1. DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO
O direito fundamental à saúde tem previsão na Constituição no artigo 196 que assim dispõe: a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A Constituição reservou a sociedade, o indivíduo e ao Estado o dever de cuidado com a saúde pública.
O direito à saúde não é apenas o acesso ao tratamento repressivo e aos medicamentos. O direito à saúde é um instituto muito mais amplo e precisa estar relacionada a uma boa alimentação, à assistência social, ao trabalho, à moradia digna. O direito fundamental à saúde é importante porque é uma questão de cidadania e pertence à coletividade. “O direito à saúde constitui direito de todos e dever do Estado, a partir de um acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Portanto, é um direito público subjetivo capaz de ser exigido do Estado.”[1]
1.1. SURGIMENTO DO DIREITO À SAÚDE
A saúde nem sempre recebeu a proteção legal. O filósofo Aristóteles relacionava a saúde à felicidade. O indivíduo saudável era consequentemente um cidadão feliz. Já Sigmund Freud comparava-a com a questão da alma, o psique. Para o psicanalista a saúde vai muito além da saúde do corpo físico.
A legislação, até o século XIX, não dispunha sobre o direito à saúde. Apenas na passagem do estado social para o estado liberal que a saúde ganhou perspectiva de direito, mas foi com a segunda guerra (1939/1945) que a saúde tornou um valor universal a ser seguido, assim como a dignidade humana. Afinal como ter uma vida digna se não existir o direito à saúde?
No Brasil a proteção à saúde iniciou-se com a Constituição de 1934, mas ainda muito associado ao direito à saúde do trabalhador. Àquela época não se pensava a saúde como um valor a todos os brasileiros. A Constituição de 1937 que previu o direito à saúde da criança. A Constituição de 1946 inseriu a saúde como repartição de competência. A Constituição de 1967, acrescido pela emenda 01/1969, não trouxe nenhum avanço na legislação quanto ao acesso à saúde. Entretanto foi na Constituição de 1988, pela primeira vez, que a saúde ganhou notoriedade, status de norma suprema, conforme se verifica nos artigos 196 a 200. A Constituição reservou uma seção inteira, dentro do capítulo da ordem social, para dispor sobre o direito à saúde. O artigo 6° da Constituição também assegura que a saúde é direito social.
A saúde não é apenas um direito de segunda geração, mas de todas as gerações, pois saúde é vida e vida está relacionada à simbiótica do ser humano e aos direitos sociais. A saúde não pode ser prestada de olhos vedados, pois deve ser acompanhado de políticas públicas. Assim não basta o controle repressivo da doença, mas as condições que possam dar ao ser humano uma vida digna para que possa ter um cuidado com a saúde. A quem pertence o direito fundamental à saúde? Os sujeitos são indeterminados, são direito difusos, afinal todos têm direito à saúde do corpo ou da alma.
A saúde está presente em muitos documentos universais e, em boa parte do mundo, vem enfrentando dificuldade na sua efetividade. Isso porque existe um paradigma entre a saúde e o retorno financeiro de um Estado. A precariedade da saúde pública é um problema universal, até mesmo em países desenvolvidos.
Além da saúde temos outros problemas como a educação, a informação, o laser, o ambiente de trabalho e a alimentação que acabam possibilitando a população uma péssima condição de saúde.
Os problemas enfrentados pelo Estado relacionados à saúde pública são muitos, como a escassez de recursos, mas nem sempre são divulgados pelo próprio Estado em dados oficiais. O Estado preocupa em combater a doença e não trabalha com uma saúde preventiva. Cada dia surge novas doenças e o ser humano, a cada instante, enfrenta novos problemas de saúde pública.
1.2. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS À SAÚDE
Os conflitos internacionais na primeira metade do século XX possibilitaram as Constituições afirmar a dignidade da pessoa humana como valor axiológico através dos princípios que antes eram meros coadjuvantes e acabaram ganhando normatividade. Ronald Dworkin diz que os princípios têm uma carga ética valorativa muito grande que é exercido através da ponderação. Paulo Bonavides ressalta que os princípios formam o coração do ordenamento jurídico. Assim entre os princípios relacionados a saúde podem ser citados: a unicidade do sistema, a integralidade da prestação, a humanização, o mínimo existencial e a reserva do possível.
O princípio da Unicidade do Sistema assegura que a saúde deve ser prestada por todos em prol de uma melhor qualidade de vida. Significa que a saúde é um direito de todos, mas é também um dever da família, do indivíduo, da sociedade e do Estado.
O princípio da integralidade da prestação assegura que todos os direitos fundamentais devem ser prestados independente da existência do problema. A medicina deve ser preventiva, mas também repressiva. E não basta atestar a existência da doença, é preciso conceder condições de tratá-la.
O princípio da humanização significa que todos os seres humanos, nos casos de doenças, devem receber tratamento “condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais.”[2] O citado princípio afirma que temos que nos colocar no lugar do outro para compreender a sua dor. O problema da saúde não é apenas do corpo, mas pode ser da alma, da compaixão, da necessidade de um diálogo. As vezes as dores são terríveis, mas não é um remédio criado em laboratório que irá saná-la. Pode ser uma depressão ou um amor não resolvido, um sonho não concretizado. Por esse princípio entende-se que o doente deve ser tratado como gente, em outras palavras, deve-se humanizar o atendimento público.
O princípio do mínimo existencial surgiu na Alemanha com o autor Otto Von Bachof. O princípio aduz que todo Estado precisa defender um mínimo para a população para que a sociedade possa existir. O ser humano não pode receber um tratamento à saúde abaixo do patamar mínimo. É preciso defender um mínimo de direito para que as pessoas não vivam de forma desumana. O mínimo existencial está presente implicitamente no artigo 1º, III, artigo 5º, III, artigo 60, §4, IV da Constituição.
O princípio da reserva do possível[3] assegura a necessidade de se observar se o Estado pode ou não prestar aquela assistência a saúde, mas isso não é argumento para deixar de assistir ao doente. Sabemos que alguns Municípios de fato padecem de recursos por falta de arrecadação, mas todos os entes federados são solidariamente responsáveis pela prestação da saúde.
O Judiciário deve buscar uma solução avaliando se o medicamento é mesmo necessário, se tem comprovação científica e mesmo a existência de recursos para aquela demanda. O ideal seria se a própria administração conseguisse suprir todas essas necessidades, mas se isso não é feito concede-se ao Judiciário uma obrigação constitucional para fazer cumprir o direito fundamental à saúde. A doutrina chama esse fenômeno de ativismo judicial.
1.3. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
A Constituição Federal consagra o Sistema Único de Saúde, responsável pelas ações e serviços públicos de saúde, afirma o artigo 198 da Constituição, integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; participação da comunidade.
Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei, assegura o artigo 200 da Constituição: controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
1.4. REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
A Constituição no artigo 197 afirma que são de relevância pública as ações de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. O investimento em saúde pública compete a todos os entes federados, mas também é de responsabilidade de cada indivíduo.
A repartição de competências para legislar sobre a saúde envolve o artigo 23, II da Constituição que é uma competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde. [4]. O artigo 24, XII trouxe a competência concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal no que tange a atividade legiferante. O artigo 24, §§1º, 2º e 4º se referem a competência da União para legislar sobre normas gerais e sobre a competência suplementar complementar. O artigo 30, VII assegura a competência dos Municípios para prestar serviços de saúde à população. Os municípios podem inclusive admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público simplificado, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.
O Supremo Tribunal Federal entende que a responsabilidade é solidária entre a União, o Estado, o Município e o Distrito Federal na prestação da saúde pública. A responsabilidade dos entes deve ser clara, expressa pelo Estado. Mas a saúde não é apenas dever do Estado, mas de todos nós. Como direito à saúde está incluído a higiene, a boa alimentação, uma vida saudável acompanhada de exercícios físicos, pois o Estado apenas não é suficiente para solucionar as mazelas da sociedade. Todos nós temos o dever de atuar na prevenção das doenças adotando procedimentos simples como escolhendo os melhores alimentos, praticando atividades físicas, não consumindo bebidas alcoólicas, não fumando, dirigindo com prudência entre outros.
A assistência à saúde, conforme afirmado a pouco, é livre à iniciativa privada. As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. A Constituição no artigo 199 §§ 2º e 3º assegura que é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. Ademais veda a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei
1.5. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
A responsabilidade do judiciário é muito grande para suprir as necessidades da população. O Judiciário possui alguns instrumentos encontrados na Constituição para tentar igualar o acesso à saúde como o Mandado de Segurança, o Mandado de Injunção, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a Ação Civil Pública entre outros. O direito à saúde, por ser direito social, pode ser protegido por ações individuais ou coletivas. O Ministério Público pode ajuizar uma ação individual indisponível para proteção de uma pessoa ou de uma coletividade. O juiz não julga apenas com base no bom senso, mas com base na Constituição que assegura a todos o direito a saúde.
Nos tribunais superiores temos um instrumento de auxílio aos Ministros, que é o amicus curiae, para ajudar na fundamentação devido a falta de conhecimento técnico. E são muitos especialistas convocados para dar suporte ao Judiciário nas ações que envolvam grandes temas como o próprio aborto de feto anencefálico que está em julgamento na Corte Suprema.[5] Assim a falta desse conhecimento técnico não pode ser um obstáculo a efetividade da saúde. A tutela do direito fundamental à saúde não pode ser apenas na âmbito coletivo, mas também no individual.
As ações que buscam um remédio para sanar a doença quase sempre são remédios que o próprio governo colocou na lista de distribuição. O judiciário não pode imiscuir-se de sua responsabilidade sob o fundamento de que o Estado não tem orçamento e que os recursos são escassos. É claro que o juiz precisa ponderar entre o mínimo existencial e o orçamento, mas nunca deve esquecer da dignidade humana para que o indivíduo possa sobreviver.
Certos magistrados entendem que as ações não são interpostas somente pelo hipossuficiente, mas a classe média pode ser hipossuficiente porque não consegue suportar os preços altos de certos medicamentos. A justiça deve atender a todos os indivíduos indistintamente. A Constituição assegura o direto a todos e não apenas ao hipossuficiente.[6]
O juiz acaba suprindo a falta de políticas sociais porque são milhões de ações que buscam um benefício assistencial, a internação de um paciente, a distribuição de um remédio, uma vaga na creche. A Constituição foi feita para os ricos e para os pobres, para o homem e a mulher. A Constituição é uma eferverscência de princípios constitucionais que garantem ao cidadão o direito à saúde, mesmo que os recursos sejam limitados.
O Judiciário qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação não pode mostrar-se insensível ao problema da saúde pública da população, sob pena de incidir, ainda que pela via da omissão, em grave comportamento inconstitucional. As decisões judiciais devem determinar a atuação das políticas públicas no que toca à saúde, seja no controle difuso ou concentrado. A população, qualquer que seja o estrato social, deve ter direito de acesso aos medicamentos e tratamentos, pois saúde é vida. E entre a vida humana e os interesses da fazenda pública, disse Celso de Mello na ADPF 45, deve prevalecer a vida.
[1] FERNANDES, Bernardes Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. RJ: Lúmen Júris, 2010. P. 1046
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. P.1368
[3] A reserva do possível é a conciliação entre as grandes necessidades públicas e a escassez de recursos públicos.
[4] STA: 175-CE, julgado em 17/03/2010. Relatoria Ministro Gilmar Mendes. Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde - SUS. Políticas públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.
[5] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: 54.
[6] O examinador da prova oral da Defensoria Pública de Minas fez a seguinte pergunta: a atuação do Judiciário nas questões da saúde pública é ativismo judicial? O ativismo judicial é a intervenção do Judiciário nas questões administrativas ou mesmo legislativas. Se a decisão for bem ponderada, razoável, fundamentada não há que falar em ativismo judicial porque a própria Constituição concede a pessoa humana o direito à saúde. Por outro lado se o Judiciário intervém em situações já supridas pela administração ele estaria excedendo a suas competências e ferindo a divisão de poderes.