3. CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE BEM IMÓVEL.
3.1. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO-LEI 70/66.
Ultrapassada a fase da análise do conceito da alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis, sua natureza jurídica e procedimentos a serem adotados pelo credor fiduciário em caso de inadimplência do devedor fiduciante, é chegada a hora de enfrentarmos a questão da constitucionalidade da execução extrajudicial de bem imóvel face aos princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal.
Antes de adentrarmos ao mérito da questão da execução extrajudicial na alienação fiduciária de bens imóveis, cumpre observar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal atualmente analisa a constitucionalidade da execução extrajudicial de dívida hipotecária prevista no Decreto-Lei 70/66.
Este assunto é extrema relevância para fins do nosso estudo, haja vista que o procedimento de execução extrajudicial previsto no referido decreto é semelhante ao previsto na Lei 9.514/97. Por isso, vamos nos debruçar rapidamente na análise do tema.
Segundo notícia do STF publicada em 18 de agosto de 2011[3], a matéria está sendo analisada no julgamento de dois Recursos Extraordinário (REs 556520 e 627106), sendo que um deles (RE 627106) teve Repercussão Geral reconhecida. Isso significa que a decisão tomada pelos ministros deverá ser aplicada a todos os recursos idênticos no país.
Ainda segundo a notícia do STF, por enquanto, há quatro votos pela incompatibilidade dos dispositivos do decreto-lei com a Constituição, sendo que outros dois ministros – Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski – afirmaram que não há incompatibilidade com a Constituição Federal nas regras que permitem a execução extrajudicial de dívidas hipotecárias. Eles inclusive lembram que o Supremo tem uma jurisprudência pacífica sobre a matéria.
Ocorre que atualmente há um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) que, portanto, suspendeu a análise sobre a compatibilidade ou não dos dispositivos legais que autorizam a execução extrajudicial de dívidas hipotecárias, dispostos no Decreto-lei 70/66, com a Constituição Federal.
Os quatro ministros que defendem a incompatibilidade da execução extrajudicial de dívidas hipotecárias com a Constituição de 1988 afirmam que ela ofende o devido processo legal. Em síntese, alegam os ministros que esse decreto-lei inverte completamente a lógica do acesso à justiça. Segundo o Ministro Luiz Fux “o devedor é submetido a atos de expropriação sem ser ouvido e se ele eventualmente quiser reclamar ele que ingressa em juízo”. Para Luiz Fux, o procedimento de expropriação de bens do devedor sem a intervenção de um magistrado afronta o princípio do devido processo legal.
Por outro lado, o ministro Dias Toffoli votou no sentido de manter a jurisprudência assentada pelo Supremo na matéria e afirmar que o Decreto-lei 70/66 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
Segundo Dias Toffoli, as regras do Decreto-lei 70/66 não representam uma supressão do processo de execução do efetivo controle judicial. O que acontece é tão somente um deslocamento do momento em que o Poder Judiciário é chamado a intervir. No caso, disse o Ministro, o executado poderá buscar reparação judicial se entender que teve seu direito individual de propriedade lesado.
O ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo e se disse “extremamente preocupado” com o que classificou de “forma de pensar” que traz sempre mais questões para o Judiciário. Para o ministro, o modelo que se desenha “sobre onera, sobremaneira, o Judiciário” e “o inviabiliza de forma clara, trazendo inclusive custos adicionais para o modelo de contrato e de financiamento”.
“A mim parece que a ideologia hoje presente é de realização de direitos, se necessário, com a intervenção judicial”, disse o Ministro Gilmar Mendes. Segundo o ministro, em países que respeitam o “estado de direito” é muito comum a prática de execução nos mesmos moldes do previsto no Decreto-lei 70/66.
Orlando Gomes elenca os argumentos invocados em favor da constitucionalidade da execução extrajudicial nos termos do Decreto-lei 70 de 1966, a saber: não se impede, nem se proíbe o acesso à via judicial; ao devedor não é defeso buscar a via judicial em qualquer fase da execução extrajudicial; a própria Lei (Decreto-lei 70/1966) prevê o controle jurisdicional (art. 37) ainda que a posteriori; responsabiliza o agente fiduciário que, mediante comprovada má-fé, alienar imóvel pela via extrajudicial (GOMES, 1972, p. 380).
Por conseguinte, não há que se falar em afronta ao devido processo legal, visto que ele é respeitado. Além do mais, a execução extrajudicial é uma faculdade da lei que a instituiu (art. 31 do Decreto-lei 70/66, com a redação que lhe deu a Lei 8.004/90, posterior à CRFB/88) e não uma obrigação para o credor que pode, sim, se valer do procedimento judicial na execução extrajudicial de dívida hipotecária sobre bem imóvel.
Vale ressaltar que estamos a discorrer sobre a execução extrajudicial sobre dívida contraída pelo devedor hipotecário de bem imóvel. Diferente, portanto, da execução extrajudicial sobre dívida contraída pelo devedor fiduciante de bem imóvel.
Na hipoteca, o devedor permanece com a propriedade do bem imóvel dado em garantia, além da posse direta sobre o bem. Na alienação fiduciária sobre bem imóvel, o devedor fiduciante transfere a propriedade resolúvel ao credor fiduciante, permanecendo apenas na posse direta sobre o bem.
Assim, considerando que na hipoteca o credor deve, primeiro, em caso de inadimplência do devedor retirar-lhe a propriedade para, depois, retirar-lhe a posse, talvez se justifique um procedimento judicial na execução, haja vista que a propriedade deve revestir-se de maiores garantias para o devedor, diferentemente do que ocorre na alienação fiduciária.
Em síntese, a alienação fiduciária difere da hipoteca basicamente em razão de que (a) A hipoteca é um ônus que incide sobre coisa alheia, enquanto a alienação fiduciária consiste em um ônus sobre coisa própria; (b) No caso de falência do devedor, na hipoteca o bem é arrecadado pela massa, devendo o credor habilitar seu crédito na falência. Na alienação fiduciária, o bem não é arrecadado, pois o bem não está no patrimônio do devedor; e (c) O credor de garantia hipotecária está sujeito aos efeitos da recuperação judicial do devedor, enquanto o credor fiduciário foi expressamente excluído pela Lei 11.101/2005, em seu art. 49, §3º (Lei de Falências e de Recuperação Judicial e Extrajudicial).
Estabelece o citado art. 49, §3º da Lei 11.101/2005 que tratando-se de credor titular da posição de credor fiduciário de bem imóvel seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais.
Perceba que a lei fala em preservação dos direitos de propriedade, haja vista que no negócio fiduciário o credor é o proprietário fiduciário do bem imóvel dado em garantia, embora essa propriedade seja resolúvel.
Por último, vale observar que em face do disposto na lei de alienação fiduciária e pela posição adotada pela maioria da doutrina e atual jurisprudência, parece-nos que a alienação fiduciária é bem mais benéfica ao credor do que a hipoteca, o que enseja as discussões pertinentes à forma de execução do crédito em caso de inadimplência.
3.2. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 9.514/97.
De início, vale observar que nos primeiros anos após a edição da Lei 9.514/97, as empresas do ramo imobiliário e as instituições financeiras ficaram receosas ante uma possível discussão em juízo sobre a constitucionalidade dos mecanismos inerentes a execução extrajudicial, em particular quanto ao leilão do imóvel consolidado.
Os motivos da insegurança jurídica com a edição da referida lei restringiam-se a duas questões principais:
1ª) O procedimento de leilão extrajudicial previsto no art. 27 da Lei 9.514/97 conflita com os princípios do artigo 5º, XXXV, LIV e LV da Constituição Federal de 1988?
2ª) Na hipótese do devedor não ter nada a receber ao final do segundo leilão, poderia ele alegar violação do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor – CDC?
O objetivo deste trabalho é analisar apenas a primeira questão, pois o tema proposto trata da problemática relacionada à constitucionalidade, ou não, da Lei 9.514/97, que dispõe sobre a alienação fiduciária em garantia sobre os bens imóveis.
Pois bem, todos os argumentos a respeito da constitucionalidade ou não do Decreto-lei 70/66 vistos no tópico anterior servem para a nossa análise a respeito da constitucionalidade da Lei 9.514/97, tendo em vista que há semelhanças entre as formas de execução extrajudicial estabelecida nos dois diplomas normativos.
Cumpre trazer à baila, novamente, a posição defendida pelos quatro ministros do STF que defendem a incompatibilidade da execução extrajudicial de dívidas hipotecárias com a Constituição de 1988. Eles afirmam que ela ofende o devido processo legal.
Como já dito no item anterior quando tratamos da constitucionalidade do Decreto-lei 70/66, os ministros alegam que esse decreto-lei inverte completamente a lógica do acesso à justiça. Segundo o Ministro Luiz Fux “o devedor é submetido a atos de expropriação sem ser ouvido e se ele eventualmente quiser reclamar ele que ingressa em juízo”. Para Luiz Fux, o procedimento de expropriação de bens do devedor sem a intervenção de um magistrado afronta o princípio do devido processo legal.
Sabe-se que o princípio constitucional do devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV, da CRFB/88), devendo ser assegurado aos litigantes em qualquer processo, seja judicial ou administrativo.
Nesse sentido e segundo Alexandre de Moraes, o princípio do devido processo legal possui, em seu aspecto material, estreita ligação com a noção de razoabilidade, pois tem por finalidade a proteção dos direitos fundamentais contra certas condutas pautadas pelo conteúdo arbitrário, irrazoável ou desproporcional (MORAES, 2013, p. 314).
A principal argumentação de parte da doutrina que sustenta ser inconstitucional a execução extrajudicial prevista no Decreto-lei 70/66 e na Lei 9.514/97 seria justamente a violação ao princípio do devido processo legal. Isso porque a consolidação da propriedade imóvel ocorreria pelo mero decurso do prazo dado pelo credor ao devedor para quitação da dívida atrasada, sem nenhuma observância das garantias do devido processo legal.
Ou seja, a execução extrajudicial pelo credor fiduciário, a partir de intimação feita pelo cartório de títulos e documentos, não permitiria ao devedor questionar os valores que lhes são cobrados, ficando nas mãos do credor a decisão sobre a retomada do imóvel, decisão essa que seria arbitrária posto que sem a participação do Poder Judiciário (expropriação privada da propriedade alheia).
Essa decisão arbitrária por parte do credor sobre a consolidação da propriedade do bem imóvel e sua venda através de público leilão ofenderia também o princípio da inafastabilidade do poder judiciário, que também tem sede constitucional no art. 5º, inciso XXXV.
Em outro sentido, ou seja, em sentido oposto há a doutrina majoritária que afirma a constitucionalidade da execução extrajudicial tanto na hipoteca quanto na alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis.
Marcelo Terra afirma que a garantia de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal está respeitada (TERRA, 1998, p. 540).
Segundo esse autor, o devido processo legal é respeitado na execução extrajudicial primeiro porque o devedor fiduciante somente tem a expectativa de se tornar o proprietário; segundo, porque o leilão extrajudicial somente é realizado após a não purgação da mora pelo devedor intimado pelo cartório (que tem fé pública) e consolidação da propriedade plena na pessoa do credor fiduciário.
Para GOMES (1972, apud DANTZGER, 2010) diversos são os argumentos invocados em favor da constitucionalidade das disposições assecuratórias da cobrança extrajudicial previstas no Decreto-lei 70/66, aplicados analogicamente às disposições da Lei 9.514/97 sobre o tema.
Alguns dos principais argumentos apresentados pelo referido autor são: a) não se impede, nem se proíbe o acesso à via judicial; b) a lei apenas faculta ao credor a execução via extrajudicial e c) ao devedor não é vedado buscar a via judicial em qualquer fase da execução extrajudicial ou mesmo após a consolidação da propriedade.
Nesse ponto vamos retomar o que dissemos mais ao norte deste texto a respeito do julgamento que ora encontra-se suspenso no STF a respeito da constitucionalidade, ou não, do Decreto-lei 70/66, que trata da execução extrajudicial de dívida hipotecária.
O ministro Dias Toffoli votou no sentido de manter a jurisprudência assentada pelo Supremo na matéria e afirmar que o Decreto-lei 70/66 foi recepcionado pela Constituição. Ele citou decisões antigas sobre o tema que ressaltam que as regras do decreto-lei não representam uma supressão do processo de execução do efetivo controle judicial. Para esse ministro, o que há é apenas e tão somente o deslocamento do momento da intervenção do Poder Judiciário.
Sabe-se que no sistema tradicional, cabe ao Poder Judiciário velar pelo processo de execução em sua inteireza. No novo procedimento, o momento da defesa do devedor foi postergado para após a execução. Ou seja, inverteu-se a ordem, com prevalência para a satisfação do crédito, sem exclusão da possibilidade da apreciação judicial.
E por falar em satisfação do crédito, não podemos nos olvidar que a oferta de crédito imobiliário é o elemento propulsor da construção civil e necessita estar amparada por mecanismos capazes de tornar eficaz e rápido o processo de recuperação do crédito concedido.
E foi justamente a alienação fiduciária que trouxe maior celeridade na execução da garantia, reduzindo de maneira significativa a inadimplência e estimulando os bancos a ampliarem a oferta, os prazos e a reduzirem as taxas de juros do mercado imobiliário.
Retomando a questão da venda extrajudicial do bem objeto de alienação fiduciária em garantia, importante mencionar o que diz o autor Melhim Namem Chalhub. Para ele, no caso específico da venda extrajudicial, as normas não são em si, incompatíveis com os princípios constitucionais do art. 5º, XXXV, LIV e LV, podendo ser exercido o direito de ação pelo devedor sempre que ocorrer lesão ou ameaça de lesão a direito, não só para reprimir ou impedir a prática de ato lesivo, como também, para impor a reparação de danos causados por fraude de qualquer natureza (CHALHUB, 2009).
Ainda sobre o julgamento, ora suspenso, da constitucionalidade do Decreto-lei 70/66, pelo STF, o ministro Gilmar Mendes, ao pedir vista do processo, demonstrou-se “extremamente preocupado” com o que classificou de “forma de pensar” que traz sempre mais questões para o Judiciário. Para o ministro, o modelo que se desenha “sobre onera, sobremaneira, o Judiciário” e “o inviabiliza de forma clara, trazendo inclusive custos adicionais para o modelo de contrato e de financiamento”.
Com essa declaração, o Ministro Gilmar Mendes afirma sua preocupação com uma eventual declaração de inconstitucionalidade do Decreto-lei 70/66 e suas consequências, podendo refletir na Lei 9.514/97. Ora, sabemos da morosidade, lentidão e sobrecarga que atormenta o judiciário brasileiro. No momento em que se discutem alternativas válidas para retirar do manto do judiciário algumas questões, a exemplo da Lei 9.307/96 que dispõe sobre a arbitragem, não parece razoável que o judiciário seja obrigado a intervir sempre nas questões habitacionais, de cunho eminentemente patrimonial.