MÜLLER, Friedrich: Direito Constitucional, 4ª ed.,  Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010.

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SARLET, Ingo Wolfgang: A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 7ª ed., Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado, 2007.

SGARBI, Adrian: Teoria do Direito, 1ª ed., Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007.

SILVA, José Afonso da: Curso de Direito Constitucional Positivo, 19ª ed., São Paulo. Editora Malheiros, 2001.

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Sobre o autor
Bernardo Lima Vasconcelos Carneiro

Juiz Federal e Professor do Emagis Cursos Jurídicos

Informações sobre o texto

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